|
Tese mostra como Camões fez a ponte
entre português arcaico e moderno
LUIZ
SUGIMOTO
Depois
do mestrado estudando a ortografia da Carta de Pero Vaz
de Caminha, Nazarete de Souza passou os cinco anos de doutorado
debruçada sobre Os Lusíadas e não faz ideia de quantas
vezes leu a obra de Luís Vaz de Camões. “A Carta de
Caminha registra um sistema ortográfico anterior às primeiras
gramáticas da língua portuguesa, ao passo que o épico
camoniano, publicado em 1572, é de um período posterior.
Por isso, foi interessante tomar esses dois corpus para,
a partir deles, compreender melhor a evolução da ortografia
da Língua Portuguesa”.
Para a tese apresentada
no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, a
autora teve a orientação do professor Luiz Carlos Cagliari,
que há bom tempo desenvolve um projeto temático voltado
ao estudo da história da ortografia, com foco em obras
literárias e outros documentos em nossa língua. Em entrevista
na próxima página, Cagliari fala da importância das pesquisas
sobre sistemas de escrita do ponto de vista linguístico
e histórico.
A justificativa de Nazarete
de Souza para o esforço despendido em seu estudo é a inexistência
de trabalhos detalhados que permitam definir o sistema ortográfico
de diferentes épocas. “Nas escolas, a ortografia é abordada
apenas em sua questão didática, quanto ao que é certo
ou errado ortograficamente. Já a história da Língua Portuguesa,
de forma geral, conta como o latim foi evoluindo para o
português, parando nisso. É como se a ortografia não
tivesse mudado e continuássemos a escrever como antes”.
A escolha de Os Lusíadas,
segundo a autora da tese, se deu justamente porque ele representa
um marco na transição do português arcaico para o moderno,
embora este caráter inovador da obra de Camões seja outro
aspecto pouco valorizado por estudiosos da língua. “É
uma obra muito analisada nos planos literário, ideológico,
geográfico, político, religioso e, em termos linguísticos,
quanto a questões filológicas, sintáticas, lexicais.
Há pouquíssima referência à ortografia, e é com isso
que a tese pretende contribuir”.
Nazarete de Souza explica
que Camões apresenta um modelo ortográfico simples, abandonando
hábitos antigos de escrita. “Ele eliminou muitas letras
desnecessárias presentes nas palavras, como o ‘s’ de
‘sciencia’; excluiu os dígrafos como ‘th’ e ‘ph’,
antes usados apenas por razões etimológicas; e reduziu
as letras duplicadas, muito presentes na escrita arcaica”.
De acordo com a autora da
pesquisa, as vogais duplas desaparecem, ou são encontradas
raramente, como para assinalar o timbre das vogais ou a
percepção que o escritor tinha da fusão de duas vogais
(hoje assinalada pela crase): “aaquela”, “aas” (às),
“vee” (vê) e “vaa” (vá). “Depois de Os Lusíadas,
o til, antes adotado para nasalizar vogais e abreviar palavras,
também foi se estabelecendo como na escrita atual”.
A
pesquisadora aponta variação na ortografia camoniana,
notadamente em relação ao uso de vogais. “O som de [i],
por exemplo, aparece representado na escrita pelas letras
‘i’, ‘y’ e ‘j’ (este último apenas em casos
de maiúsculas em nomes próprios e início de verso: “Iupiter”,
“Iustiça”, “Iuliana”). A obra também traz resquícios
do português arcaico, tal como a grafia com ‘h’ em
“hum” e “himos”, e sem ‘h’ nas formas do verbo
“haver”.
Na interpretação da pesquisadora,
Camões simplificou o que considerava mais acertado para
a língua, sem qualquer pretensão de revolucionar a escrita
do português, embora sua obra seja vista, hoje, como uma
clara divisão entre a antiga ortografia e os novos padrões
introduzidos pelos estudiosos do século XVI. “O fato
é que, a partir da obra camoniana, as palavras começam
a ter uma forma de escrita menos suscetível à variação
livre”.
Bem escrever
Ainda que não alimentasse pretensões revolucionárias,
a autora do estudo lembra que Luís de Camões teve excelente
formação escolar, era extremamente culto e gozava de acesso
à corte. “Não era um indivíduo comum, e sim um grande
poeta, em contato com o que se escrevia na época e a par
das discussões a respeito da língua. Ao produzir Os Lusíadas,
sabia o que estava fazendo. Como a obra seria dedicada ao
rei, certamente preocupou-se com o ‘escrever bem’”.
A pesquisadora observa que
havia no período grande preocupação com a sistematização
ortográfica. Antes de Os Lusíadas, circularam obras dos
gramáticos Fernão de Oliveira (1536) e João de Barros
(1540) e, posteriormente, trabalhos de vários ortógrafos
como Pero de Magalhães de Gândavo (1574), Duarte Nunes
de Leão (1576) e Álvaro Ferreira de Vera (1631). “Este
conjunto de obras não foi suficiente para firmar uma ortografia
definida e o português continuou sendo escrito conforme
o entendimento particular de cada escritor, que adotava
o critério que considerava mais conveniente”.
A ortografia de Camões
foi tomada como modelo pelo filólogo, linguista e lexicógrafo
Gonçalves Viana quando apresentou suas propostas de reforma
ortográfica da Língua Portuguesa no século XIX. “As
propostas de Viana acabaram resultando na reforma ortográfica
de 1911, adotada por Portugal e Brasil”.
Obra planejada
Nazarete de Souza realizou sua pesquisa com base na primeira
impressão de Os Lusíadas, de1572, que se encontra na Biblioteca
Nacional do Brasil. Uma segunda edição, lançada logo
no mesmo ano, está na Biblioteca Nacional de Portugal.
As duas edições apresentam diferenças ortográficas e,
para a escolha da primeira edição, pesou o fato de provavelmente
ter sido a revista pelo próprio Camões.
A pesquisadora atenta que
Os Lusíadas não é fruto de um estalo de gênio e a obra
sequer foi idealizada por Camões. “Houve um planejamento
no sentido de compor uma obra que engrandecesse Portugal
e seus feitos no período das grandes navegações. No final
do século XV já se discutia a ideia de escrever uma obra
desse porte e um italiano, Ângelo Policiano, teria se oferecido
para escrevê-la. Não encontrei registros que explicassem
a escolha de Camões”.
Passando adiante
Na opinião de Nazarete de Souza, as pesquisas para a Carta
de Caminha e Os Lusíadas levaram à criação de uma metodologia
bem-sucedida, que vem sendo copiada em outras instituições
– a tese traz os pormenores. “Nesse trabalho de doutorado,
especificamente, foi feito um paralelo entre as ocorrências
encontradas na obra de Camões e as propostas dos gramáticos
e ortógrafos da época. O objetivo é passar esta metodologia
adiante, contribuindo para novos estudos que ajudem a compor
a história da ortografia da Língua Portuguesa”.
Um pouco sobre o homem
Ao pesquisar sobre a vida pessoal de Camões, Nazarete
de Souza deparou-se com a citação de Nadia Gotlib, autora
do livro Luis Vaz de Camões (1980): “Dúvidas, incertezas,
hipóteses cercam até hoje a vida de Luís Vaz de Camões:
no seu tempo, só os reis tinham biógrafos (...). Camões
não foi rei. E, portanto, não houve registro sistemático
de sua vida, nem por estudiosos contemporâneos, nem por
parentes seus”.
Camões nasceu em 1524 ou 1525, provavelmente em Lisboa.
Autores diversos o descrevem “como virilmente gentil,
estatura mediana, cabelos louros, olhos vivos, nariz aquilino,
fronte carregada a provar talento, alegre e afável (...)
boca um tanto grossa, ligeiramente sarcástica, debaixo
de um bigode arqueado e fulvo (cor de ouro). (...) tem
hereditariamente, do tipo paterno, o vigor dos músculos
e a grossura dos ossos; do tipo materno, a graça das
linhas e o garbo das formas”.
Segundo Nazarete de Souza, Camões era muito assediado
pelas mulheres e querido da infanta Dona Maria, que estava
envolvida no mundo das letras. “As conquistas amorosas
e os privilégios na corte provocavam muita inveja entre
outros poetas e intelectuais e, por isso, ele se via sempre
envolvido em confusões, sendo preso e desterrado diversas
vezes”.
As informações disponíveis dão conta de que Camões
nunca foi rico e teria recebido pelo trabalho como militar
(na África e nas Índias) e pela obra Os Lusíadas uma
tença (pensão) de 15 mil réis, paga com irregularidade
e por apenas três anos. “É um valor considerado ‘esmola
aviltante’ para alguns estudiosos e ‘nos usos de então’
por outros”.
Consta que Camões morreu pobre, em 1580, sendo sepultado
em cova comum na porta do Mosteiro de Sant’Ana. E, na
tese, Nazarete de Souza registra outra especulação sobre
a vida do poeta. “Estudiosos sugerem que Camões teria
escrito Os Lusíadas com capricho não apenas por estar
ciente da grandeza do projeto, mas também como mea culpa,
a fim de limpar sua reputação junto à corte e ser reconhecido
como um homem de valor”.
“A grafia das palavras não é um fato
imutável”
“Conhecer
a história da nossa língua é conhecer uma parte importante
de nossa história como cidadão e como nação”,
afirma o professor Luiz Carlos Cagliari, que desde 1987
conduz estudos sobre sistemas de escrita do ponto de
vista linguístico e histórico. “Através do estudo
de obras e documentos, produzidos ao longo da história
da língua, é possível estabelecer como o sistema
ortográfico da Língua Portuguesa começou e foi se
transformando até chegar aos dias de hoje”.
Luiz Carlos Cagliari é livre-docente e professor
titular pela Unicamp, tendo atuado, entre 1974 e 2004,
no ensino de fonética e de fonologia no Departamento
de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL), onde se mantém como professor colaborador. Tem
mestrado pela Unicamp e doutorado pela Universidade
de Edimburgo (Escócia). Atualmente é professor adjunto
no Departamento de Linguística da Faculdade de Ciências
e Letras da Unesp (Araraquara).
Além da fonética e da fonologia, que são suas
áreas de especialização, Cagliari desenvolve pesquisas
e estudos nas áreas de sistemas de escrita, dedicando-se
particularmente à ortografia (teoria e história) e
alfabetização. Na entrevista que segue, ele lamenta
que a história da ortografia da Língua Portuguesa
nunca apareça como conteúdo dos programas de ensino
de português. “Compreender como a ortografia funciona
é um dos segredos de uma alfabetização bem sucedida”.
Jornal
da Unicamp – Como surgiu a proposta de estudar a história
da ortografia da Língua Portuguesa e quando teve início
a linha de pesquisa?
Luiz Carlos Cagliari – Desde 1987 venho
estudando os sistemas de escrita de um ponto de vista linguístico
e histórico. Dentro desse projeto, surgiu a necessidade
de um estudo mais aprofundado sobre a natureza, função
e usos da ortografia. Os estudos históricos vieram como
decorrência das informações que iam se juntando ao longo
do projeto sobre sistemas de escrita.
Com relação à ortografia, surgiu a ideia de extrair
o sistema ortográfico de uma obra através do levantamento
de dados. Na prática isso significa estabelecer as “bases”
ortográficas da obra, mostrando as regras subjacentes e
as variantes. Através do estudo de obras e documentos,
produzidos ao longo da história da língua, é possível
estabelecer como o sistema ortográfico da Língua Portuguesa
começou e foi se transformando até chegar aos dias de
hoje.
Além dos documentos escritos, muito contribui para o projeto
o estudo das gramáticas e dos tratados de ortografia que
foram publicados até hoje. Os projetos de reforma ortográfica,
implementados ou não, também ajudam a dimensionar o problema
histórico, as preocupações das pessoas e os resultados
que acabaram acontecendo por tradição ou por força da
lei.
JU
– Peço que nos ajude a mensurar a importância de se
construir essa história da ortografia.
Luiz Cagliari – Conhecer a história
da nossa língua é conhecer uma parte importante de nossa
história como cidadão e como nação. Os estudiosos da
Língua Portuguesa já propuseram algumas etapas pelas quais
passou a história da ortografia, porém, sempre com considerações
muito gerais e nem sempre muito precisas. Um estudo mais
detalhado a partir de como as pessoas escreviam e de como
os editores publicavam suas obras é de importância fundamental
para um conhecimento melhor da realidade histórica de
nossa ortografia.
Por outro lado, os estudiosos procuraram ver a língua
na sua apresentação mais gramatical, não levando em conta
o que as pessoas faziam quando escreviam cartas e documentos
que não eram para ser impressos. Os estudos de algumas
obras no passado levaram em conta mais o fato de haver diferenças
entre edições do que em buscar um sistema geral, presente
na obra.
JU
– Quais impactos esse conhecimento traria ao ensino de
português?
Luiz Cagliari – Infelizmente, apesar
de haver mudanças constantes nos conteúdos do ensino de
português em todos os níveis de escolaridade, alguns aspectos
importantes nunca foram contemplados ou o foram de modo
inadequado. Nesse sentido, poderia mostrar muitos conteúdos,
mas a história da língua e, especificamente, a história
de sua ortografia nunca apareceram como conteúdos dos programas
de ensino de português, na dimensão em que deveriam.
No caso da história da ortografia, os professores alfabetizadores
(e outros) podem constatar como já escrevemos as palavras
com diferentes sistemas ortográficos, o que os leva a estranhar
menos os erros das crianças em processo de alfabetização.
Das várias possibilidades de escrita que uma palavra tem,
a ortografia escolhe uma forma, que passa a ser usada até
que se altere. A grafia das palavras não é um fato imutável,
mas sujeito às variações como tudo o mais na língua.
Compreender como a ortografia funciona é um dos segredos
de uma alfabetização bem sucedida.
JU – Como era a ortografia da Língua Portuguesa
antes e depois de Os Lusíadas? Pode discorrer sobre as
mudanças ocorridas ao longo do tempo?
Luiz Cagliari – O século XVI marca muitas
novidades linguísticas em Portugal (e no Brasil), entre
elas, as duas primeiras gramáticas (de Fernão de Oliviera
– 1536 e a de João de Barros – 1540) e os primeiros
tratados de ortografia (Pero de M. de Gândavo – 1574
e Duarte Nunes de Leão – 1576). Camões publicou sua
obra em 1572 e, certamente, conhecia as obras dos linguistas
de seu tempo.
Até o final do século XV, encontramos ainda muitos manuscritos
cheios de abreviaturas e uma ortografia que vinha se firmando
há séculos (desde o século XIII). Portanto, havia muitas
marcas de grafias antigas. No século XVI, a ortografia
caminhava para um sistema mais bem definido e de uso mais
geral.
Os
Lusíadas teve uma importância muito grande como modelo
ortográfico porque se tornou um grande marco na literatura
portuguesa. Na obra, observa-se uma tendência a uma escrita
mais simplificada, evitando os dígrafos desnecessários
como a duplicação de consoantes e padronizando as terminações
das palavras. Esse modelo iria ser combatido pelos que achavam
que os dígrafos eram necessários porque mostravam a origem
grega de palavras.
Esse projeto etimológico logo caiu em muitos erros, exigindo
uma reforma, que ocorreu no final do século XIX, ocasião
em que a idéia de uma escrita simplificada voltou a orientar
a reforma que apareceu logo no início do século XX (1906).
Embora a história da ortografia da Língua Portuguesa mostre
duas correntes: uma etimológica e outra sônica, a primeira
querendo revelar a origem das palavras e a segunda querendo
apenas uma relação letra e som que representasse a pronúncia
atualizada das palavras, a obra de Camões mostra um certo
comprometimento com as duas correntes.
JU – Além da Carta de Caminha e de Os Lusíadas,
o senhor possui orientandos estudando outros documentos?
Luiz Cagliari – Como parte de meu projeto
de estudo da ortografia, foram realizadas algumas investigações
históricas. Dois orientandos de iniciação científica
fizeram uma investigação sobre a ortografia em cantigas
dos cancioneiros medievais. Dois outros estudaram documentos
dos séculos XVI a XVIII escritos no Brasil. Uma aluna de
iniciação científica pesquisou a história das abreviaturas
do português, desde os cancioneiros até rótulos de supermercados.
Uma aluna do mestrado estuda a ortografia de Os Sermões
do Padre Antônio Vieira e outra estuda a história das
representações gráficas das fricativas em Portugal e
no Brasil. Uma aluna do doutorado estuda documentos maranhenses
da época da balaiada.
JU
– Qual a perspectiva desta linha de pesquisa com a unificação
ortográfica no mundo lusófono?
Luiz Cagliari – Certamente os resultados
dos estudos apontados acima não estão ligados a reformas
ortográficas nem a propostas futuras de modificação da
ortografia. O objetivo deles é o estudo da história da
ortografia, da formação de uma tradição e das manifestações
de uso individual da escrita na Língua Portuguesa em diversas
ocasiões e lugares. As reformas ortográficas precisam
ser discutidas dentro de um quadro teórico que, infelizmente,
não tem sido levado em conta nas reformas do século XX
e XXI. Falta um pouco de teoria sobre o que é a ortografia
e não informações históricas.
A relevância maior dos trabalhos realizados, além das
informações mais precisas e detalhadas sobre a história
da ortografia da Língua Portuguesa, está no esforço para
se estabelecer uma metodologia nova para permitir que se
extraiam sistemas ortográficos de obras e documentos escritos.
Já houve alguns esforços com bons resultados obtidos em
trabalhos desenvolvidos na USP.
Somando o que se fez recentemente pode-se constatar que
é possível ter uma boa metodologia para trabalhar com a
história da ortografia de uma língua, sem precisar ter ideias
muito vagas como sistema fonético, sistema etimológico,
sistema sônico, etc. Todo sistema ortográfico precisa ter
referências etimológicas, fonéticas, fonológicas além de
levar em conta o princípio cumulativo próprio dos sistemas
de escrita, que acaba gerando uma tradição com grande força
de uso na sociedade. Os nossos esforços têm mostrado um
novo modo de estudar a ortografia e isso é importante para
novas investigações.
|
|