Jornal
da Unicamp – O que seu trabalho acabou mostrando de mais
significativo?
Márcia Fonseca
Amorim – Nas
considerações finais do meu trabalho, digo que a mulher
vem talhando a sua imagem em todos os segmentos sociais,
o que se revela mais amplamente na vida profissional e na
mídia, por exemplo, e isso é inquestionável. Mas as mulheres
que se situam em atividades não consideradas relevantes
para determinados setores da sociedade, porque envolvidas
em uma série de tarefas que lhe são atribuídas e não socialmente
valorizadas, mesmo essa mulher de periferia, estão buscando
a construção de uma identidade e querendo mostrar que elas
existem. E ela se mostra mesmo através da música que muitas
vezes não é aceita fora do seu meio. Essa mulher tem necessidade
da busca de prazer, de relações com outras pessoas e vai
construindo uma imagem de um sujeito que participa do mundo,
que tem alguma coisa a dizer, mesmo que esse dizer não seja
o esperado pela Igreja, por algumas instituições e/ou organizações
sociais. E, apesar de tudo, ela diz: “minha vida é assim
e eu trato a minha sexualidade da mesma forma que muita
gente trata, mas camufla. Não tenho medo de dizer o que
faço e, se preciso, digo isso publicamente”. Ela se mostra
como uma pessoa que não tem medo de se assumir perante a
sociedade.
JU – Trata-se
de uma ousadia?
Márcia Fonseca Amorim – Sim, e essa ousadia
incomoda. Quem se sente incomodado em relação ao funk não
é o funkeiro, que utiliza uma forma de expressão introjetada
na sua realidade, mas os que acham aquela manifestação indigente,
sem nada de intelectual, que consideram a batida muito pobre,
um batidão, um pancadão, coisa repetitiva. Mas em outras
instâncias da sociedade também ocorre repetição. Manifestam-se
no funk grupos sociais que não circulam por outros escalões,
que estão à margem da sociedade. Mas se verifica um fato
paradoxal: no princípio, o funk era constituído apenas por
afro-descendentes. Descendentes de outras etnias passaram
a integrar o movimento porque encontraram nele uma forma
de diversão. Viram nele uma forma de extravasar as emoções,
a sexualidade, pois no funk existe espaço para que homens
e mulheres de diferentes faixas etárias possam dizer o que
pensam, o que muitas vezes não conseguem fazer em outros
espaços sociais.
JU – Diante
disso, como você situa seu trabalho?
Márcia Fonseca Amorim – É em torno dessa
construção discursiva que meu trabalho se apóia; questiono,
realmente, o que podemos considerar grotesco. É grotesco
em que termos? Como não podemos definir um conceito de belo,
também fica difícil definir um conceito de grotesco. Uma
cena que ocorre comumente na periferia não tem naquele ambiente
a conotação de grotesco, pois integra as diferentes práticas
discursivas que ali se inscreveram. Ali se verifica uma
reinterpretação que substitui o grotesco pelo real, porque
aquelas pessoas vivem aquilo como particularidade de suas
vidas, apesar do choque que possa provocar no olhar de quem
chega. O funk reivindica um lugar entre os movimentos culturais
porque traduz ou tenta traduzir a identidade de um grupo,
e não importa que essa identidade seja construída à margem
dos grupos mais intelectualizados.
O fato de eu trazer esse
estudo para a academia não significa que o funk vá ter reconhecimento,
pois ele pode continuar onde está. A intenção deste trabalho
acadêmico é mostrar que esse movimento acontece no país,
pessoas participam dele e ele faz parte daquilo que denominamos
realidade social brasileira. Tem uma representação expressiva,
movimenta milhões na economia, influi na política e até
na religião, pois temos o funk gospel e grupos de católicos
carismáticos tocam, em ritmo de funk, músicas de louvor
a Deus.
JU – O que lhe
chamou a atenção inicialmente e a levou ao funk?
Márcia Fonseca Amorim – Meu interesse foi
despertado a partir de reportagens apresentadas na TV. Mas
o que mais me chamou a atenção foi o fato de que, enquanto
o funk estava restrito à periferia, não incomodava muito.
À medida que ele “desce o morro” e passa a circular por
outras instâncias, desperta a atenção e passa a incomodar
alguns segmentos sociais quando a “menina do asfalto” passa
a frequentar manifestações antes restritas à “menina do
morro”. Chamou-me a atenção o fato de mulheres que não são
da periferia buscarem esses bailes que constituem uma festa
como outra qualquer e como tal chama a atenção dos jovens.
Foi aí que resolvi estudar
esse novo discurso em que a mulher assume, por meio das
músicas que canta, a representação de uma cachorra, uma
potranca, uma piranha, uma vadia. Vale lembrar que essa
representação ocorre no interior do movimento e não condiz
com a representação que essa mesma mulher assume em outras
instâncias sociais. Ela está incorporando um discurso que
antes era considerado machista. Mais ainda, de alguma forma
está subvertendo esse discurso machista, como que dizendo:
“agora eu digo de mim mesma o que eu quero”. Na verdade,
ela assume esse discurso machista para romper com ele. Ao
assumir a representação de piranha, ela se constrói discursivamente
como adepta da prática sexual livre e se posiciona como
uma mulher livre para atuar sexualmente na sociedade, rompendo
com o conceito de piranha e adaptando-o à realidade sexual
atual. Foi isso que me chamou a atenção.
JU – Isso não
resvala para a baixaria?
Márcia Fonseca Amorim – É comum que pessoas,
principalmente ligadas a certos grupos religiosos, a entidades
de cunho feminista, entre outros, considerarem as letras
baixarias. Trata-se efetivamente de um movimento musical
que está tentando uma identidade social e procura se promover.
Discute-se atualmente no Rio de Janeiro se o funk é cultura.
Na verdade, o funk é apenas mais um movimento musical que
vem buscando manter-se enquanto tal. O modo como se diz
da sexualidade nesse movimento musical, embora possa incomodar
a muitas pessoas, não difere muito de outras manifestações
culturais. Por que o que se diz em uma peça teatral ou em
um texto literário seria baixaria quando no funk? Os dizeres
utilizados nas letras das músicas estão incorporados às
comunidades. O estranhamento surge quando passam a circular
no rádio e na TV aberta e pessoas que não se identificam
com a proposta musical se sentem incomodas com o modo de
dizer e de dançar inscrito no funk. Outras pessoas assumem
a representação proposta pelo movimento apenas quando participam
dos bailes, o que sugere que o funk é uma festa como as
que envolvem o axé.
JU – Como a
funkeira se vê?
Márcia Fonseca Amorim – São mulheres bonitas,
de corpos bem definidos, que se produzem e cuidam da imagem.
Essas mulheres costumam dizer que tudo se trata de uma brincadeira
e consideram que muitas pessoas estão levando muito a sério
a representação feminina no movimento. O que ocorre, segundo
a MC Tati Quebra Barraco, é uma brincadeira com o que acontece
no cotidiano não só da funkeira, mas de muitas mulheres.
Não é o funk que está incentivando o sexo entre jovens,
pois isso já ocorre independentemente do movimento. O funk
é uma festa de natureza carnavalesca e, como tal, brinca
com questões como a sexualidade, a representação social
de homens e mulheres. No geral, constitui uma diversão.
Hoje qualquer criança sabe quem é a Mulher Melancia e canta
músicas funk. Essa manifestação está disseminada na sociedade.
JU – O que significam
os nomes com que essas mulheres se autodenominam?
Márcia Fonseca Amorim – Surgiram com as
mulheres que acompanham os cantores e estão relacionados
com suas características físicas: Mulher Melancia faz destaque
ao bumbum; Mulher Melão, aos seios grandes. Os nomes não
projetam a mulher em si, mas algo que no corpo delas chama
a atenção.
JU – E como
o funk é tratado na mídia?
Márcia Fonseca Amorim – Muitos setores
da sociedade tratam o funk como subcultura e o consideram
um movimento musical marginalizado, associado geralmente
ao trafico de drogas, à exploração sexual, à promoção da
erotização de mulheres de diferentes faixas etárias, à incitação
de crianças e jovens à prática sexual e à vulgarização da
música brasileira. Esse tratamento pode ser encontrado em
páginas de revistas e jornais de circulação nacional e entrevistas
nos meios televisivos. Mas, paradoxalmente, o movimento
ora é exaltado e ora é rechaçado pela grande mídia. A cultura
funk está presente em grandes eventos como o São Paulo Fashion
Week, o TIM Festival, mas também em matérias que tratam
de mazelas sociais, do caráter muitas vezes considerado
“vulgar/esdrúxulo” que permeia as letras das músicas e a
dança, e do modo como a mulher se apresenta nos bailes e
programas de televisão.