FEQ aprimora processos
para produção
de novos fármacos e de ‘cosmefármaco’
Pesquisadores dedicam-se ao
escalonamento de vacina contra
tuberculose e de pomada para leishmaniose cutânea
MANUEL
ALVES FILHO
Por
mais revolucionária que seja a tecnologia desenvolvida no
laboratório de uma universidade ou centro de pesquisa, ela
não terá condições de ser aplicada diretamente pela indústria
se uma etapa nevrálgica do processo de transferência do
conhecimento não for bem equacionada: o escalonamento. Em
outras palavras, é preciso assegurar que os resultados obtidos
na bancada sejam reproduzidos de maneira eficiente em escala
industrial.
Pesquisadores da Faculdade
de Engenharia Química (FEQ) da Unicamp dedicam-se atualmente
ao escalonamento de três tecnologias que prometem trazer
impactos positivos para a saúde e o bem-estar do brasileiro.
Caso venham a se transformar em produtos comerciais, elas
ajudarão a combater a leishmaniose cutânea, a tuberculose,
a osteoartrite e até mesmo rugas de expressão, problemas
que afligem milhões de pessoas no país. Os estudos contam
com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo (Fapesp), Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (Capes) e empresas privadas.
Os trabalhos vêm sendo realizados
no Laboratório de Desenvolvimento de Processos Biotecnológicos
(LDPB) da FEQ, por um grupo coordenado pela professora Maria
Helena Andrade Santana. De acordo com ela, o objetivo dos
pesquisadores é estabelecer processos e parâmetros operacionais
eficazes para a ampliação da escala de produção dessas tecnologias,
de modo que a indústria possa absorvê-los e aplicá-los.
“Produzir algo em escala laboratorial é uma coisa. Produzir
o mesmo em dimensão industrial é completamente diferente.
Com frequência, temos que fazer adaptações ou promover alterações
no processo laboratorial para alcançar a meta desejada”,
explica. Muitas vezes, detalha a docente, o aumento de escala
torna-se necessário para a obtenção de material em quantidade
adequada até mesmo para ensaios pré-clínicos (em animais)
e clínicos (em humanos).
Um dos projetos de escalonamento
no qual a equipe está envolvida refere-se à produção de
nanopartículas desenhadas para promover o transporte e a
liberação controlada de um fármaco usado no tratamento da
leishmaniose cutânea. Os testes realizados em laboratório
com modelos animais, que contaram com a colaboração de pesquisadores
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apontaram
que a nanocápsula contendo a medicação consegue penetrar
nas camadas mais profundas da lesão, sem, contudo, atingir
a corrente sanguínea. “Os resultados dos ensaios foram excelentes
e o processo é passível de escalonamento”, analisa a professora
Maria Helena. Segundo ela, o principal desafio dos cientistas
foi desenhar uma partícula que cumprisse as funções desejadas.
Eles optaram pelo uso de lipossomas, que são partículas
lipídicas obtidas, nesse caso, a partir da lecitina de ovo.
Entre as características dessas minúsculas cápsulas estão:
elasticidade e capacidade de interagir com as células do
organismo.
Sem essas peculiaridades
dos lipossomas, conforme a docente da FEQ, não teria sido
possível transportar e liberar controladamente o fármaco
no ponto desejado. “Para se ter uma ideia, os lipossomas
medem cerca de 100 nanômetros, mas os poros da pele têm
somente 30 nanômetros de diâmetro. Ou seja, para atingir
a área mais profunda da lesão e depois liberar o fármaco,
o veículo teria que se deformar para passar pela superfície
da pele. Nos ensaios que realizamos, nós vimos claramente
que esse objetivo foi atingido”, afirma a coordenadora do
LDPB. O processo já foi patenteado. Como as nanopartículas
foram produzidas por um método não escalonável, devido ao
custo das matérias-primas, os pesquisadores dedicam-se agora
à definição de um modelo de produção que possa ser aplicado
pela indústria. “Considerando os resultados preliminares,
eu diria que estamos próximos dessa meta”, adianta a professora
Maria Helena. Segundo os dados mais recentes do Ministério
da Saúde, em 2008 foram registrados no Brasil aproximadamente
20 mil casos de leishmaniose cutânea.
Tuberculose
O segundo projeto de escalonamento executado pelo grupo
do LDPB está relacionado com uma nova vacina de DNA contra
a tuberculose, desenvolvida por pesquisadores da FEQ e da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, vinculada à USP.
A ação atual está sendo realizada dentro do programa denominado
Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), mantido
pela Fapesp. Este Pipe é coordenado por Lucimara Gaziola
de La Torre, atualmente professora da FEQ, que na sua tese
de doutorado desenvolveu o veículo transportador da vacina.
De acordo com a professora Maria Helena, os trabalhos estão
se encaminhado para a fase final com sucesso. “Creio que
em pouco tempo o processo já deva estar escalonado, com
capacidade de produção para os ensaios clínicos e aplicação
por parte da indústria”. O processo a que se refere a especialista
envolve igualmente a produção de nanopartículas de lipossomas
capazes de carrear e liberar o fármaco de forma controlada
no organismo humano.
Os testes laboratoriais,
também realizados com modelos animais, mostraram que o biofármaco,
que já foi igualmente patenteado, tem capacidade de prevenir
a tuberculose, moléstia que atinge cerca de 130 mil pessoas
a cada ano no Brasil. A vacina de DNA, conhecida ainda como
gênica, é considerada mais eficaz e segura do que a vacina
convencional, normalmente preparada a partir de uma parte
atenuada do agente causador da doença. Em ambos os casos,
o objetivo do fármaco é induzir o sistema imunológico humano
a produzir defesas contra o bacilo da tuberculose (Mycobacterium
tuberculosis), mais conhecido por “bacilo de Koch”, por
ter sido identificado pela primeira vez em 1882 pelo cientista
alemão Robert Koch.
No que se refere à terapêutica
gênica, porém, a ação do biofármaco cumpre um processo mais
complexo. No lugar de uma proteína, ele veicula a informação
genética extraída do micro-organismo. É essa informação
genética que atua diretamente no interior da célula onde
o bacilo fica alojado. A vacina tem a função de induzir
a produção da proteína micobatecteriana e estimular de forma
específica os linfócitos que combaterão a infecção causada
pelo agente patogênico. De acordo com a professora Maria
Helena, a previsão é de que a vacina inovadora seja aplicada
em dose única, por via nasal.
Artrose, osteoartrite e preenchimento de rugas
O
terceiro e último projeto de escalonamento em execução
na FEQ está ligado à produção de ácido hialurônico, substância
natural presente nos tecidos humanos. Uma das funções
desse ácido é lubrificar as articulações. No LDPB, ele
é produzido tanto a partir de meio de cultura sintético
quanto a partir do suco ou bagaço do caju, materiais de
baixíssimo custo, por meio de fermentação líquida e sólida.
Segundo a professora Maria Helena, além de ser aplicado
no tratamento de doenças reumáticas, como a osteoartrite
e a artrose, através de infiltrações, o ácido hialurônico
também serve para o preenchimento de sulcos da face provocados
pelas rugas.
Atualmente, continua a docente da Unicamp,
o ácido hialurônico já vem sendo utilizado nessas duas
abordagens, na sua forma nativa e reticulada. A utilização
do ácido hialurônico em nanopartículas para as aplicações
citadas e também para o transporte de fármacos e cosméticos
é uma inovação que vem sendo estudada em processos escalonáveis
no LDPB. A vantagem das nanopartículas é a maior capacidade
de adesão, interação com receptores celulares e liberação
controlada dos princípios ativos. Ocorre, porém, que a
o ácido hialurônico tem que ser importado a preços exorbitantes,
visto que o Brasil ainda não o produz em escala industrial.
“Se conseguirmos produzir a substância em larga escala
no Brasil, a partir de substratos baratos como o suco
e o bagaço do caju, certamente estaremos abrindo a perspectiva
para a redução do custo e a consequente ampliação do acesso
a essas terapêuticas”, prevê a professora Maria Helena.
Dados da Sociedade Brasileira de Reumatologia
(SBR) informam que a artrose, uma das doenças reumáticas
mais comuns, responde sozinha por 7,5% de todos os afastamentos
do trabalho no Brasil. Além disso, é quarta doença determinante
de aposentadoria no país.
Além dos processos usuais de escalonamento,
o LDPB vem estudando métodos escalonáveis inovadores para
a produção de micro e nanopartículas. A diferença é que
os processos convencionais produzem partículas de tamanhos
variados e utilizam altos níveis de energia para a redução
e homogeneização de tamanhos. Esses processos são chamados
de top down, pois partem de partículas grandes para a
obtenção das nanopartículas. Os processos inovadores são
do tipo bottom-up, nos quais as partículas já se formam
em tamanhos uniformes da ordem de micrômetros ou nanômetros.
Por isso, são considerados de baixa energia. Segundo a
professora Maria Helena, os processos do tipo bottom-up
ainda são raros na indústria. Somente uma empresa na Europa
o utiliza para a produção de lipossomas.
Tão importante quanto gerar produtos
e processos com potencial aplicativo, que tendem a contribuir
para a saúde e bem-estar da população, as pesquisas desenvolvidas
no LDPB cumprem outra missão igualmente relevante, que
é formar pessoal altamente qualificado para trabalhar
tanto na academia quanto na iniciativa privada. Conforme
a professora Maria Helena, os estudos vinculados aos processos
de escalonamento mencionados nesta matéria contaram com
a participação de estudantes de graduação e pós-graduação.
Alguns deles, já formados, estão trabalhando em universidades
e indústrias espalhadas pelo país. “A conjugação desses
dois fatores é o resultado que mais nos gratifica”, considera
a coordenadora do laboratório.