Oacrônimo Bric surgiu no coração do Goldman Sachs. De olho no mercado futuro, um analista do maior banco de investimentos do mundo cunhou a sigla para designar, pela ordem, Brasil, Rússia, Índia e China – a África do Sul seria colocada mais tarde no clube de mercados emergentes, de acordo com os critérios dos investidores.
A aposta continua alta. Relatório recente divulgado pelo próprio banco aponta que a participação dos Brics no mercado mundial de títulos registrará uma “subida dramática”, apontando para ganhos “fantásticos” e “espetaculares”. Num cenário pessimista, projetam os executivos do banco, os quatro países amealharão 25% do mercado de capital mundial em 2050; as projeções otimistas jogam essa fatia para 50%.
A academia está atenta ao movimento. No mundo real, longe da especulação, a realidade é outra. “O interesse nos Brics não é apenas dos investidores financeiros, mas também dos cientistas sociais e dos economistas”, observa o economista Mariano Laplane, professor do Instituto de Economia da Unicamp, fazendo menção aos vários problemas que atingem esses países.
A convite da Globelics, rede mundial que reúne 17 universidades e desenvolve projetos de pesquisas sobre a relação entre inovação, conhecimento e desenvolvimento, o docente vai coordenar um estudo sobre os sistemas nacionais de inovação do universo Bric.
O trabalho a ser coordenado pela Unicamp se dará em três frentes. A primeira delas será a de comparar estruturas e políticas econômicas dos países com relação à capacidade de promover investimento em ciência, tecnologia e inovação.
A outra será um estudo comparando as estratégias de internacionalização de grandes corporações multinacionais que contam com filiais nesses cinco países, analisando seus perfis e os tipos de atividade que desenvolvem, particularmente na área de inovação.
Por último, os pesquisadores vão desenvolver uma pesquisa mais específica sobre montadoras da indústria automotiva, avaliando sua inserção na indústria automobilística mundial. No Brasil, o projeto, que foi lançado em abril na Dinamarca, é coordenado pelo professor José Eduardo Cassiolato, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Combinar crescimento econômico e inclusão social é um desafio comum desses cinco países. São centenas de milhões de pessoas excluídas”, avalia Laplane, um portenho que é fã do escritor Ricardo Piglia e está no Brasil desde 1983. Para o docente, inovar é sinônimo de inclusão. É o que pode ser conferido na entrevista que segue.
JU – Afora o fato de serem mercados emergentes, o senhor vê outras semelhanças entre os chamados países Brics?
Laplane – Sim, efetivamente. Sobretudo do ponto de vista de quem está preocupado com o tema do desenvolvimento econômico e social de países da periferia. Esses países têm importância significativa. Pode-se argumentar que isso é óbvio, dada a extensão continental da maioria deles, mas a questão transcende os aspectos demográficos e territoriais. A África do Sul, por exemplo, é muito menor do que o Brasil. Mas se formos observar sua posição no continente, constatamos que ocupa economicamente uma posição de liderança.
JU – Quais são os pontos comuns?
Laplane – O desafio de conseguir combinar crescimento econômico e inclusão social. São centenas de milhões de pessoas excluídas nesses cinco países. Crescimento não basta. Precisa ter desenvolvimento para incluir gente, para acabar com a pobreza e a desigualdade. Nosso projeto pretende estudar os sistemas nacionais de inovação dos Brics para entender de que maneira e por meio de quais mecanismos, o sistema que gera em cada país conhecimento, seja científico ou aplicado à economia, é eficiente na promoção do crescimento com desenvolvimento.
O caso da África do Sul, por exemplo, é gritante. Trata-se de um país construído até pouco tempo atrás para que coubesse uma minoria branca, cujo padrão de vida era de primeiro mundo, e uma grande maioria de excluídos não apenas do mercado, mas da cidadania e da liberdade, no sentido mais lato. Este é o desafio. O interesse nos Brics, portanto, não é apenas dos investidores financeiros, mas também dos cientistas sociais e dos economistas.
JU – E no caso do Brasil?
Laplane – Apesar do nosso potencial econômico e apesar de termos resolvido, pelo menos aparentemente, o episódio que provocou a interrupção da trajetória de crescimento do Brasil, que foi a crise da dívida do início dos anos 80, e também apesar de termos feito uma série de reformas profundas institucionais e no regime de políticas econômicas, nós continuamos estagnados. Cada vez mais se fala na importância e na necessidade do crescimento.
JU – Mas esse discurso não é recorrente?
Laplane – Acho que não. Há cinco anos, em entrevista a um jornal de São Paulo, eu disse que precisava haver um lobby a favor do crescimento neste país. Assim como houve, num certo momento, um lobby para se acabar com a inflação, no qual foi criada uma demanda social que envolveu setores e cores políticas diferentes. Aos poucos, está se criando uma demanda a favor do crescimento.
JU – Em direção ao círculo virtuoso.
Laplane – Exatamente, precisa ser um crescimento que se realimente, que gere mais crescimento. Nesse quesito, entretanto, o Brasil está indo muito mal. Resolvemos, de fato, no início da década de 1990, o problema da crise da dívida externa, mas de uma maneira que nos fez mergulhar de cabeça numa outra. Foi implementada uma série de reformas – no regime cambial e na política fiscal – para acabar com a inflação. Com o dólar barato, conseguiu-se segurar a inflação. Entretanto, o problema estourou em 1999 e passamos para outra crise, que é a da dívida do setor público. Por esses motivos, nós não temos crescido. Estudar os Brics talvez nos ajude a entender quais são os caminhos.
JU – Quais são os pontos convergentes?
Laplane – Estamos em companhia de outros países com o mesmo potencial do Brasil, embora com trajetórias diferentes – alguns crescem e outros, não. A Índia, por exemplo, registra um crescimento razoável. Mas a grande estrela do crescimento é a China. A Rússia tem uma trajetória descontínua – depois de 1998, como ocorreu com o Brasil, passou por uma queda brutal do PIB, com a desestruturação total da economia e da sociedade; depois, entretanto, deu uma reagida. O Brasil, não. Nós não temos nem um crescimento excelente nem grandes rupturas. Do ponto de vista econômico, podemos dizer que estamos num estado de coma. Não é profundo, mas a coisa não sai do lugar.
JU – O crescimento é de fato pífio, como dizem os analistas?
Laplane – É pífio. Tanto em relação a outros países como em relação às nossas necessidades. Por isso que os Brics são interessantes. Há um contraste. Olhando para os outros, a gente pode se conhecer mais.
JU – Em que fase está projeto?
Laplane – Estamos na fase do detalhamento. A rede trabalha de maneira descentralizada na execução e no financiamento desses projetos. Embora exista um comitê de coordenação, não há recursos da rede para financiar todos os estudos. Cada equipe de cada país deve procurar suas próprias fontes de financiamento. No caso do Brasil, estamos bem adiantados. Nós temos já avançado nos termos de referência dos órgãos componentes do estudo, na montagem de equipe. E estamos numa fase bastante adiantada de negociação de apoio para o financiamento da pesquisa.
JU – Os estudos já começaram?
Laplane – Como boa parte do estudo é feita por docentes e alunos, nós já estamos tocando o detalhamento dos projetos. Teremos teses de doutorado e dissertações de mestrado envolvidas. O lançamento do acordo quanto ao componente em cada país, ocorreu no mês de abril, em encontro da Globelics, na Universidade de Aalborg, na Dinamarca. De abril até agora, cada país foi detalhando sua contribuição ao projeto e negociando, com seus respectivos governos nacionais, o apoio financeiro para o projeto.
JU – O que pode emergir dessa pesquisa?
Laplane – Daí podem surgir idéias do que é bom copiar e aperfeiçoar, assim como o que não deve fazer por não ter dado certo. Surgiram vários contrastes nessas discussões preliminares.
JU – O senhor poderia fazer uma análise de cada país?
Laplane – A Rússia, por exemplo, tinha um sistema completo que foi desenvolvido na Guerra Fria, com forte vocação para ciência, tecnologia e inovação vinculadas à defesa. E, no entanto, esse sistema entrou em colapso com o fim da União Soviética. As informações que os colegas apresentaram sobre as crises financeiras e as demissões em massa nos institutos de pesquisa e universidades são impressionantes. Praticamente desarticulou o sistema.
JU – E o que vem sendo feito para reverter esse quadro?
Laplane – Os primeiros ensaios não deram certo, porque eles tentaram reorganizar o sistema a partir dos estímulos do mercado. Ele continuou ladeira abaixo. Agora, os russos reconheceram que viveram um namoro ingênuo com o mercado. Com isso, passaram a ter uma visão mais pragmática, ou seja, descobriram que, no mercado, algumas coisas funcionam e outras, não. Onde o mercado pode resolver, o Estado não precisa concentrar seus recursos.
JU – Por exemplo.
Laplane – Uma fonte muito importante de divisas para a Rússia tem sido a questão de energia – petróleo e gás, no caso. São grandes empresas estatais e privadas que demandam conhecimento, desenvolvimento tecnológico e inovação. Essa parte do antigo sistema de ciência, tecnologia e inovação, aos poucos, está sendo rearticulada. O Estado tem também um papel importante no sistema da defesa, com a rearticulação de todo o sistema de produção e conhecimento para a indústria militar.
JU – E a China?
Laplane – O caso da China é um pouco diferente. Eles tinham um sistema de ciência, tecnologia e inovação também para uma economia centralmente planejada. A partir das reformas dos anos 80, eles se lançaram em um processo de industrialização acelerada, com a implantação de novos setores e modernização de outros. Transferiram algumas esferas para a iniciativa privada, não tantas quanto se imagina, já que a presença do Estado na produção industrial é muito forte. Até nas províncias e municípios têm empresas públicas.
De qualquer maneira, por tratar-se de um país com uma indústria muito restrita, fruto de uma industrialização muito rápida, precisa de um pacote de conhecimento que deve ser ampliado e renovado permanentemente. Então, eles têm um sistema de ciência, tecnologia e inovação estatal e público, também com uma forte presença na defesa – as áreas espacial e militar são muito importantes. Por outro lado, a China tem uma política muito inteligente e seletiva, que consiste em captar conhecimentos no exterior.
JU – Eles acabam absorvendo muito desse sistema, não?
Laplane – Toda autorização para entrada de capital estrangeiro na China envolve transferência de tecnologia para uma empresa local. Há, portanto, um esforço consciente, planejado e persistente de se apropriar de tecnologias geradas no Ocidente. Nem mesmo as empresas brasileiras conseguiram investir na China sem passar pelo mecanismo de joint-venture, que envolve cessão explícita, contratual e remunerada de tecnologia.
JU – E a pirataria?
Laplane – É o outro lado. Envolve também pirataria, imitação ou engenharia reversa – são muitas as denominações. Por outro lado, os chineses têm problemas sérios em outras áreas. Há o problema da agricultura familiar, por exemplo – há muita gente ainda no campo e a disponibilidade de terra é insuficiente. Trata-se, ademais, de um país importador de alimentos – o que não deixa de ser bom para o Brasil...
JU – E a Índia?
Laplane – É curioso constatar como as questões se repetem no sistema de inovação. Na Índia, a questão militar tem um peso grande. O país conviveu com quatro guerras, todas com vizinhos, na segunda metade do século XX. Eles têm um programa nuclear e produção militar, que são uma parte importante do sistema de ciência, tecnologia e inovação do país.
Afora isso, a Índia tem uma forte especialização em indústria farmacêutica. Desenvolveram essa indústria com um sistema muito eficiente de engenharia reversa realizada por empresas nacionais, mas que agora enfrenta um sério desafio. Como todo mundo, a Índia assinou os compromissos previstos no acordo internacional de respeito aos direitos de propriedade. Ganharam 10 anos para fazer os ajustes, já que o acordo foi assinado em 1995.
Esse sistema que foi montado para absorver conhecimento e rapidamente gerar inovação – ou seja, a aplicação econômica do conhecimento – vai ter agora que dar um salto muito grande de qualidade. Eles precisam desenvolver conhecimento num nível de sofisticação muito maior do que o de antigamente.
Até agora, o sistema foi muito eficiente na geração de resultados econômicos. A Índia tem grandes multinacionais exportadoras de fármacos, de genéricos. Mas esse salto da imitação, da cópia, para a geração de conhecimento novo, não é pequeno. Esta é grande preocupação deles no momento.
JU – O sucesso da Índia na área de software é reconhecido internacionalmente. Que avaliação o senhor faz dele?
Laplane – Todo mundo fala desse sucesso, mas nossos colegas de lá disseram que, apesar de serem uma fonte de emprego muito importante, nem tudo que eles fazem é trabalho criativo, que exige desenvolvimento. A produção de software hoje tem diversas etapas – algumas mais complexas, outras mais repetitivas. Eles têm uma boa inserção como produtores de software em grande escala e muito baratos, mas eles próprios reconhecem que precisam dar um salto muito grande para chegar a um sistema que desenvolva produtos com mais criatividade e maior valor agregado.
JU – E a realidade sul-africana?
Laplane – É um caso interessante para o Brasil, até porque, como aqui, o problema da exclusão lá é gritante. O sistema de inovação sul-africano, assim como o dos demais, era muito especializado na área militar, já que eles tinham um projeto geopolítico de dominação do continente. Há também alguma competência na área de mineração. Ocorre que, quando mudou o regime e o país deixou de ser racialmente segregado, é preciso pensar em outro sistema de inovação. Alguns dos problemas que eles mais sentem são muito parecidos com os nossos.
JU – Problemas de que natureza?
Laplane – Como acabar com as doenças endêmicas, por exemplo. Muitas dessas doenças são causadas por déficit alimentar, pela falta de saneamento básico. Precisa, portanto, de um sistema de ciência, tecnologia e inovação que gere soluções agora para a grande maioria da população, e não para a elite do Estado nacional. Aquele projeto que eles tinham montado, na área militar, além de caro, perdeu o sentido. As prioridades, hoje, são outras. É preciso reconstruir um sistema que atenda urgências completamente diferentes. O sistema sul-africano é o mais fragilizado dos cinco países.
JU – E no Brasil, onde estão os gargalos?
Laplane – Nós temos um sistema muito desequilibrado. Fazemos algumas coisas muito boas, e, em outras, ainda estamos longe do necessário. O Brasil montou um sistema de ensino superior e de ciência e tecnologia com instituições e grupos de pesquisa de excelente qualidade. Temos grupos de inserção internacional muito conhecidos. O problema é que nós geramos conhecimento e tecnologia, mas nosso ponto frágil é a inovação.
O diálogo entre o nosso sistema de ciência e tecnologia com o sistema produtivo é insuficiente. Os vínculos e os canais de comunicação são extremamente precários.
JU – A que o senhor atribui isso?
Laplane – Trata-se de um debate amplo. Não tenho a pretensão de ter a verdade. É um dilema que o país tem tentado enfrentar, em relação ao qual existem posições divergentes. Alguns pregam que o problema está na oferta de conhecimento. Se você consegue montar um sistema de geração de conhecimento, a demanda não seria problema, já que numa economia aberta existe a concorrência. Se a oferta não chega até as empresas, é porque faltam canais de comunicação adequados.
JU – Quais seriam esses canais?
Laplane – Os problemas seriam excesso de burocracia, deficiências nos fluxos de informação, fragilidade dos mecanismos de financiamento, pesquisadores mais preocupados com a publicação de papers do que em patentear suas descobertas, etc. Portanto, para muita gente, o problema está na oferta. A demanda existe, por definição, se houver concorrência.
Para outra corrente, não adianta você ter oferta porque a demanda não existe espontaneamente. E, mesmo que existisse, segundo esta visão, a oferta doméstica de conhecimento não é a única forma que as empresas têm de resolver suas necessidades; às vezes, não é também a mais barata.
Então, se há um setor produtivo sujeito a condições extremamente desfavoráveis do ponto de vista de sua sobrevivência e de sua rentabilidade, a empresa não procura apenas conhecimento e sim as opções mais baratas e mais rápidas. O raciocínio é o seguinte: por que eu vou encomendar pesquisa para a universidade, se eu posso comprá-la mais barata no exterior? E, na prática, para boa parte das empresas, é isso o que acontece.
Quando a empresa brasileira pensa em inovação, ela está pensando em comprar uma máquina nova. Tecnologia e conhecimento já vêm incorporados na máquina...
Temos, então, duas opiniões bastante divergentes. De um lado, para alguns, o problema da demanda não existe, desde que você tenha oferta. Para outros, não adianta ter oferta.
JU – Existe alguma posição intermediária?
Laplane – Na verdade, a coisa não funciona nesses dois extremos – para algumas atividades, o problema é mais de demanda – tempo, recursos, urgência etc –, e para outros é mais de oferta. Na verdade, são posições ingênuas.
É ingenuidade acreditar que o problema possa ser revolvido se forem criados mecanismos, incentivos, agências etc. Como também é ingênuo acreditar que, reduzindo as taxas de juros e acertando o câmbio, as empresas brasileiras vão se tornar inovadoras.
Uma visão mais madura talvez do que ocorre hoje, no Brasil, passa pelo fato de o sistema produtivo no país ser heterogêneo. Talvez seja o mais diversificado e heterogêneo desses cinco países. Temos recursos naturais, mineração, agronegócio dinâmico, serviços sofisticados, além de uma indústria importante.
Nosso sistema é diversificado também na origem do capital. Uma grande parte da atividade econômica, particularmente na indústria, é dominada pelo capital estrangeiro. Algumas dessas empresas têm interesse e outras não em desenvolver tecnologia e conhecimento no Brasil.
JU – O que pesa nessa escolha?
Laplane – Existem corporações internacionais que centralizam muito as atividades de pesquisa, que não arriscam e não distribuem nada entre as filiais. Outras são um pouco mais abertas, dando mais autonomia às filiais. Invariavelmente, as filiais brasileiras são importantes, têm um peso importante no negócio da corporação.
Outras empresas preferem fazer uma parte de suas atividades de desenvolvimento mais perto do mercado. Um fato, porém, é inquestionável: a liberdade que essas empresas estrangeiras encontram no Brasil para definir seus negócios não existe na China, na Índia e muito menos na Rússia.
JU – Nesses países existe uma intervenção maior por parte do Estado?
Laplane – China, Índia e Rússia têm grandes conglomerados de capital nacional. São corporações transnacionais cujas matrizes funcionam nos respectivos países. A China, por exemplo, tem grandes empresas estatais. É muito maior a capacidade, nesses países, de o Estado articular o sistema de ciência, tecnologia e inovação.
No Brasil, era assim antes das privatizações. Tínhamos grandes estatais que estruturavam seu investimento em pesquisa e desenvolvimento conforme o Estado nacional definia a linha do que era preciso fazer. Um exemplo são os convênios entre a Telebrás e a Unicamp.
Também faz parte da realidade e dessa estrutura muito diversificada, com penetração de capital estrangeiro diferente, o fato de não existir uma solução única. O sistema de inovação brasileiro está sujeito a um conjunto de restrições muito maior do que nos outros países. As soluções precisam ser específicas.
JU – Qual é, na sua opinião, o papel do Estado nesse contexto?
Laplane – Em alguns casos, o Estado deve ser o principal articulador, financiador – com direito a definir quais são as prioridades – do sistema de inovação setorial. Há lugar para o sistema privado, mas o comando deve ser estatal. Não é assim apenas no Brasil, mas no mundo todo. Basta ver o caso do sistema militar, de defesa.
Em outras áreas, o Estado consegue dar o norte, definir muito melhor a direção e a intensidade do avanço do processo de inovação, às vezes sem fazer pesquisa tão diretamente.
JU – Em que áreas, por exemplo?
Laplane – Na área de telecomunicações, na qual a adoção de padrões e a definição de normas técnicas abrangem todo o sistema setorial de inovação. Aí, talvez, o gasto direto do Estado seja menos importante. O ideal, talvez, no caso, fosse ter uma grande empresa nacional privada que tivesse capacidade financeira e interesse estratégico de investir pesadamente no desenvolvimento de tecnologia. No caso da agropecuária e do agronegócio, a história é outra.
O Brasil tem um mosaico de problemas. O nosso desafio é encontrar um sistema que nos permita flexivelmente desenvolver soluções específicas, sem abrir mão de uma coordenação em elos básicos do sistema, como na pós-graduação.
JU – Quem ficaria incumbido dela?
Laplane – É preciso ter um mínimo de articulação. Aí entra o papel do Estado, de planejador que identifica gargalos, necessidades, antes que o setor privado os identifique. O Brasil tem tido casos de sucesso. Constatei, nessas reuniões, que não fazemos feio.
A iniciativa do Brasil de fincar o pé junto a Organização Mundial do Comércio no campo do combate da Aids é um exemplo. Seria uma ameaça oca se o mundo não soubesse que o Brasil tem condições, infra-estrutura e cérebros suficientes para dizer que vai produzir isso ou aquilo. Por que funcionou? Porque havia, antes, um investimento acumulado que colocou, à disposição do Estado brasileiro, recursos humanos e materiais para tornar crível essa ameaça. E isso é visto com profunda admiração e reconhecimento pelos quatro países.
Eles também reconhecem as iniciativas do Brasil no campo dos biocombustíveis. Outro exemplo reconhecido é o sucesso da Embraer. Nós poderíamos ter feito muito mais se o país tivesse uma performance econômica condizente.
JU – Em que medida a falta de crescimento interfere?
Laplane – Quando o Estado quer aumentar investimento num determinado setor ou surge uma nova demanda, o que se colocou, nesses últimos 20 anos, é onde se vai cortar... Não é segredo para ninguém que os cortes têm atingido, sistematicamente, o sistema de ciência, tecnologia e inovação, em favor de outras prioridades – desde pagar juros da dívida interna até outros exemplos.
A própria privatização, independentemente das motivações ideológicas, foi uma coisa reconhecida, por quem fez, como produto de uma necessidade fiscal. Argumentavam que era preciso se desfazer dos ativos que o Estado tinha acumulado para diminuir a dívida pública. Isso não adiantou nada. Logo depois, na crise de 1999, nós fabricamos outra dívida pública enorme para pagar os custos de ter segurado o dólar. Crescer, realmente, ajudaria.
JU – Parece que essa discussão sobre a necessidade da inovação começa a ganhar corpo. Nem sempre, porém, foi assim.
Laplane – Voltemos ao debate. A discussão entre oferta e demanda é totalmente ultrapassada. A própria idéia de sistema contempla os dois lados, só que em grau e maneira diferentes, dependendo do setor e do tipo de problema que está se querendo resolver. Trata-se de uma percepção relativamente nova no mundo e muito mais nova ainda no Brasil.
Na verdade, o processo de incorporação de conhecimento à economia é produto da interação entre setor privado e setor público; entre oferta e demanda; entre o produtor de bens finais e o produtor de equipamento; e entre empresas nacionais e empresas estrangeiras. No fundo, existe uma interação complexa entre todos esses atores que geram inovação. Isto é novo.
JU – Precisa haver interação.
Laplane – Justamente. O novo é a percepção de que não vão mudar as coisas pegando apenas um ator isolado do processo. A Unicamp tem sido pioneira no sentido de formular o problema desta maneira. Ela vem tentando fortalecer os mecanismos dessa interação. Quando a Inova decide acelerar e facilitar o processo de patenteamento, ela está dizendo o seguinte: vamos fortalecer este mecanismo de realimentação entre geração de conhecimento e inovação. Esta é uma iniciativa mais eficiente do que fazer campanhas para conscientizar os empresários da importância da inovação.
Nesta interação e neste sistema complexo de geração de valor econômico a partir do conhecimento, em alguns campos, para algum tipo de problema, há hierarquias. Todos os atores importam, mas nem todos estão no mesmo grau. Tem gente mais importante do que outros em determinados casos.
JU – Esta regra se aplica em que situação?
Laplane –Na indústria de equipamentos eletromecânicos e farmacêutica, por exemplo, o ator principal não são os empresários em geral nem a opinião pública. Quando falo de um problema específico, ou seja, de conhecimento aplicado à indústria, o ator principal são as grandes empresas. Essas corporações têm a motivação principal. São as principais demandantes de conhecimento.
JU – Quais seriam as principais demandas?
Laplane – Elas poderão ser atendidas por três vias. A primeira é a tecnologia que eles contratam de outras empresas. A outra é a tecnologia desenvolvida dentro da própria empresa – a coisa mais sigilosa, que eles não querem compartilhar com ninguém. E a terceira é aquela que é contratada nas universidades e nos institutos. Se não há esse ator principal, não tem enredo, não há filme. Lógico que a educação básica é importante, a intervenção do Estado também, mas não resolve. O que resolveria seria termos uma Siemens ou uma Bosch brasileira...
JU – E o caso da Petrobras, da Embraer e da Vale do Rio do Doce, para ficarmos em alguns exemplos de empresas bem-sucedidas?
Laplane – São nossos pontos de apoio. Não adianta tentar se apoiar numa coisa que não existe. Já em outras atividades, como disse anteriormente, há espaço para o Estado intervir; em outras, há espaço para a pequena e média empresa. Não podemos perder tempo procurando uma solução única. Para o bem ou para o mal, nós temos um país mais complexo. Este é o grande desafio.
Não basta a Globo fazer propaganda e dizer: “vamos criar o cidadão inovador”. Isso não faz mal, mas também não resolve. Por que a empresa inova? Por que deseja promover o progresso e a ciência? Não. A empresa inova para ganhar dinheiro. Isso significa que, além de conseguir ter dinheiro para investir, deve ter outros atributos.
JU – Quais seriam esses atributos?
Laplane – Deve ter marca, poder de mercado, ser capaz de derrotar os concorrentes. Toda a capacitação da Embraer só faz sentido se ela conseguir ter outras competências. É preciso saber ganhar contratos, fortalecer sua marca, resolver problemas de financiamento de seus clientes. A empresa capitalista depende de inovação. Mas inovação só faz sentido se ela tiver também outros atributos que permitem que o conhecimento se traduza em lucro.
JU – E se olharmos para o país?
Laplane – Não adianta nada ter uma empresa que não gere efeitos de realimentação sobre a economia no seu conjunto – ao menos no seu setor. Por que a Embraer e a Petrobras são importantes? Talvez sejam as duas empresas que mais contratem engenheiros no Brasil. Ambas criam empregos bem-pagos, qualificados, gerando um enorme fluxo de divisas.
Uma coisa, portanto, são os objetivos da empresa e outra, do país. No último caso, nós queremos ter uma renda per capita pelo menos três vezes maior do que a atual – e essa renda precisa ser melhor distribuída. Veja o caso da China. Seu crescimento fantástico está tendo um custo social altíssimo. A desigualdade na distribuição de renda tem piorado muito. A mesma coisa ocorre na Rússia.
Outra coisa que esses cinco países têm em comum é a necessidade de se fortalecer as instituições democráticas. Todas são frágeis. Isso mostra que não vai dar certo a idéia de crescimento que gere exclusão.
JU – O que precisa ser feito para legitimá-lo?
Laplane – Ele precisa ser legitimado por uma percepção de que melhora a vida material das pessoas, diminuindo as desigualdades. Muito já se discutiu sobre a relação entre democracia e desenvolvimento. Pensando na sustentabilidade e na renovação contínua do crescimento, constatamos que ele precisa vir acompanhado de um mínimo de estabilidade institucional.
JU – São indissociáveis?
Laplane – É claro que é possível garantir esse crescimento com governo autoritário, mas não conheço nenhum que tenha durado para sempre... A democracia não vacina contra as turbulências, ela tem suas crises, mas pelo menos estrutura o mecanismo de solução das crises. Associa democracia a um mínimo de igualdade, ao aumento do bem-estar e à redução da desigualdade.
Não é, portanto, inovação a qualquer preço. Isto não leva a nada. Basta pensar no caso da África do Sul. O sistema de inovação era sofisticado e adequado aos objetivos da minoria branca que estava no topo do poder. O regime do apartheid não caiu por falta de conhecimento, mas sim porque não tinha legitimidade.