Entre 2% e 5% das mulheres em idade fértil sofrem abortos de repetição, um problema caracterizado pela interrupção natural e recorrente (duas vezes ou mais) da gestação antes da 20ª semana. Entre essas gestantes, a maioria esmagadora apresenta alterações de ordem imunológica. A conclusão é de um estudo inédito que mapeou as possíveis causas dos abortos espontâneos, conduzido por especialistas do Ambulatório de Perdas Gestacionais do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism) da Unicamp. De acordo com o coordenador da pesquisa, o ginecologista e obstetra Ricardo Barini, outros fatores concorrem em menor proporção para a morte do embrião, como os de caráter hormonal, anatômico, genético, infeccioso etc.
Pesquisa envolve 250 mulheres
submetidas a tratamento
O estudo, que rendeu um artigo publicado na última edição do São Paulo Medical Journal, revista mantida pela Associação Paulista de Medicina, tomou por base 250 mulheres que se submeteram a tratamento para aborto recorrente oferecido pelo Caism no período de 1993 a 2004. Todas elas pertenciam à faixa etária dos 30 aos 34 anos e registraram três ou mais perdas espontâneas sucessivas. Em razão do protocolo de atendimento estabelecido para esses casos, explica Barini, os prontuários das pacientes trazem uma série de informações, inclusive se a morte do embrião esteve relacionada ou não com problemas imunológicos. Ao analisar os dados disponíveis, a equipe do ginecologista e obstetra concluiu que a maioria das gestantes apresentou de fato alterações dessa ordem.
De acordo com Barini, dentre as alterações de caráter imunológico, o fator aloimune aparece como a primeira causa de aborto espontâneo recorrente. Presente em 85% dos casos, esse problema pode ser explicado pela dificuldade do organismo feminino em se adaptar à gravidez. Ou seja, o sistema imunológico da mulher produz uma resposta “agressora” e não “protetora” em relação ao embrião. “Simplificando, o embrião é visto como um intruso que precisa ser combatido”, compara o ginecologista e obstetra do Caism. Para entender como se dá essa reação, é necessário lembrar que o feto é formado pelas cargas genéticas do pai e da mãe. Quando ocorre a união de um homem e uma mulher que apresentam semelhanças do ponto de vista imunológico, o excesso de compatibilidade pode ser prejudicial. Juntos, eles produzem embriões que normalmente são interpretados pelo organismo da gestante como agentes estranhos, como se fossem células da grávida com características anormais ou células doentes.
A segunda causa dos abortos de repetição, segundo o levantamento, é o fator autoimune, presente em cerca de 30% dos casos. Este, como o próprio termo indica, também está relacionado com problemas de ordem imunológica e se traduz por reações de auto-agressão imunológica, em que o organismo pode atacar suas próprias células. Ou seja, a gestante gera substâncias contra partes específicas do seu organismo, mas, ao invés de promoverem auto-agressão, podem ser eventualmente nocivas ao feto. Um exemplo é a alteração da coagulação sangüínea, provocada pelos anticorpos antifosfolípides. Esses anticorpos podem gerar freqüentemente uma trombose (uma obstrução circulatória) que dificulta a irrigação da placenta, provocando a morte do embrião. Outro elemento que concorre para as perdas espontâneas e recorrentes é o distúrbio hormonal, que ocorre em torno de 25% dos casos. “Muitas mulheres que engravidam não conseguem produzir progesterona em quantidade adequada, o que pode dificultar a sustentação do feto”, afirma Barini.
Além das causas já listadas, problemas anatômicos favorecem igualmente a ocorrência de abortos recorrentes. Entre eles, as mais comuns são malformações uterinas, presentes em 25% das mulheres que passaram por tratamento no Caism entre 1993 e 2004. Os demais fatores, de acordo com Barini, são de menor importância em relação às perdas espontâneas. No que se refere aos resultados dos tratamentos, a pesquisa coordenada pelo ginecologista e obstetra observou que eles foram mais efetivos nas mulheres que apresentaram exclusivamente o fator aloimune.
Tal problema, destaca o médico, pode ser tratado por meio da administração de uma vacina específica. A terapêutica começa por uma série de exames, que identificam se a mulher produz anticorpos contra as células do homem. Caso isso não ocorra, o passo seguinte é coletar sangue do companheiro dela. A amostra é então fracionada, para que possam ser separados os leucócitos (glóbulos brancos) das hemácias (glóbulos vermelhos). Os glóbulos brancos são posteriormente purificados e injetados na candidata a mãe por via intradérmica. “Fazemos duas sessões dessa imunização e depois verificamos, por meio de um exame chamado de prova cruzada, qual foi o resultado. Se o exame der positivo, a paciente estará liberada para tentar uma nova gravidez. O índice de sucesso dessa terapêutica é superior a 85%”, afirma o especialista do Caism.
Já nas pacientes que apresentaram o fator aloimune associado com problemas de ordem hormonal, o índice de sucesso do tratamento caiu para algo em torno de 50%. “O pior resultado obtido foi em relação às mulheres que apresentaram a um só tempo os fatores aloimune e autoimune. Nesses casos, menos da metade das pacientes conseguiu levar a gravidez até o fim depois da terapêutica”. De acordo com Barini, o estudo, que deu origem a uma tese de doutorado defendida por Marcos Caetano, reveste-se de grande importância, sobretudo por conta de dois aspectos. O primeiro, por chamar a atenção da sociedade e da própria classe médica para os problemas que o fator aloimune pode causar para o embrião.
Segundo, por destacar a necessidade de o
diagnóstico ser feito o mais breve
possível. “Essa talvez seja a
principal dificuldade a ser superada. Nas
clínicas privadas, após o segundo
aborto espontâneo os médicos
já tratam de investigar a participação
dos fatores imunológicos. No serviço
público, o procedimento é mais
complicado, pois não existe pagamento
previsto por parte do Sistema Único
de Saúde. No nosso caso, é o
próprio Caism quem banca os custos,
que são muito caros. Em virtude da
nossa limitação de recursos,
só podemos admitir duas novas pacientes
por semana. A lista de espera é de
no mínimo seis meses”, lamenta
Barini. Outras informações sobre
abortos de repetição podem ser
obtidas no site pessoal do ginecologista e
obstetra, no seguinte endereço: barini@fcm.unicamp.br.
CAUSAS
DO ABORTO
DE REPETIÇÃO
Causas genéticas
A anormalidade mais freqüente é a translocação balanceada observada no cariótipo de um dos parceiros. Outras anormalidades cromossômicas que podem ser encontradas são: mosaicismo sexual, inversão cromossômica e cromossomos em anel. Essas aberrações cromossômicas irão gerar embriões com cromossomopatias, evoluindo para aborto.
Causas endócrinas
Dentre elas a mais relatada é a Insuficiência de Corpo Lúteo, caracterizada por uma produção diminuída de progesterona na segunda fase do ciclo, período de implantação, onde tal hormônio tem participação fundamental. A suplementação de progesterona na segunda fase do ciclo é bastante discutida. Diabetes mellitus se mostra envolvido na etiologia do aborto de repetição desde que esteja descontrolado. Patologias da tireóide (hiper e hipotireoidismo) quando bem controladas não se relacionam com aborto de repetição, porém é sabido que anticorpos antitireoidianos estão intimamente relacionados com o problema, embora o mecanismo não seja conhecido.
Causas anatômicas
As mais descritas são: malformações uterinas (mullerianas ou exposição DES), pólipos uterinos, sinéquias, miomatose uterina, incompetência istmo cervical. Algumas alterações anatômicas são mais relacionadas com perdas gestacionais tardias (durante o segundo trimestre) ou trabalho de parto prematuro, como por exemplo: incompetência istmo-cervical, miomatose uterina.
Causas infecciosas
Atualmente é bastante questionável a relação entre infecções genitais por clamídia, micoplasma e ureaplasma e a elevada incidência de aborto de repetição.
Causas hematológicas
Nos últimos anos, tem-se descrito uma relação entre distúrbios da coagulação, tendência a tromboembolismos (trombofilias), com maus resultados gestacionais, entre eles abortos de repetição e infertilidade. Entre as trombofilias descritas como tendo relação com abortos de repetição podemos destacar trombofilias hereditárias e adquiridas.
Causas imunológicas
Podem ser divididas em causas autoimunes, aloimunes e síndrome antifosfolípide.
Causas ambientais
É descrita uma maior incidência de abortos espontâneos em pessoas com hábito de ingestão excessiva de café, álcool e tabagismo. É sabido o efeito abortivo da radiação, embora não haja determinação de dose especifica. Gases anestésicos também parecem elevar o risco de aborto. Exercício físico parece não estar relacionado como causa de aborto precoce. Microondas, ultra-som e terminais de vídeo parecem não elevar a taxa de aborto.
Causas desconhecidas
Em 20% dos casos de aborto de repetição não é possível determinar uma causa específica, o que abre um campo vasto para novas pesquisas.