| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 348 - 18 a 24 de dezembro de 2006
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Tese de doutorado sobre a criação do Ministério
da Defesa conquista primeiro lugar em concurso nacional

A ‘caixa-preta’ ainda
precisa ser aberta

O pesquisador Luís Alexandre Fuccille (esq.) na cerimônia de premiação em Brasília: “A questão da militarização do espaço aéreo precisa ser enfrentada” A semana que passou foi emblemática. Mostrou que, passadas mais de duas décadas da redemocratização, as cicatrizes abertas pelo regime militar ainda não foram fechadas. Aos fatos. O ministro da Defesa, Waldir Pires, atribuiu o apagão aéreo a falhas na “gestão na manutenção” por parte da Aeronáutica. Um brigadeiro da reserva, instado pelo âncora, diz em rádio de alcance nacional “que os militares não são cidadãos de segunda classe”. Palavras como “aquartelamento” (no caso, dos controladores de vôo) voltaram ao noticiário.

Estranho? Não para o sociólogo e cientista político Luís Alexandre Fuccille, pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE) da Unicamp. Para ele, mais que episódicas, as escaramuças se constituem em um novo capítulo da tensão que marca as relações entre civis e militares depois – mas não só – da criação, em 1999, do Ministério da Defesa. Fuccille é um estudioso do assunto. Sua tese de doutorado “Democracia e questão militar: a criação do Ministério da Defesa no Brasil” defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, acaba de conquistar, em Brasília, o primeiro lugar na segunda edição do Concurso de Teses sobre Defesa Nacional. O concurso, de âmbito nacional, é promovido pelo Ministério da Defesa e pelo CNPq.

O trabalho, que foi orientado pelo professor Eliézer Rizzo de Oliveira e contou com financiamento da Fapesp, mostra o papel do Ministério da Defesa no redesenho do aparelho do Estado brasileiro e, segundo o autor, “busca compreender como a democracia entra como uma variável interveniente no contexto da defesa nacional no quadro pós-1985”.
Fuccille é extremamente cuidadoso, mas não se furta a abordar o problema. Segundo o pesquisador, os militares ainda ocupam cargos estratégicos na burocracia do Estado e, como ficou patente no episódio do controle aéreo, dominam amplos setores do aparelho estatal. “Nem o próprio ministro sabe se foi sabotagem ou se houve falhas no equipamento. Ele desconhece o que está ocorrendo entre os seus comandados, justamente os militares. Esta que é a verdadeira ‘caixa-preta’”, observa.

O autor da tese afirma que o histórico desse jogo de esconde-esconde, de resto um dos focos de sua pesquisa, é antigo. Basta lembrar, pondera, que a montagem do sistema de radares foi feita e controlada pelos militares entre 1964 e 1985, já que eles não confiavam nos civis. O problema é que perdura ainda hoje a mesma estrutura implementada durante o “período de exceção”, na qual os militares continuam dando as cartas na aviação civil.

“Houve avanços, mas a questão da desmilitarização do espaço aéreo foi colocada e precisa ser enfrentada”, prega Fuccille, para quem precisa ficar definido da mesma forma o papel que cabe às agências, entre as quais a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) e, em última instância, também à Infraero (Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária), que antes era vinculada à Aeronáutica.

A disputa por espaço está na gênese da implantação, no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), do próprio Ministério da Defesa. Sua criação passou longe do armistício. Tanto que, anunciada em janeiro de 1995, durante o discurso de posse do primeiro governo, foi concretizada apenas em 1999, após o início do segundo mandato. A resistência da caserna era então muito grande.

O sociólogo contextualiza o período em sua pesquisa. Lembra que, à época, o Brasil era um dos poucos países que não tinham um Ministério da Defesa. Sua criação deu-se tanto por pressões endógenas quanto exógenas, segundo o pesquisador. No front interno, Fernando Henrique preconizava a “reforma do Estado”, na qual a introdução de um novo conceito de gerenciamento em substituição ao Estado burocrático decretava o fim de uma velha prática: o contato direto dos militares com o presidente da República.

Na avaliação de Fuccille, o fim dessa tradição coincide com os estertores da “Era Vargas”, período na sua opinião iniciado em 1930 e que nucleava Estado, economia e sociedade, com o primeiro desempenhando um importante papel de organizador desta mesma sociedade e de alavanca de construção do processo de industrialização nacional. “Mas vale destacar que a participação militar na vida política nacional não nasce na primeira metade do século XX, haja vista que o próprio período republicano é inaugurado sob o signo da espada ainda no século XIX”, observa o cientista político.

No front externo, avalia o pesquisador, dois fatores foram fundamentais. O primeiro, a pressão exercida pelo processo de globalização, que determinou mudanças profundas que afetaram não só o regime político em vigor, como também o modelo econômico, o tipo de capitalismo, a modalidade de Estado e as características do sistema político. O segundo era traduzido no desejo do Brasil de ter um maior protagonismo externo. Essa pretensão esbarrava na falta de transparência com relação a quem era, de fato, o legítimo representante do governo nas negociações bilaterais ou multilaterais.

Ruídos – “Concretamente, as pessoas não sabiam quem era o interlocutor da chamada ‘diplomacia militar’”, observa Fuccille, lembrando que até então o país tinha quatro pastas cujos titulares eram militares: os ministérios da Marinha, do Exército, da Aeronáutica, além do ministro-chefe do Estado Maior das Forças Armadas (Emfa). “O Brasil jamais teria um assento permanente em qualquer organismo da ONU ligado às amplas áreas de segurança e defesa sem um Ministério da Defesa”.

A absorção dos quatro ministérios por uma única pasta foi marcada por intercorrências, todas devidamente historiadas e analisadas por Fuccille em sua pesquisa. A maior parte do ruído foi provocada pela visível insatisfação dos militares com a iniciativa de Fernando Henrique Cardoso. Eles viam o novo rebento da burocracia como um híbrido de “modismo” e fruto da pressão dos EUA, cujo Departamento de Defesa funcionava desde 1947.

Fuccille explora na tese o que ele chama de “dimensão simbólica” da criação do Ministério da Defesa, que é o fato de a sociedade e o Estado poderem dizer aquilo que esperam das Forças Armadas. O pesquisador lembra que, ao contrário do que alardeia o senso comum, não houve uma adesão imediata aos ideários democráticos com o fim da ditadura em 1985. “Os militares lutaram para manter muitas das prerrogativas e posições dentro do aparelho do Estado. O poder civil, de sua parte, ficou alheio, seja porque não quis comprar essa briga, seja porque não havia interesse.”

Apesar da rejeição unânime ao projeto de FHC em um primeiro momento, as vozes dos atores militares foram sendo moduladas ao longo do processo de sua criação. Fuccille mergulha nas diferenças que emergiram do que o pesquisador chama de “costura”. A Marinha, por exemplo, de início crítica contumaz da implantação do Ministério, logo se alinhou às posições do presidente da República. O motivo: com um contingente de 50 mil homens, temia ser “engolida” pelo Exército, cuja força era composta de cerca de 200 mil e representava o dobro das outras duas forças (Marinha e Aeronáutica) somadas. Ademais, o ministro da Armada sabia que a implantação do ministério era irreversível.

O cabo-de-guerra deu-se no interior do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI). De um lado, ficaram a Marinha, a Casa Militar, o Ministério das Relações Exteriores e a Casa Civil. Do outro, o Exército, a Aeronáutica e o Estado Maior das Forças Armadas. Uma vez criado o ministério, Fernando Henrique indicou Élcio Álvares para ser o titular.

A escolha, segundo Fuccille, decepcionou a todos. Álvares, ex-senador e ex-governador do Espírito Santo, havia sido líder do primeiro mandato de FHC e acabara de ser derrotado em uma disputa eleitoral. “Sua indicação foi uma espécie de anticlímax e foi vista como prêmio de consolação, reforçando a percepção, perene entre os militares, de que os civis tratavam com desdém a questão da defesa nacional.”

De lá para cá, a começar do próprio Álvares, que caiu por pressão dos militares depois de ficar sob a suspeita de ter ligações com narcotraficantes, não foram poucas as crises – o ministro José Viegas Filho, por exemplo, já no governo de Lula, saiu depois de bater de frente com os militares.

Fuccille argumenta, porém, que mesmo faltando muito para que o Ministério da Defesa se “robusteça” e ganhe “conteúdo”, essas diferenças integram um processo, “no sentido sociológico do termo”, que tem tudo para se consolidar. Até mesmo os desvios de rotas, pondera, não são exclusividade do Brasil.

“Elaboração e controle dos orçamentos, controle de pessoal civil e militar, definição de funções e missões, entre outras competências-chave, têm sido pouco partilhadas com outras burocracias, quer sejam do Executivo ou do Legislativo, com os militares ocupando postos-chave em todo o circuito. Contudo, outras nações enfrentaram o mesmo desafio vis-à-vis as burocracias militares”, acredita Fuccille que, de 2003 a 2005, ocupou o cargo de gerente do Departamento de Política e Estratégia do Ministério da Defesa, onde foi um dos responsáveis pela revisão da Política de Defesa Nacional e outros documentos doutrinários.

O pesquisador acredita que, passada essa fase inicial, na qual “as rusgas são recorrentes”, o Ministério da Defesa, com o controle civil, vai com o tempo oferecer um formato mais adequado às necessidades do Brasil contemporâneo, acarretando ganhos para a direção política sobre o conjunto da vida militar. “Em última instância, teremos um padrão de relação civil-militar mais aberto e democrático, como ocorre nas democracias consolidadas”.


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