Alunos do IA encenam ópera
de Purcell
Espetáculo dirigido e regido
pelo maestro Luís
Otávio dos Santos envolveu cerca de 80 pessoas
MARIA
ALICE DA CRUZ
Ela,
Dido, mulher amargurada, que lamenta do início ao fim a
impossibilidade de viver plenamente o amor de Enéas, personagem
da mitologia greco-romana a quem os deuses designaram a
fundação de Roma. Casado e com filhos, ele tenta contrariar
os deuses ao se apaixonar por Dido, mas o espírito de um
feiticeiro o comunica que terá de abrir mão deste amor para
cumprir sua missão. A história desses personagens mitológicos
é contada musicalmente por Henry Purcell (1659-1695), compositor
inglês do período barroco que consegue, por meio de notas
e ornamentos, descrevê-los fielmente na ópera Dido e Enéas,
gravada em DVD por alunos e profissionais do Instituto de
Artes da Unicamp (IA), como resultado das atividades propostas
pelo maestro Luís Otávio dos Santos no âmbito do Programa
Artista-Residente da Unicamp, coordenado pela Assessoria
para Assuntos Culturais da Reitoria. A produção, que foi
apresentada no último dia 25 no teatro do Colégio Culto
à Ciência, em Campinas, envolveu mais de 80 pessoas, segundo
o produtor da montagem, Fernando Vasconcellos, da Coordenadoria
de Desenvolvimento da Unicamp (CDC). A direção geral é do
próprio artista-residente, que contou com a parceria dos
professores da Unicamp Verônica Fabrini, na direção cênica,
Eduardo Paiva, na direção de imagem, Helô Cardoso, na cenografia,
e Ângela Nolf e Daniella Gatti, na direção de coreografia.
A proposta do projeto desenvolvido por Santos foi feita
pelo professor Esdras Rodrigues, chefe do Departamento de
Música do IA.
A ópera, um clássico da
literatura musical inglesa, foi um presente para o elenco
formado por estudantes da Unicamp (oito solistas, 17 no
coro, 12 no corpo de balé e 16 na orquestra), que tiveram
a rara oportunidade de ser um dos personagens de Purcell.
O resultado foi bem-sucedido, segundo os alunos, pela dedicação
de Santos, especialista em interpretação de instrumentos
antigos e referência em música barroca, que trouxe para
a Unicamp toda a bagagem de projetos desenvolvidos na Inglaterra.
“O projeto na Unicamp representa a oportunidade de poder
trazer para o universo didático o trabalho que realizo há
15 anos na Europa. Eu me especializei na interpretação histórica
de instrumentos antigos, e este é um movimento que está
crescendo no Brasil. E nada melhor que materializar este
tipo de experiência através de uma ópera barroca. A gente
sabe que a ópera é uma invenção da época barroca. As grandes
obras primas do período barroco estão concentradas nas óperas,
e uma delas é Dido e Enéas, da literatura musical inglesa,
cujo libreto inspirado no poema Eneida, de Virgílio, foi
escrito pelo poeta inglês Nahum Tate [1652-1715]”, explicou.
De
acordo com o maestro, a produção tem uma vantagem pedagógica
que é o fato de ser uma ópera bastante executável, pois
elas normalmente são muito longas.
“Mas esta tem duração menor,
então conseguimos preparar o evento em poucos meses. É um
projeto de grande envergadura, multidisciplinar”, esclarece.
Para o cantor Jorge Trabanco, aluno que interpreta Enéas,
Purcell consegue transmitir em menos de uma hora a essência
dos personagens. Outros compositores de ópera, segundoTrabanco,
não conseguiram isso em três ou quatro horas. “Ele foi muito
feliz e sucinto nas composições que demonstram bem o caráter
de cada personagem. Por exemplo, não existe uma ária alegre
para o Enéas. A ópera não passa a sensação de um homem feliz.
É uma coisa de impacto e ao mesmo tempo reflexiva. O Enéas
e a Dido retratam bem isso. Tem uma coisa forte que é quando
o espírito do feiticeiro avisa o Enéas que ele tem de largar
mão da Dido para seguir seu caminho, que é a parte alta
do Enéas na ópera, é um recitativo muito pesado e tenso
que temos de cantar com o coração, vivendo aquela cena na
hora para sair bom, senão é simplesmente uma música sem
sentido”, explica Trabanco.
Envolvimento
Para o maestro, o alto nível dos estudantes de arte foi
mais que suficiente para preencher “logo de cara” todas
as vagas: papeis dramáticos, coro, orquestra. “Foi um crescendo,
um trabalho que tentamos planejar de forma mais gradual
possível por envolver conscientização bem profunda de todos
os alunos, desde a peça, as notas, partitura. O que mais
vale para esse tipo de trabalho é fazer o aluno olhar para
si próprio, pensar o que quer, o que representa. É o tipo
de envolvimento musical que faz o músico reconsiderar a
própria musicalidade”. As atividades iniciaram-se com palestras
sobre ornamentação barroca, realização de seminários mais
acadêmicos, reunindo literatura, artes plásticas, de forma
a englobar a ópera em todas as áreas do IA.
Santos acredita que a produção
de uma ópera do período barroco é um marco para o IA. “O
foco do trabalho foi a interpretação historicamente informada.
Então, não se trata de mais uma produção de uma ópera. Tem
um olhar que faz os alunos todos reconsiderarem muitas coisas
em nível de interpretação, postura, de musicalidade”, acrescenta.
Dido e Enéas não é nenhuma descoberta, segundo o maestro.
Justamente por ser uma obra primorosa, está no repertório
especializado. Mesmo não sendo executada constantemente
em salas de concerto, pois uma ópera barroca requer instrumentário
específico, cravos, orquestra de tamanho reduzido, técnica
adaptada para estilo vocal, a ópera de Purcell é reconhecida
pela qualidade. “Materializar em DVD esta produção tem grande
valor porque eterniza o trabalho. Serve de exemplo para
outras produções que virão pela frente”, diz o maestro.
Viver
a melancolia de Dido, presente tanto no texto quanto na
música de Purcell, pode não ser uma tarefa muito fácil,
mas é enriquecedor para a formação e a carreira profissional
da mezzo-soprano Gilzane Castellan. “Sempre ouvimos falar
de Dido e Enéas, mas viver a personagem me fez aprofundar
meus conhecimentos sobre a ópera e o trabalho de Purcell”,
declara. O grande desafio, além do canto, é transparecer
cenicamente o psicológico de Dido, uma mulher amargurada,
que vive reclamando do próprio destino e acaba a ópera de
forma trágica. “Mas Purcell é perfeito, é genial, porque
a própria música já tem componentes que induzem o cantor
e as pessoas que ouvem essa tristeza. Esse lamento já está
dentro da música. O desafio é interpretar o que ele propõe”,
acrescenta Gilzane. Para ela, foi um presente trabalhar
com Santos. “O conheci no projeto e tenho certeza que está
sendo um aprendizado enorme. Ele é um especialista em barroco.
E isso é importante para nossa formação”, reforça.
Para Jorge Trabanco, que
vive o personagem Enéas, a atuação do maestro Santos foi
muito importante para que a ópera não se constituísse apenas
num conjunto de notas e técnicas. “Luís Otávio foi muito
importante nisso para dar esses toques. Sem ele, o trabalho
ficaria apenas uma sequência de notas musicais. Ele deu
esse sentido de interpretação. Ele traduziu da partitura
o Purcell que ele queria ouvir. E isso foi muito importante
para nós”, diz Trabanco.
Belinda, dama de companhia
de Dido, é o avesso da patroa. É quem dá ritmo à ópera,
na opinião de Érika Andrade, aluna do segundo ano de canto
lírico no Instituto de Artes da Unicamp. Viver essa mulher
alegre, que tenta amenizar o sofrimento de Dido, é um presente
para uma aluna de graduação, na sua opinião. “Fiquei feliz
com a seleção. A gente precisa sempre buscar mais. É uma
grande oportunidade, logo tão cedo, já poder participar
de óperas como essa e a Flauta Mágica, no ano passado. E
sempre com incentivo de nossos professores”, diz Érika,
que vive um momento especial por participar de duas óperas
ao mesmo tempo. “Interpreto também Bastienne, na ópera de
Mozart Bastien e Bastienne, que será encenada terça e quarta-feira,
às 20 horas, no Centro de Convivência de Campinas. São duas
personagens diferentes: a Belinda, que é criação de um compositor
barroco, e Bastienne, de Mozart, um representante do classicismo.
Uma é alegre; a outra romântica. Mas está sendo um momento
especial experimentar duas personagens diferentes”, acrescenta.
Uma vocação descoberta na
infância fez com que Ana Carolina Marchi conquistasse vários
solos também na Universidade, desde que ingressou no curso
de canto, mas a primeira personagem operística, a Second
Woman (Segunda Mulher), é abraçada com carinho e dedicação
pela soprano.
“É uma oportunidade rara
ter uma ópera rica como Dido e Eneas sendo apresentada e
gravada em Campinas. A emoção dos personagens – bruxas,
espírito, coro, e o elenco de primeiros solistas – acaba
inserindo as pessoas no mundo da ópera”, diz a soprano Marina
Lobato, que interpreta a primeira bruxa.
A gravação do DVD, segundo
o diretor da Rádio e Televisão Unicamp, Eduardo Paiva, envolveu
uma equipe de profissionais e estudantes da área de audiovisual.
“É muito bom poder participar disso. Isso é importante para
novas discussões de linguagem, envolvendo alunos e estagiários.
A participação da TV tem um recorte bastante educacional
e acadêmico. Não é simplesmente o registro de uma ópera,
é a produção de um DVD, na qual temos de estudar como se
transporta uma cena para a televisão; como deve ser o registro
de uma ópera; como produzir um making off . É um projeto
que tem seu encanto”, acrescenta Paiva.