A carta já tem importância histórica por fundar as bases inovadoras do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Sua dimensão torna-se ainda maior quando se sabe que foi redigida e subscrita pelo professor, ensaísta e crítico literário Antonio Candido de Mello e Souza.
No documento, datado de 30 de novembro de 1976 e hoje uma preciosidade do Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulálio” (Cedae/IEL), Antonio Candido sugere ao então reitor e fundador da Universidade, Zeferino Vaz, a criação de um instituto que se diferençasse das demais faculdades de letras do país. O autor e sua obra, no sentido mais amplo, reencontraram-se, exatos 30 anos depois, na última quinta-feira, no auditório do mesmo IEL do qual Candido foi fundador, primeiro diretor e professor durante dois anos e meio.
“A presença de Antonio Candido no IEL foi fruto de uma conjunção muito interessante”, afirmou a professora e lingüista Charlotte Galves. A docente, que deixa a direção do instituto em janeiro próximo, foi mais longe ao abrir a sessão solene da última reunião da Congregação de sua gestão: disse que estar ali, ao lado do decano do IEL, era “uma imensa honra e uma grande sorte”. Diz o célebre poema de Mallarmé que “um lance de dados jamais abolirá o acaso”. Quis o destino que o calendário jogasse a favor da história neste 30 de novembro. A sorte mencionada pela diretora do IEL foi lançada com estilo. Alunos, funcionários, docentes e testemunhas do nascimento do Instituto lotaram o auditório para receber o mestre e decano da unidade.
Candido assumiu a palavra com sua modéstia habitual. Tratou logo de deixar a platéia à vontade ao mencionar, em tom de blague, o romance “Vinte anos depois”, de Alexandre Dumas, trocando o “vinte” pelo “trinta”. A partir daí, deu início, didaticamente, à “tradução” do conteúdo do documento enviado a Zeferino. Despretensiosamente, e sempre fazendo questão de ressaltar o caráter coletivo da proposta de criação do instituto, Candido contou a história dos primórdios da unidade, ressaltando que “quem vê o começo e vê hoje essa floração extraordinária da Unicamp, só pode ficar orgulhoso de ter dado alguma contribuição, por menor que seja”.
O ensaísta revelou que, apesar das investidas de Zeferino, negou-se sistematicamente a assumir a direção do instituto. Foi demovido da idéia quando soube, por intermédio de Carlos Vogt, então chefe do Departamento de Lingüística do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), que o fundador da Unicamp, “perdendo a paciência”, criara uma faculdade de letras nos moldes tradicionais.
“O Vogt me disse: ‘olha, aquilo que o senhor acha que está errado, está sendo feito em Campinas. De modo que, se o senhor topar, talvez a gente consiga desfazer’. Eu topei e o Zeferino, com sua extraordinária capacidade de decisão, em 15 dias dispensou o diretor e conseguiu que o governador anulasse o decreto e fizesse outro”, afirmou Candido, relembrando que em seguida foi nomeado presidente da comissão formada para implantar o IEL.
O primeiro ponto básico da concepção que norteou a criação do instituto, revelou Candido, foi o de trabalhar para a construção de um modelo que privilegiasse o crescimento de dentro para fora. O primeiro diretor do IEL lembrou que, à época, o modelo predominante era o da faculdade de filosofia, ciências e letras, “que começava em matemática e acabava em letras”. Na opinião de Candido, essa estrutura mimetizava o que ele chamou de “mania de organograma, que é criado para depois ser preenchido”.
“Nosso ponto de vista foi o contrário. Utilizamos os elementos disponíveis para fazer um núcleo mínimo, que pudesse crescer de acordo com a sua própria iniciativa. Foi proposta então a criação de um instituto que tivesse os estudos gerais”, revelou Candido, lembrando que, além de o Departamento de Lingüística já estar funcionando junto ao IFCH, havia o grupo de letras, “que se reduziu ao que há de mais geral no estudo das letras, que é a teoria da literatura”. A partir daí, afirmou o ensaísta, criou-se um núcleo de teoria da literatura, ao lado de um núcleo já existente de lingüística. “Esta seria a semente do IEL”.
A idéia, prosseguiu Candido, era que, a partir dessa semente, o instituto evoluísse. Paralelo ao crescimento, procurou-se privilegiar uma concepção democrática da universidade. “Em vez de impormos um modelo, nós reunimos um grupo. A proposta era que esse grupo evoluísse para, depois, ampliar-se o instituto. Foi o que aconteceu. Um grupo inicial, uma vez formado, desenvolveu os prolongamentos que achou necessário”. Para mostrar o quanto era democrático esse ambiente, Candido lembrou que, antes de deixar a direção, sugeriu “um certo prolongamento”, mas não foi atendido, sendo derrotado em sua proposta. “O grupo fez o que quis, e essa era a nossa intenção”.
Eleição — “O instituto cresceu a partir de um grupo geral, para depois criar as particularidades que lhe pareceram oportunas, por meio de um amadurecimento interno que assegurasse a concepção mais democrática possível da gestão desse núcleo”, afirmou o primeiro diretor do IEL. Candido lembrou que essa opção pela livre escolha prevaleceu na sua sucessão. Pouco antes de deixar o cargo, o professor pediu que Zeferino promovesse uma eleição para a escolha do seu substituto, em vez de indicá-lo, como era comum naqueles tempos. “O professor Zeferino Vaz atendeu e foi eleito o professor Carlos Franchi”.
Candido lembrou ainda que o próprio nome do IEL foi muito debatido. A professora Vera Chalmers, por exemplo, lutou para que a unidade não fosse batizada de Instituto de Ciências da Linguagem. “Instituto de Estudos da Linguagem dava um toque humanístico, mais flexível, e permitia afastar as concepções eventualmente um pouco pedantes do estudo das humanidades”, afirmou o crítico, famoso por sua aversão às fórmulas rebuscadas.
Antonio Candido observou que foi um “prazer extraordinário” desempenhar suas tarefas no período em que ficou à frente do Instituto. “Costumo dizer que a estadia de dois anos e meio na Unicamp foi um momento de grande felicidade na minha vida, mesmo porque eu saí num momento em que ainda reinava a paz. Eu estava acostumado a viver, na minha universidade, em estado permanente de guerra e, aqui, nesses dois anos e meio, houve grande cooperação e grande entendimento”.
Para finalizar, Antonio Candido ressaltou o papel de Zeferino Vaz e a rapidez com que ele assimilava idéias que não eram de seu campo de conhecimento, lembrando que o criador da Unicamp sabia exatamente o momento e como tomar a decisão adequada. “Contamos com esse apoio do professor Zeferino Vaz, que compreendeu imediatamente o nosso propósito. Aí eu fecho voltando ao começo: ele destituiu o diretor e dissolveu o instituto para adotar uma fórmula que lhe pareceu a melhor”. Candido foi ovacionado ao finalizar seu discurso.
Ao assumir o microfone, o professor Carlos Vogt – ex-reitor da Unicamp, ex-diretor do IEL e um dos responsáveis pela vinda de Candido para a Universidade – afirmou que o encontro servia para que a memória fosse preenchendo os detalhes dos acontecimentos, lembrando que as relações do professor com IEL remontavam à própria criação do Departamento de Lingüística do IFCH. “Não é por acaso que essa relação estabelecida pelo professor Antonio Candido e o professor Zeferino foi fundamental para que essas medidas ousadas tivessem as conseqüências que tiveram para a criação do Instituto, num momento em que o Plano Diretor preconizava a criação deu uma faculdade de letras tradicional”.
O atual presidente da Fapesp lembrou que, à época da implantação do instituto, seu objetivo e de outros colegas era o de tentar atrair o professor Antonio Candido para uma coisa que “ele não tinha feito, não queria fazer e dificilmente teria feito não fossem as circunstâncias que ele encontrou, que era assumir um cargo administrativo tal como ele assumiu. Penso que a singularidade da passagem do professor Antonio Candido pela direção do IEL, desde sua criação e durante os dois anos e meio de sua gestão, está ligada ao fato de talvez esta ter sido sua única atividade em cargo diretivo”.
Vogt lembrou ainda que todos os docentes que formaram o Departamento de Lingüística, o IEL e o Departamento de Teoria Literária foram alunos de Candido. “Nossa relação não é apenas de encontro fortuito pelos cruzamentos da vida institucional e administrativa. Eu e muitos colegas que aqui estão hoje discutimos a vinda do professor Antonio Candido para Campinas”.
“Faço essa digressão um pouco na inscrição da viagem sentimental para dizer que este é um momento auspicioso porque o IEL tem essa história singular e um universo de referências intelectuais e afetivas que são muito importantes. Com essa cerimônia, estamos refazendo o ritual de fundação do IEL. A vinda do professor Candido nos dá esse momento em que nós nos encontramos afetiva, intelectual e existencialmente”, finalizou Vogt.
‘Foi uma experiência única’
Encerrada a cerimônia, Antonio Candido dirigiu-se à sala onde, durante dois anos e meio, deu as coordenadas do então recém-implantado Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, para conceder a entrevista que segue. Em menos de 10 minutos de conversa, com a objetividade e a lucidez costumeiras, Antonio Candido falou dos primórdios do IEL, de sua relação com Zeferino Vaz e deu sua opinião sobre os rumos da crítica literária.
Jornal da Unicamp – O senhor está na origem do IEL ao estruturar as suas bases. Como o senhor recorda o início dessa história?
Antonio Candido – O início foi muito bom. Um grupo de lingüística já havia sido formado pelo professor Fausto Castilho. Formei o grupo de teoria literária com especialistas que já haviam sido meus alunos. Eu quis apenas mestres e doutores que fossem especializados em teoria literária, de maneira que eu estava trabalhando em casa. É uma coisa rara a gente poder trabalhar com uma equipe que, de uma certa maneira, é a sua equipe. Isso, para mim, foi uma experiência única.
JU – Em sua opinião, há algo que diferencie o IEL da Unicamp das demais escolas de letras e linguagem do país?
Antonio Candido – Eu acho que há muita diferença. O IEL foi concebido de uma maneira nova. As antigas faculdades e institutos de letras pressupunham uma justaposição linear de línguas e literaturas variadas, enquanto que o IEL foi concebido de uma maneira completamente diferente, começando apenas com disciplinas gerais, não específicas. A partir daí, o grupo formado foi criando as diferentes particularidades, de acordo com seu estudo da situação e a sua concepção das possibilidades.
JU – Como o senhor avalia sua experiência acadêmica na Unicamp? Que importância teve para o senhor?
Antonio Candido – Teve uma importância extraordinária. Pude trabalhar com um reitor absolutamente excepcional, que foi o professor Zeferino Vaz. Ele era um homem dotado de uma percepção e de uma capacidade de decisão que, acopladas, produziam algo de muito raro no Brasil. Não é à toa que ele organizou a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto [USP] e a Unicamp. Eu, pessoalmente, pude aplicar idéias que eu tinha e que eram partilhadas por companheiros que estavam comigo. Isso nos deu uma grande alegria porque nós sentíamos que estávamos fazendo uma inovação.
JU – A Unicamp completa 40 anos em 2006 a partir do lançamento de sua pedra fundamental. Como o senhor vê hoje a figura do fundador Zeferino Vaz? Como eram suas relações com ele?
Antonio Candido – As relações com o professor Zeferino Vaz eram ótimas. Eu tinha despacho com ele uma vez por semana. Eu ia sempre com o professor Carlos Franchi, que era vice-diretor do IEL. Nós ambos ficávamos impressionados com a facilidade com que ele assimilava idéias e noções de disciplinas completamente diferentes da dele – ele era especialista em parasitologia; nós, professores de literatura. Quando nós apresentávamos as nossas idéias e problemas, ele entendia como se fosse um especialista. Ele sabia sempre optar pela melhor solução. De modo que o convívio com o professor Zeferino sempre foi para mim uma grande aprendizagem e um grande prazer.
JU – Ele entendia de literatura?
Antonio Candido – Não sei se ele entendia. O fato é que ele agia como se entendesse.
JU – Como o senhor avalia a Unicamp hoje?
Antonio Candido – A Unicamp, 40 anos depois, é uma das três ou quatro universidades que realmente são do mais alto nível no Brasil. De certa maneira ela é filha da USP e de outras universidades de fora de São Paulo, representando, vamos dizer assim, o coroamento de algumas gerações de esforço universitário feito no Brasil. E, como coroamento, a Unicamp honra o seu destino.
JU – Para concluir, uma pergunta mais voltada para a literatura. A crítica literária está em crise no Brasil?
Antonio Candido – Eu creio que não. O Brasil sempre foi um país de excelente crítica literária, desde o tempo da Independência. O Brasil sempre teve e continua tendo bons críticos literários. Eu diria que pode ser até que a literatura criativa esteja em crise no Brasil, mas não a crítica. Ela está florescendo e produzindo cada vez mais, sobretudo em nível universitário, com muito bom resultado.
JU – O senhor não acha que ela se distanciou do público?
Antonio Candido – A crítica literária não foi feita propriamente para o público. Ela foi feita para auxiliar os interessados em literatura. Talvez ela tenha se afastado um pouco do público ledor de jornal, mas ela não se afastou do público estudioso.
JU – Ela está confinada à academia?
Antonio Candido – Eu não gosto dessa expressão. Se a pessoa não se confina, ela não produz. É como os frades no convento. O importante é que os produtos do seu confinamento possam ser transformados em bem coletivo. E isso a crítica universitária está conseguindo através dos milhares de professores de literatura e de língua que ela forma.
(*) Colaborou Álvaro Kassab
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Campinas, 30 de novembro de 1976.
Of. IFCH/DL 70/70
Magnífico Reitor:
Tenho a honra de passar às suas mãos a proposta de um Instituto de Estudos da Linguagem, nome que nos pareceu mais adequado a uma concepção renovadora que o de Instituto de Letras, anteriormente previsto, por motivos que Vossa Magnificência verá expostos no documento anexo.
Este provém das atividades da comissão eleita pelos docentes de Lingüística e de Teoria Literária a fim de elaborá-lo. Como convidado por Vossa Magnificência para coordenar oportunamente a implementação do novo Instituto, atendi ao chamado dos colegas para presidir os trabalhos e, a partir da primeira quinzena de outubro, tivemos reuniões semanais, de que resultaram alguns documentos e notas preparatórias, bem como extensa troca de idéias. A seguir, o texto foi apresentado, para apreciação e comentário, a uma assembléia de docentes daquelas disciplinas, que o discutiram amplamente e propuseram modificações. A redação final, encaminhada agora à alta consideração de Vossa Magnificência e dos órgãos competentes, representa, assim, o resultado de um processo que lhe assegurou elevado teor consensual.
Neste ensejo, apraz-me ressaltar a dedicação dos membros da comissão, a cuja lucidez e espírito universitário se deve o presente documento, e que são os seguintes colegas: Aryon Dall’Igna Rodrigues, Ataliba Teixeira de Castilho, Carlos Alberto Vogt, Haquira Osakabe, Maria Lucia Dal Farra, Vera Maria Chalmers, Yara Frateschi Vieira.
Queira Vossa Magnificência aceitar a expressão dos meus sentimentos de perfeita estima e real consideração.
Antonio Candido de Mello e Souza
Ao Magnífico Reitor
Prof. Dr. Zeferino Vaz
Universidade Estadual de Campinas
ACMS/ gsf
*Ofício de Antonio Candido de Mello e Souza a Zeferino Vaz encaminhando
projeto de estruturação do Instituto de Estudos da Linguagem – IEL. |