O Brasil ‘inventado’ por Varnhagen
Historiador aponta viés etnocêntrico
no
conjunto da obra do Visconde de Porto Seguro
MANUEL
ALVES FILHO
Em
seu livro História e Historiografia: Brasil pós-1964, o
professor José Roberto do Amaral Lapa, criador do Centro
de Memória da Unicamp (CMU), registrou que “a história,
como outras áreas do saber na área de Ciências Humanas,
é muito sujeita aos ventos que sopram de latitudes as mais
diferentes”. Em outros termos, o tarimbado historiador,
que viria a falecer em junho de 2000, aos 70 anos, alertava
o leitor para o fato de não haver uma verdade única no que
toca ao relato histórico. Orientado por esta referência,
entre outras, o historiador Renilson Rosa Ribeiro decidiu
investigar em sua tese de doutoramento, apresentada recentemente
no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp,
como foram construídas as representações discursivas que
acabaram por forjar um tipo de memória oficial para o Brasil.
Do trabalho, orientado pelo professor Paulo Miceli, emergiu
a figura de Francisco Adolfo de Varnhagen, mais conhecido
como Visconde de Porto Seguro. “Ele foi um dos maiores artífices
de uma visão histórica que perdura até hoje, tanto nos livros
didáticos quanto no imaginário nacional”, afirma.
O interesse de Ribeiro pelo
tema remonta à sua dissertação de mestrado, quando analisou
o discurso de raça presente nos manuais escolares produzidos
no final do século 19 e ao longo do século 20. Durante a
investigação, ele deparou com a recorrência de temas quando
os autores se dedicavam a pensar a história do Brasil. “Nas
obras que tomei para análise, o período colonial sempre
era apresentado, com maior ou menor destaque, como a semente
da nação. Isso me levou a querer investigar, com a orientação
do professor Paulo Miceli, como esse discurso, que normalmente
é apresentado como algo natural, foi construído ao longo
do tempo”, explica.
A pesquisa de Ribeiro concentrou-se
na produção do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB), fundado em 1838 com o objetivo de “forjar uma memória
para a nação brasileira”, que acabara de conquistar a sua
independência. Ao analisar os temas, documentos e personagens
vinculados ao instituto, o historiador elegeu como objeto
principal de investigação a Revista do IHGB, que circula
até hoje e cujo primeiro número foi editado em 1839. “Durante
o trabalho de prospecção, percebemos que um personagem apresentava-se
como emblemático em relação ao tema do nosso interesse,
que vinha a ser Francisco Adolfo de Varnhagen, o Visconde
de Porto Seguro”, relata.
Embora tenha nascido na
região de Sorocaba, interior de São Paulo, em 1816, Varnhagen
viveu durante muitos anos fora do Brasil, sobretudo em Portugal,
Espanha e Áustria-Hungria. Ele somente teve reconhecida
a sua nacionalidade brasileira na década de 40 daquele século
por meio de um decreto imperial. “Depois que obteve a cidadania
brasileira, Varnhagen foi incorporado à diplomacia nacional,
servindo em Portugal e na Espanha. Além disso, por desenvolver
pesquisas históricas, foi convidado a integrar o IHGB, onde
deu início a uma série de trabalhos. Uma das missões assumidas
por ele foi realizar um levantamento nos arquivos europeus
sobre o Brasil Colonial, de modo a produzir uma memória
nacional. O objetivo final era compilar, sistematizar, organizar,
arquivar e, por último, publicar as informações obtidas,
principalmente nas páginas da Revista do IHGB”, informa
Ribeiro.
Tais
pesquisas, prossegue o autor da tese, forneceram subsídios
para que Varnhagen escrevesse mais tarde a sua mais importante
obra, História Geral do Brasil, publicada em dois tomos
(1854 e 1857) e considerada uma espécie de livro-monumento.
“Nessa obra, Varnhagen apresenta uma proposta de narrativa
da história do Brasil, que tem como cenário principal a
atuação dos portugueses na formação da Colônia. Na narrativa,
ele registra que a transição do Brasil Colonial para o Brasil
Imperial teria ocorrido de forma tranqüila, sem rupturas.
Também valoriza o legado português, deixando em plano secundário
as figuras do índio e do negro, num posicionamento com profundo
viés etnocêntrico”, afirma o historiador.
A partir da publicação de
História Geral do Brasil, Varnhagen lançou-se no esforço
para fazer com que a obra fosse aceita como uma produção
oficial do IHGB. Para isso, recorreu até mesmo a Dom Pedro
II, a quem pediu apoio. A despeito do seu empenho, o livro
foi recebido com profundo silêncio pelos seus pares, e o
instituto acabou por não acolhê-lo. “Tal recusa o deixou
extremamente indignado e lhe valeu vários ataques por parte
dos autores românticos e indigenistas que também integravam
o IHGB”, diz Ribeiro. Mesmo não desfrutando do reconhecimento
almejado entre seus pares, Varnhagen, que recebeu o título
de nobreza somente no final da vida, foi alçado, após sua
morte, como um historiador símbolo do instituto.
Essa nova condição, infere
o autor da tese, certamente deve ter contribuído para que
o Brasil “inventado” pelo Visconde de Porto Seguro ganhasse
crédito e longevidade. Nesse processo de construção da memória
nacional, reforça o pesquisador, Varnhagen trabalhou com
enredos temáticos encadeados cronologicamente. Assim, nos
seus escritos, as origens do Brasil remontam à época do
Descobrimento. É como se a história do Brasil não existisse
antes da chegada dos portugueses. Na sequência, o autor
de História Geral do Brasil considera a formação do povo,
por meio da integração entre negros, índios e brancos. Neste
caso, a herança portuguesa se sobrepunha às demais. “No
livro, Varnhagen também trabalha com um mito fundador, este
relacionado à invasão holandesa. Na visão dele, a união
das três raças para expulsar os elementos estrangeiros teria
sido o primeiro sinal de nacionalidade”, esclarece o pesquisador.
A abordagem cronológica
desemboca, enfim, no que o autor da tese de doutorado classificou
de “elos de continuidade”, que teriam sido forjados, no
entender de Varnhagen, na transição sem conflitos entre
o período Colonial e o Imperial. “Esses enredos temáticos
constituíram um modelo de cronologia que se tornou constante
nos manuais e livros didáticos de História do Brasil elaborados
a partir da segunda metade do século 19 e ao longo do século
20. Se consultarmos as obras de autores do naipe de João
Ribeiro, João Pandiá Calógeras, Pedro Calmon, Vicente Tapajós,
Boris Furtado, entre outros, será possível identificar a
presença da grade cronológica temática esboçada por Varnhagen,
ainda que inserida em abordagens teóricas, metodológicas
e ideológicas distintas”.
A
mesma visão histórica, acrescenta Ribeiro, costuma passear
pelas falas de importantes personagens da atualidade, bem
como pelos enredos de obras televisivas e cinematográficas.
Um exemplo do uso atual de elementos presentes na construção
histórica de Varnhagen, ressalta o historiador, pode ser
encontrado no discurso do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva por ocasião do anúncio da descoberta de uma gigantesca
reserva de petróleo na camada pré-sal. Lula afirmou que
os recursos que serão gerados pelo combustível fóssil significarão
“a nova independência do Brasil”. “Quando assistimos a produções
como Carlota Joaquina, no cinema, ou Caramuru, na televisão,
também podemos identificar traços claros da ideia da Colônia
como berço do Brasil independente”, analisa.
Retornando à frase do professor
Amaral Lapa, que abre este texto e que também está consignada
na tese de Ribeiro, convém situar a produção de Varnhagen
no espaço e no tempo, como adverte o pesquisador. Ele pontua
que, como qualquer historiador, o Visconde de Porto Seguro
identificava-se com questões da sua época. “Isso implica
trazer o historiador-diplomata para o interior dos debates
travados naquele período acerca do fazer histórico, como
objetivos, procedimentos e compromissos”, detalha. Desse
modo, entende Ribeiro, Varnhagen não pode ser considerado
um mero reflexo de um projeto político, mas sim um participante
deste, na medida em que elaborou suas leituras e interpretações
do passado pelas vivências e limites do seu tempo. “Em outros
termos, a narrativa da nação de Varnhagen está permeada
pelos termos de seu lugar social e das práticas de seu ofício.
E foi neste espaço que ele interagiu e elaborou sua obra”.
E completa: “Não se pode querer, portanto, definir pretensiosamente
por meio de Varnhagen como o Brasil oitocentista pensava
o passado e o papel do historiador. Sua obra não é uma janela
aberta para toda uma época, mas ela ajuda a compreender
um dos possíveis ângulos do seu tempo”.