Pesquisa mostra como micotoxinas
migram do cacau para o chocolate
Autora de tese acompanha as
diferentes
etapas do processamento da castanha
CARMO
GALLO NETTO
Diferentemente
das bactérias, que possuem estrutura simples e sem núcleo
delimitado, os fungos são microorganismos que apresentam
uma estrutura celular semelhante à do ser humano, embora
com metabolismos diferentes. Durante sua multiplicação,
os fungos podem dar origem a metabólitos secundários, alguns
deles benéficos, caso da penicilina, utilizada como antibiótico,
e outros maléficos, como as micotoxinas. Estas constituem
metabólicos tóxicos com efeitos mutagênicos, teratogênicos
e carcinogênicos.
Pesquisas conduzidas no
Brasil e no exterior têm comprovado o desenvolvimento de
fungos principalmente durante os vários dias da secagem
das amêndoas de cacau, etapa que ocorre após a fermentação.
Além da deterioração e consequente influência na qualidade
do cacau e do chocolate, a presença de fungos vem sendo
correlacionada a aspectos da saúde pública devido à possibilidade
de formação de micotoxinas.
O Brasil se encontra entre
os cinco maiores produtores mundiais de cacau e tem parte
de sua produção destinada à exportação após determinados
processos industriais. Com a globalização da economia, a
qualidade dos produtos relacionada à segurança alimentar
é determinante na sua aceitação. Apesar disso, inexistem
no país dados sobre ocorrência e condições em que as micotoxinas
são produzidas no cacau e derivados.
Com vistas à segurança da
população e o descortino de novos mercados consumidores
para os produtos brasileiros derivados do cacau, a veterinária
Marina Venturini Copetti, atualmente professora da Universidade
Federal do Pampa (Unipampa), da cidade gaúcha de Itaqui,
desenvolveu pesquisa relacionada a ele. O trabalho teve
como objetivo acompanhar as diferentes etapas do processamento
do cacau, desde a abertura dos frutos, passando pelo processamento
primário nas fazendas e secundário nas indústrias processadoras,
até a obtenção do chocolate, de maneira a avaliar as inter-relações
existentes nas diferentes fases que determinam a ocorrência
de fungos e consequentemente de micotoxinas nos produtos
envolvidos.
A pesquisa deu origem à
tese de doutorado que analisa fungos e micotoxinas do cacau
ao chocolate, apresentada à Faculdade de Engenharia de Alimentos
da Unicamp (FEA), orientada pelo professor José Luiz Pereira.
O estudo, co-orientado pela pesquisadora Marta H. Taniwaki,
foi realizado em parceria com o Instituto de Tecnologia
de Alimentos (Ital), onde foi desenvolvida a maior parte
dos experimentos. Durante o trabalho, Marina realizou estágio
de doutorado na Denmark Technical University (DTU), em Lyngby,
na Dinamarca, orientado pelo professor Jens Frisvad, onde
foram realizados estudos de metabólitos secundários de alguns
fungos isolados de cacau. A pesquisadora contou também com
a colaboração da Comissão Executiva do Plano da Lavoura
Cacaueira (Ceplac), fazendas e empresas processadoras de
cacau.
São várias as micotoxinas
conhecidas e cada uma delas tem um sítio específico de ação.
Uma das mais conhecidas são as aflatoxinas, cuja ocorrência
está relacionada ao amendoim; elas podem desencadear problemas
hepáticos e até desenvolvimento de tumores. Outra micotoxina
bastante estudada é a ocratoxina A, de ocorrência relacionada
a cereais e café, com ação nos rins. Como as micotoxinas
são muito estáveis, podem originar problemas de saúde mesmo
em quantidades baixíssimas.
Data
de cerca de quatro anos a preocupação maior em estabelecer
limites internacionais para o grau de tolerância de micotoxinas
no cacau. Como os grandes centros de pesquisa estão na Europa
e EUA, onde não há produção de cacau, o que lá se detecta
é principalmente a presença dessas toxinas em algumas amostras
de chocolate ou nos produtos já processados adquiridos por
essas comunidades. Assim, não existem trabalhos que acompanham
todas as fases de processamento de cacau que permitam determinar
o período crítico do surgimento dos fungos toxigênicos,
bem como o da formação de micotoxinas e, em consequência,
o que pode ser feito para contornar o problema ou minimizá-lo.
O caminho percorrido
Para o desenvolvimento da tese foi necessário, primeiramente,
coletar amostras de cacau nas fazendas no sul da Bahia,
principal região cacaueira do Brasil.
O fruto colhido é do tamanho
de um mamão e tem cerca de 40/50 sementes envolvidas por
uma polpa branca. O termo cacau pode ser atribuído tanto
ao fruto quanto à semente. Uma vez rompida a casca do fruto,
as sementes envolvidas pela polpa são colocadas em caixas
de fermentação, onde a polpa servirá de substrato para o
desenvolvimento de microorganismos, essenciais para a formação
dos precursores do sabor de chocolate. No processo, que
dura cerca de seis dias, desenvolvem-se inúmeros microorganismos,
constituídos, inicialmente, de leveduras, depois bactérias
lácticas e acéticas; e, nos últimos dias, podem surgir fungos
filamentosos.
As amêndoas são então submetidas
a um período de secagem, em geral nas chamadas barcaças,
ficam ao sol durante o dia, sendo recobertas por um telhado
móvel à noite. Nesse período, que dependendo das condições
climáticas pode variar de 10 a 21 dias, ocorre a diminuição
da umidade da semente, o que a torna estável microbiologicamente,
ou seja, os microorganismos não são capazes de se proliferar
mesmo na ausência de refrigeração. Marina constatou que
esta fase é crítica para a proliferação de fungos e que,
se as espécies toxigênicas estiverem presentes, podem levar
à síntese das micotoxinas.
Ao chegar à indústria, o
cacau é limpo superficialmente e sofre tratamento térmico
para a remoção da casca protetora que retém grande parte
da contaminação tanto de toxinas quanto de microrganismos,
o que foi verificado pela análise da amêndoa e da casca.
Na sequência, a amêndoa é quebrada em pedaços, originando
os chamados nibs, que, submetidos à moagem dão origem, devido
ao alto conteúdo de gordura e temperatura no processo, a
um produto pastoso denominado liquor . Do liquor prensado
surge uma fase sólida não gordurosa, a torta, e ocorre a
eliminação da manteiga de cacau, que é o produto mais nobre,
utilizada tanto para a produção de chocolates quanto de
cosméticos.
Da torta moída origina-se
o cacau em pó, que é submetido à alcalinização para facilitar
a solubilidade em leite e que em geral chega ao mercado
com adição de açúcar. Apesar da baixa presença de fungos
nestas etapas industriais – uma vez que eliminados durante
o processamento –, as micotoxinas depois de formadas permanecem
estáveis durante todas as etapas, aderidas à fração sólida
não-gordurosa, e são detectadas também no produto final,
seja este chocolate ou cacau em pó.
Com
a colaboração de seus orientadores, Marina seguiu o caminho
do cacau, do fruto colhido ao chocolate encontrado na gôndola
do supermercado, o que a leva a afirmar: “Trabalhamos com
as sementes recolhidas dos frutos recém-abertos, acompanhando
seu processo de fermentação, sua secagem, embalagem e armazenamento;
checamos também as fases de extração da casca da amêndoa,
a obtenção dos nibs, sua moagem e formação do liquor, a
obtenção da torta, da manteiga, a produção do chocolate
e colhemos amostras dos chocolates mais vendidos em supermercados.
Em cada uma destas fases, analisamos a presença de fungos
e micotoxinas”. O desenvolvimento desse trabalho exigiu
análises de cerca de 500 amostras.
As descobertas
Os pesquisadores observaram inicialmente o surgimento de
uma diversidade de fungos na fase da colheita ao ensacamento
das amêndoas. Embora observassem alguns fungos, que podem
originar micotoxinas já na etapa de fermentação, estes apareciam
em quantidades mínimas. Os fungos toxigênicos proliferavam
significativamente durante a secagem. Mas eles detectaram
um problema maior: embora os fungos pudessem ser eliminados
no processamento do cacau, as toxinas, por serem estáveis,
se mantiveram inalteradas até o fim do processo industrial.
No desenvolvimento do trabalho,
constataram que no cacau que saiu das fazendas a presença
de micotoxinas em geral foi baixa quando seguidos os processos
fermentativos tradicionais. O problema pode se agravar com
a mistura do cacau brasileiro com o importado de baixa qualidade.
Marina afirma que se o chocolate produzido no Brasil fosse
processado a partir de frutos sadios, seguindo-se o período
de fermentação, e não resultasse de adição de cacau de má
qualidade importado, a presença das micotoxinas seria irrisória,
pois, mesmo com a mistura, as quantidades detectadas são
pequenas, em média abaixo de 0,5 µg/Kg de chocolate. Os
organismos internacionais de controle atualmente estudam
o estabelecimento de um limite máximo para ocratoxina em
cacau e produtos de 1,0 µg/Kg. Foi observado ainda que praticamente
toda a micotoxina concentra-se na torta de cacau e não na
manteiga, tornando o chocolate branco quase que isento de
contaminação.
Ao ser levada a verificar
porque determinadas amêndoas produzidas no Brasil apresentavam
contaminação maior por ocratoxina, Marina constatou que
o problema tem origem em prática incorreta. Alguns fazendeiros
têm adotado a prática de não fermentar as amêndoas, que
são levadas diretamente para secagem. Esta prática impede
o desenvolvimento de alguns microrganismos que secretam
ácidos que inibiriam a multiplicação de fungos toxigênicos.
Nestes casos, proliferam os fungos e há um maior nível de
toxina produzida. Esse procedimento, diz ela, é adotado
principalmente porque permite o ganho de tempo e a redução
do trabalho com a eliminação da etapa de fermentação. Além
disso, em algumas fazendas, parte da polpa é retirada para
produção de geléias e sucos.
Marina Venturini Copetti
revela muita satisfação em relação aos resultados alcançados:
“Fizemos experimentos que nos possibilitaram concluir que
a fermentação com a polpa é importante para evitar a ocorrência
da ocratoxina, o que nos permitiu deduzir o importante papel
dos ácidos orgânicos formados no processo, pois possivelmente
são eles que inibem a multiplicação dos fungos. Constatamos
que o desenvolvimento de fungos toxigênicos ocorre de maneira
determinante na secagem, pois encontram umidade adequada
e não têm competidores. Percebemos que praticamente toda
a toxina fica no cacau e uma percentagem muito pequena vai
para a manteiga. Vimos que essa toxina se mantém estável
durante todos os processamentos e que, uma vez produzida,
chega até o produto final. Por tudo isso, foi um trabalho
que eu gostei muito de realizar”.
Para atenuar a ocorrência
de fungos, Marina sugere a fermentação apropriada do cacau,
a limpeza das barcaças, removendo os resíduos das secagens
anteriores e uma secagem das amêndoas em um período não
muito prolongado, se necessário com utilização de secadores
artificiais, para evitar maior tempo de multiplicação fúngica
pela presença de umidade, mas de forma a permitir que os
ácidos que se formaram durante a fermentação possam ser
volatilizados, sem o que as amêndoas teriam seu sabor comprometido.
Como a Europa se prepara
para estabelecer uma legislação restritiva à presença de
micotoxinas no cacau que lhes chega, ela teme que se o Brasil
não fizer o mesmo em tempo hábil lhe possa ser vendido o
produto de qualidade inferior, rejeitado por aqueles mercados.