O papel da Unicamp na
redução da
desigualdade de gênero no esporte
HELOISA
REIS
A
Unicamp segue sua tradição de contribuir para o avanço da
ciência e da cultura quando cede seu Ginásio Multidisciplinar
para um espetáculo de mulheres dirigido ao público em geral.
No início de setembro, a Unicamp foi sede do III Campeonato
Sul-Americano de Futsal promovido pela Confederação Brasileira
de Futebol de Salão, com organização da Liga Campineira
de Futebol de Salão.
Para os leigos, parece um
erro ou uma abreviatura proposital substituir futebol de
salão por futsal, mas não é! São dois esportes diferentes,
que “co-existem” ou co-existiram, mas as instituições gestoras
insistem em perpetuar o equívoco de interpretação histórica.
Até 1988, o esporte praticado em quadra com cinco jogadores
em cada equipe, sendo um goleiro e quatro jogadores de linha,
era apenas um, o futebol de salão. Outro jogo ainda não
esportivizado começou a ganhar força nas quadras brasileiras,
e era denominado “futebol de cinco”. Este terminou sendo
esportivizado pela Federação Internacional de Futebol de
Salão (Fifusa) e recebeu a designação de futsal.
Grosso modo, as principais
diferenças entre o futsal e o “velho” futebol de salão,
aos olhos de espectadores leigos, são: o tamanho e peso
das bolas (no futsal, ela é maior e mais leve), permissão
de realização de tentos dentro da área do goleiro adversário
(no futsal), a maneira de reposição da bola em jogo nos
tiros de laterais e de canto (no futsal isso é feito com
os pés) etc. Ademais, os esportes também se distinguem por
conta das diferentes dinâmicas de jogo.
A confusão sobre os dois
esportes não é, infelizmente, privilégio dos leigos. Inúmeros
professores de educação física também não sabem as diferenças
existentes e tratam ambos como uma coisa só. As entidades
que dirigiam o futebol de salão, as ligas e a própria confederação
contribuíram para a ocorrência desse tipo de confusão, pois
se responsabilizaram pela organização do futsal, um esporte
novo e genuinamente brasileiro, desde o início da sua esportivização.
É lamentável do ponto de vista histórico que tanto essas
instituições quanto grande parte dos profissionais da educação
física e do esporte não saibam fazer a necessária diferenciação.
Para esclarecermos os equívocos
históricos já mencionados, é preciso fazer alguns registros.
O futebol de salão é um esporte nacional criado em 1956
com a publicação das suas primeiras regras por Luiz Gonzaga
de Oliveira, que mais tarde foram adotadas pela Fifusa,
fundada em 1975. A primeira federação estadual a ser criada
antes mesmo da divulgação e uniformização nacional das regras
foi a Federação Metropolitana de Futebol de Salão, que veio
a tornar-se a Federação de Futebol de Salão do Estado do
Rio de Janeiro em 1954. A partir de 1957, no Brasil, o futebol
de salão passou a ser de responsabilidade do recém-criado
Conselho Técnico de Assessores de Futebol de Salão no Conselho
Nacional de Desportos – época em que se percebeu um grande
número de regras, isto é, diferentes maneiras de se praticar
o jogo de bola com os pés, em quadra.
A Unicamp foi a primeira universidade a formar um doutor
entre os especialistas de futsal. O professor Wilton Carlos
de Santana defendeu a tese intitulada “A visão estratégico-tática
de técnicos campeões da liga nacional”, em dezembro de 2008,
trabalho que mereceu matéria por parte do Jornal da Unicamp.
É necessário o trato do
futsal como um esporte único, recente e que como todos os
outros similares desperta no público uma grande atração,
propiciando ainda a vivência de emoções agradáveis, que
para o cientista social britânico Eric Dunning é o principal
objetivo do esporte-espetáculo na atualidade.
A Unicamp possibilitou à
sociedade campineira no início de setembro uma importante
experiência ao trazer para a cidade o principal campeonato
continental de futsal feminino. A necessidade de agregar
ao nome do esporte a partícula designativa de gênero já
indica aquilo que queremos ressaltar aqui. Por que não dizemos
futsal masculino quando se trata de jogo de homens? Ou por
que ter que dizer feminino ou masculino para um esporte?
Não seria tudo futsal?
Até para evidenciar o papel
da Unicamp neste evento é necessário denunciar que, infelizmente,
em pleno início do século XXI, portanto mais de um século
depois da invenção do jogo mais famoso de bolas com os pés,
o futebol, a grande mídia não se sentiu atraída pela disputa
do tri-campeonato de futsal pelas atletas brasileiras. Nenhuma
nota foi dada nos principais jornais de circulação estadual,
a cobertura televisiva ficou circunscrita ao âmbito regional
e evidenciou-se mais uma vez a discriminação da mulher,
da mulher atleta, não só pela falta de cobertura jornalística,
mas pelas evidências levantadas pela pesquisa iniciada por
mim e pela professora Helena Altmann, uma das principais
estudiosas de gênero e educação física, durante a referida
competição.
A
Confederação Brasileira de Futebol de Salão foi criada em
15 de junho de 1979, tendo sido eleito presidente, para
o período 1980/1983, Aécio de Borba Vasconcelos (atual presidente).
A Fifusa promoveu o primeiro campeonato mundial da modalidade,
em São Paulo, no ano de 1982, e estabeleceu a periodicidade
de três em três anos para a realização dos mundiais. Percebendo
a grande atração que o novo esporte despertava nos praticantes
e espectadores, a Federação Internacional de Futebol (Fifa)
organizou em janeiro de 1989 o primeiro Campeonato Mundial
de futebol de cinco, denominação que a entidade deu ao jogo
que regulamentou com alterações das regras do futebol de
salão. Em março de 1989, com a anuência da Fifusa, a Fifa
passou a organizar os campeonatos mundiais agora com a denominação
de futsal para esse novo jogo esportivizado. A partir da
sua segunda edição, em 1992, a Fifa instituiu não só a denominação
de futsal, com o intervalo de quatro anos entre um campeonato
e outro (1992, 1996, 2000, 2004 e 2008).
A realização do Campeonato
Sul-Americano na Unicamp nos suscitou o interesse em conhecer
sobre a iniciação das jovens atletas no futsal e também
saber se esta geração de atletas sente ou sentiu discriminações
e preconceitos por praticarem um esporte construído historicamente
para homens. A pesquisa foi realizada com a aplicação de
um questionário para todas as jogadoras. O estudo contou
também com a realização de entrevistas com três atletas
de cada país (a capitã, a jogadora mais jovem e mais velha).
As entrevistas nos possibilitaram
saber com mais detalhes as suas histórias de vida relacionadas
à prática do futsal. Os depoimentos me fizeram reviver a
minha própria história como jogadora de futebol nos anos
80, e como árbitra de futebol de salão em meados daquela
década. Fui a primeira técnica (futebol de salão) e árbitra,
formada pela Federação Paulista de Futebol de Salão. Iniciei
o trabalho de árbitra logo que me formei, a partir de abril
de 1985, na Liga Campineira de Futebol de Salão e na Federação
Paulista de Futebol de Salão, e o estendi até maio de 1988
após romper barreiras de preconceito.
Essa experiência foi posterior
à interrupção da minha carreira de futebolista no Guarani
Futebol Clube, que decidiu unilateralmente terminar com
o futebol feminino em 1983, sem nenhuma explicação para
o elenco, após um ano e meio de grande sucesso (conquistamos
todos os títulos que disputamos e vencemos o único jogo
internacional – Venezuela – que realizamos). Esta equipe
foi uma entre outras equipes de mulheres que tentaram se
estabelecer na prática do futebol no Brasil (pesquisa de
Eriberto Lessa, publicada no Jornal da Unicamp em maio de
2003, orientada por mim na FEF, encontrou três momentos
de pratica de futebol pelas mulheres: 1913 e 1921 em São
Paulo e 1940, no Rio de Janeiro). Meu grande interesse pelo
futebol e pela igualdade de gênero no Brasil me levou a
uma nova pesquisa, agora em parceria com o professor Osmar
Souza Júnior. O estudo já encontrou registros de uma equipe
de Araguari (MG), formada para jogos-exibição no ano de
1959, que contava com uma estrutura formada por técnico,
uniformes, alimentação e transporte para os jogos. As mineiras
clamam para elas o pioneirismo no futebol, mas esse é um
tema para outro artigo.
Mas o que há entre o futebol
e o futsal que foi promovido nas dependências da Unicamp?
Ambos são jogos com os pés esportivizados e que tiveram,
historicamente, uma prática predominantemente masculina.
É curioso que os jogos de bolas que deram origem ao futebol
e ao rugby na Grã-Bretanha do século XIX eram modalidades
populares praticadas tanto por homens quanto por mulheres.
Os jovens rapazes saídos das escolas públicas de Eton e
Rugby criaram inicialmente o esporte denominado futebol,
em 1863, exclusivamente para homens.
Esta foi uma atitude claramente
discriminatória e restritiva do gênero feminino. Como a
esportivização dos jogos de bolas com os pés foi uma necessidade
da elite frequentadora das public schools, a restrição da
mulher a uma vida pública por várias décadas do século XX
fez com que a cultura de jogos mais apropriados para homens
emergisse.
No Brasil, os argumentos
médicos dando conta de que algumas práticas esportivas (futebol,
futsal e lutas) ofereciam riscos à geração de filhos acabaram
por reforçar a cultura local da desigualdade de gênero no
âmbito do esporte. A iniciativa veio do próprio executivo
que proibiu a prática destes esportes pelas mulheres de
1965 a 1979.
Desconhecendo tal proibição, várias mulheres começaram a
jogar futebol. Eu mesma, por influência de irmãos, “aprendi
a andar” com uma bola nos pés.
Já um pouco mais livres
de preconceitos, mas não totalmente isentas deles, nossas
entrevistadas também aprenderam a jogar com irmãos, primos
e, diferentemente da minha geração, com um grande apoio
da família. Talvez motivadas pelo sucesso da seleção brasileira
desde os anos de 1990, quando permitiram nossa participação
em campeonatos mundiais.
Este artigo pretendeu esclarecer
os leitores sobre os equívocos da história oficial do futsal
e chamar a atenção para o papel da Unicamp na diminuição
da desigualdade de gênero e na democratização do esporte
feminino, quando, entre outras ações, permite a utilização
do GMU para uma competição tão importante, que inclusive
gerará novos conhecimentos por meio das pesquisas que a
FEF está realizando.