Jornal
da Unicamp - Já podemos falar em um cenário mundial pós-crise?
Há sinais que evidenciem este cenário ou pelo menos
de que o pior da crise tenha passado?
Ricardo Carneiro - Não creio que a crise
tenha sido superada tão depressa. O fato de estar havendo
uma leve recuperação da renda e do emprego nos países avançados
e nos periféricos não significa muito diante da profundidade
da crise. De qualquer modo, há uma forte divergência entre
os economistas quanto ao assunto. Há os que apostam que
“o pior já passou”, outros que falam em reincidência de
fases mais agudas. Do meu ponto de vista estaremos diante
não de movimentos bruscos, mas de um lento desenrolar da
crise, marcado por um baixo dinamismo permanente que pode,
eventualmente, ser compatível com alguns períodos de melhora.
Ou seja, creio que a crise terá uma dimensão crônica.
JU – Após
a crise de 1929 houve longo período de recessão mundial.Desta
vez, em um ano, a recessão parece estar chegando ao fim.
Houve uma reação exagerada com a atual crise ou o mundo
está mais preparado para sair de turbulências como as de
1929?
Ricardo Carneiro – A grande diferença que marca o desenrolar
da crise atual ante a crise de 1929 é a forma e intensidade
da ação do Estado. Em 1929 houve uma espécie de omissão
do Estado – por meio das suas principais agências econômicas,
o Banco Central e o Tesouro. As ações só começaram a ganhar
corpo, no caso americano, por exemplo, em 1933, quando o
impacto maior da crise em termos de emprego e PIB já havia
se manifestado.
Em 2008, o Estado agiu prontamente
com os bancos centrais emprestando dinheiro barato aos bancos
e uma gama mais ampla de instituições financeiras. O Tesouro,
por sua vez, ampliou seus gastos. Com isso se evitou uma
falência em cadeia dos agentes – o que os economistas chamariam
de deflação – e, ao mesmo tempo, promoveu-se uma sustentação
da renda pelo gasto público.
Isto explica a menor gravidade
da crise atual em termos de perda de renda e emprego. Ma
é preciso também analisar os limites da ação do Estado;
ela vai se manifestar exatamente na forma e intensidade
da recuperação. Depois da catástrofe de 1929 houve, na década
de 1930, uma recuperação substantiva induzida pelo gasto
público. Agora é diferente: ao evitar a deflação, o Banco
Central evitou que os ativos e endividamento das famílias
e das empresas “virassem pó” como no passado. Em contrapartida,
o fato de manter as dívidas faz com que esses agentes estejam
menos dispostos a gastar seus eventuais aumentos de renda,
induzidos pelo setor público. Durante um tempo mais ou menos
longo todos vão procurar reduzir suas dívidas ao invés de
gastar.
JU – É possível
fazer uma comparação entre as duas crises?
Ricardo Carneiro - Há semelhanças e diferenças.
Ambas as crises são resultado da operação de um capitalismo
desregulado e financeirizado. Nas duas houve um processo
de ampliação sustentada de preços de ativos, descolada dos
fundamentos, as chamadas bolhas que terminaram por “furar”,
ocasionando vários tipos de problemas. É interessante notar
que esse tipo de capitalismo tem na especulação uma importante
mola propulsora que lhe confere durante certo tempo elevado
dinamismo.
Mas, ele leva sempre a um
“descolamento” e a um ajuste que nem mesmo a ação do Estado
pode evitar. As diferenças são relevantes e dizem respeito
de um lado ao ativo principal sobre o qual se fixou a especulação.
Em 1929, a bolsa de valores era o carro-chefe; em 2008,
os imóveis. No segundo caso, o grau de envolvimento das
famílias foi muito maior. Ou seja, havia um percentual mais
elevado de famílias americanas comprometidas na especulação
imobiliária, até porque a propriedade de imóveis é mais
disseminada.
JU – Com a fragilidade
da economia norte-americana diante da crise, o senhor acha
que haverá, do ponto de vista econômico, uma divisão de
forças e uma nova configuração internacional?
Ricardo Carneiro - Na verdade, mesmo antes
da crise já era visível uma certa redistribuição do poder
econômico global em direção à Ásia e principalmente à China.
A crise deve acelerar este processo, mas ele será eivado
de contradições ou de marcha e contra-marchas. Eis alguns
exemplos: dificilmente a economia americana voltará a ser
a “locomotiva do mundo” como foi no ciclo recente, mas não
há outra candidata a substituí-la.
Para manter o ritmo de crescimento,
as economias asiáticas terão que se alimentar do dinamismo
interno, o que não é trivial. O crescimento da dívida pública
americana deverá criar algum grau de rejeição ao dólar como
moeda de reserva internacional. No entanto, não há no horizonte
uma moeda substituta para cumprir o seu papel. A proliferação
de moedas/acordos regionais pode ser uma resposta. Em síntese,
nós deveremos entrar num período de relações econômicas
internacionais mais instáveis até que alguma outra ordem
de maior estabilidade seja posta no seu lugar.
JU – Podemos
falar num novo modo de regulação da economia internacional
e da reabilitação do papel Estado nessa regulação?
Ricardo Carneiro - Até o momento não, pois o que temos de
fato é o G-20 que constitui na prática um grupo informal
de consulta. É importante enquanto agrupamento por incluir
países em desenvolvimento, mas seria necessário que caminhasse
para alguma forma institucional. Por sua vez é necessário
considerar que há interesses divergentes dentro do grupo.
Na minha opinião, uma forte regulação do sistema financeiro
internacional, ou seja, dos fluxos de capitais, que constituiria
a contrapartida à regulação financeira doméstica, não interessa
aos EUA. Isto significaria reduzir a importância do dólar
no cenário internacional. As medidas que têm se originado
do G-20 são, por enquanto, cosméticas ou retóricas.
JU – O senhor
poderia citar aspectos negativos e positivos de reação à
crise que foram adotados pelos principais países afetados,
incluindo o Brasil?
Ricardo Carneiro – Creio que a resposta
à crise nos vários países, incluindo o Brasil, foram no
geral positivas. Ela envolveu a aceitação da importância
do papel do Estado como instrumento de estabilização em
momentos de turbulência. O aspecto negativo é que esse papel
estabilizador é visto como necessário apenas em momentos
de crise. Ou seja, creio que não se viabilizou ainda um
consenso ancorado em forças sociais expressivas capazes
de propor e implantar uma nova forma de regulação e de participação
do Estado na vida econômica capaz de evitar a constituição
de economias guiadas pela especulação.
JU – Qual é
o papel dos Brics – Brasil, Rússia, Índia e China – na retomada
do crescimento mundial diante deste cenário?
Ricardo Carneiro - O que caracteriza esses
países é uma certa capacidade – diferenciada entre eles
– de resistir à crise. A China está muito melhor posicionada
pelo seu grau de desenvolvimento produtivo, volume de reservas
internacionais, perfil da política econômica etc. Seguem-se
a Índia, o Brasil e a Rússia. De todo modo, devemos deixar
de lado a ilusão de que esses países podem liderar um novo
ciclo de crescimento mundial: eles não têm as pré-condições
para fazê-lo, tais como tamanho, moeda, finanças, controle
da tecnologia etc. Talvez, quem sabe, essa capacidade possa
vir daqui a uns 20, 30 anos se esses países continuarem
numa trajetória de crescimento acelerado.
JU – Em certa
medida, a crise evidenciou, internacionalmente, o bom desempenho
da economia brasileira, já que o país foi um dos últimos
a entrar e está sendo um dos primeiros a sair dela, segundo
analistas. Que fatores podemos destacar da economia brasileira
que contribuíram para o bom desempenho do país diante da
crise, quando comparado a outras nações?
Ricardo Carneiro - As ações do Brasil têm
semelhanças e distinções com as dos demais países. Do ponto
de vista macroeconômico, seguimos a orientação correta de
realizar uma política anti-cíclica de razoável envergadura:
reduzimos a taxa de juros para patamares civilizados – embora
com algum atraso em relação aos demais países – e diminuímos
o superávit primário em cerca de 2% do PIB.
Cometemos o pecado de deixar
a nossa moeda se valorizar, o que nos custou algum dinamismo
e pode custar ainda mais no futuro. De qualquer modo, nessa
dimensão, o saldo foi positivo. O outro aspecto que merece
ser enfatizado, e que é talvez o mais importante, refere-se
à ação do Estado no plano mais estrutural. O Brasil – assim
como a China, a Índia e a Rússia – possui importantes setores
econômicos controlados pelo Estado. Assim foi possível evitar
uma queda substancial no crédito por meio dos bancos públicos
e assegurar um programa importante de investimentos na área
de energia por meio da Petrobrás. O PAC também tem constituído
um importante instrumento de criação de expectativas favoráveis
sobre o futuro. Em resumo, enfrentamos melhor a crise, saímos
dela com uma perspectiva razoável de crescimento mas ainda
é necessário deixar mais clara a estratégia de um crescimento
de longo prazo num mundo marcado por fortes incertezas.