Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 218 - 30 de junho a 06 de julho de 2003
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Tese revela inoperância de aparato
que coíbe lavagem de dinheiro no País

Estudo conclui que problemas estruturais interferem na fiscalização
e na apuração de casos suspeitos

O aparato institucional brasileiro de prevenção e combate à lavagem de dinheiro convergiu rapidamente para os padrões internacionais e está acima da maioria das demais nações, mas mostra-se praticamente nulo em relação a resultados concretos. A conclusão, altamente preocupante, faz parte da dissertação de mestrado defendida recentemente por Gerson Luís Romantini junto ao Instituto de Economia (IE) da Unicamp. De acordo com ele, entre 1998, ano de promulgação da “lei antilavagem” brasileira, até outubro de 2002 foram encaminhadas ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão vinculado ao Ministério da Fazenda, 18.610 comunicações de operações suspeitas. No mesmo período, foram instaurados apenas 666 inquéritos policiais e indiciadas 149 pessoas. Até o momento, porém, ninguém foi preso e nenhum centavo dos cerca de US$ 17 bilhões lavados anualmente foi recuperado. De acordo com estudos internacionais, o País ocupa a 20ª posição no ranking das maiores “lavanderias” do mundo.

Paradoxalmente, o combate à lavagem de dinheiro encontra obstáculo no próprio aparato institucional criado para facilitar a persecução criminal, segundo Romantini. “O Brasil é exemplar na criação de instituições para o enfrentamento desse tipo de crime. O problema é que elas não funcionam”, afirma. O ponto nevrálgico da inoperância, conforme apontou o autor da pesquisa, está no Coaf, unidade de inteligência financeira (FIU, em inglês) criada segundo os moldes internacionais pela lei 9.613/98. Sua finalidade é “disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar ocorrências suspeitas de atividades ilícitas relacionadas à lavagem de dinheiro”. A despeito dessas atribuições, o órgão tem enviado à Polícia ou ao Ministério Público (MP) um número inexpressivo de casos suspeitos, segundo apurou o estudo.

Isso acontece, no entender de Romantini, principalmente por causa da falta de estrutura do Coaf. Embora tenha várias responsabilidades, inclusive a de estar em contato e cooperar com as FIUs de outros países, o Conselho dispunha de apenas 18 funcionários até fevereiro de 2002. “Além disso, esse quadro é composto por pessoas cedidas por outras unidades administrativas, o que não garante o desenvolvimento de um corpo funcional com compromissos de longo prazo com o órgão. Isso também cria problemas de qualificação técnica e até mesmo de continuidade das atividades”, explica.

Só para ter uma idéia do gargalo formado no âmbito do Coaf, Romantini apurou que das mais de 18 mil notificações de operações suspeitas recebidas pelo órgão entre 1998 e 2002, apenas duas haviam sido encaminhadas à Polícia Federal (até 31 de novembro de 2002) e nenhuma ao Ministério Público (até 29 de agosto do mesmo ano). Detalhe: as duas instituições em questão estão localizadas em São Paulo, justamente o Estado que mais gerou comunicações. O Coaf, entretanto, tem divulgado números positivos acerca do próprio desempenho. Em sua home page, o organismo sustenta que tem obtido resultados significativos “nas inúmeras ações no combate ao crime de lavagem de dinheiro”.

De acordo com os dados disponibilizados no site, em 2001 o Coaf recebeu 6.364 comunicações de operações suspeitas, encaminhadas pelos diversos agentes econômicos e financeiros (bancos, bolsas de mercadorias, bingos, joalherias, lojas de antiguidades, entidades fechadas de previdência privada, bingos, administradoras de cartões de crédito etc). Dessas, 99 teriam sido encaminhadas às autoridades policiais e ao MP, “por terem apresentado sérios indícios de prática de crime de lavagem de dinheiro”. De 1998 a outubro de 2002, teria havido 712 encaminhamentos. Com base nas informações que conseguiu levantar, Romantini diz que tem motivos para duvidar desses indicadores.

De acordo com ele, a discrepância entre o volume de comunicações e o número de encaminhamentos à Polícia e ao MP indica que, além do problema estrutural do órgão, as atividades do Coaf podem vir a ser contaminadas por critérios políticos. “Por definição, não cabe ao Conselho fazer a seleção das comunicações. Sua função é recebê-las, cruzá-las com outros dados e depois enviá-las às esferas competentes, que aí sim vão identificar quais estão ou não ligadas a atos ilícitos”, esclarece.
O atual governo brasileiro, diz, tem demonstrando preocupação com o aperfeiçoamento das ações de combate à lavagem de dinheiro. No início de junho, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, anunciou algumas medidas nesse sentido. A principal delas foi a criação do Departamento de Recuperação de Ativos Ilícitos, que tentará reaver o dinheiro envolvido em ações do crime organizado. Além disso, o ministro também informou que o Coaf será reestruturado, o que implica na contratação de novos funcionários e no investimento em tecnologia. Na opinião de Romantini, se essas medidas forem de fato executadas, o Coaf finalmente poderá vir a se transformar num órgão de grande valia no combate ao crime organizado e à lavagem de dinheiro, como ocorre em outros países.

Histórico – A lavagem de dinheiro está umbilicalmente ligada ao crime organizado, especialmente ao tráfico de drogas. A prática de ocultar ou dissimular a origem ilícita de ativos obtidos com o crime é antiga, mas a lavagem de dinheiro em larga escala nos mercados financeiros internacionais é um fenômeno relativamente recente (remonta à década de 1980), que tem despertado uma crescente preocupação da comunidade internacional. Tanto é assim, que o assunto deixou de ser tratado apenas na esfera jurídica e passou a ser analisado também sob o ponto de vista econômico. De acordo com Gerson Luís Romantini, o processo de lavagem consiste em dar uma aparência lícita a recursos oriundos de atividades criminosas.
Para isso, os lavadores não respeitam fronteiras e valem-se de uma série de artifícios, incluindo sofisticadas operações financeiras e comerciais. Segundo o FMI, organismo que tem estado atendo ao assunto, o tamanho do fluxo anual de lavagem de dinheiro no mundo pode ser estimado como algo entre 2% e 5% do PIB mundial.

Usando as estatísticas de 2001, essas porcentagens indicam que os criminosos movimentavam anualmente recursos da ordem de US$ 600 bilhões a US$ 1,5 trilhão.
Atentos aos impactos micro e macroeconômicos, diversos países iniciaram um esforço conjunto para combater esse tipo de crime. Em 1988, dezena de nações, entre elas o Brasil, assinaram um acordo internacional conhecido como Convenção de Viena, no qual se comprometeram a adotar iniciativas para criminalizar a lavagem de dinheiro. Em seguida, no âmbito da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), foi criado o Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro (Gafi/Fatf), que recomendou diretrizes e políticas para a área. O Gafi/Fatf elaborou uma espécie de bíblia com 40 mandamentos a serem seguidos pelas nações engajadas.

O Grupo gerou, ainda, uma lista de países e territórios não-cooperantes, como forma de pressioná-los a aderir ao esforço, mediante a ameaça de marginalização econômica. A comunidade internacional percebeu que as ações do crime organizado, que em algum momento desembocam na lavagem de dinheiro, têm caráter transnacional. Em outras palavras, ficou claro que se não houvesse uma ação conjunta dos estados, o problema não só não poderia ser resolvido, como tenderia a se agravar. O Brasil, conforme o pesquisador, levou três anos para ratificar a Convenção de Viena pelo Congresso Nacional. Em 1996 o governo enviou ao Legislativo projeto de lei criminalizando a lavagem de dinheiro e criando a FIU nacional, o Coaf. Em 1998, dez anos depois de iniciado o movimento, o País finalmente promulgou a lei antilavagem.

A legislação, reforça Romantini, estabelece uma série de procedimentos para a prevenção e combate à lavagem de dinheiro, como a obrigatoriedade de os bancos, bolsas de valores, comerciantes de jóias etc comunicarem ao Coaf qualquer operação suspeita. Isso vem sendo feito regularmente, mas as informações não têm chegado em volume satisfatório à Polícia e ao Ministério Público, como sustenta a pesquisa. Por enquanto, segundo o autor do trabalho, os criminosos estão nadando de braçada no mar da inoperância institucional.

 

Os caminhos da lavagem

A lavagem de dinheiro obedece, com pequenas variações, a um mesmo processo no mundo inteiro. De acordo com Gerson Luís Romantini, ficou convencionado, para fins analíticos e didáticos, que o caminho para dar aparência lícita a recursos oriundos de atividades criminosas obedece a três etapas: “placement”, “layering” e “integration”. O Coaf traduziu esses termos para “colocação”, “ocultação” e “integração”, respectivamente. Essas fases são descritas da seguinte maneira na dissertação de Romantini:

Colocação
Também chamada de “conversão” por alguns autores. Após a captação e concentração dos ativos oriundos da atividade delituosa, o lavador de dinheiro busca distanciar o agente que praticou o crime do produto ilícito por ele obtido. O lavador tenta romper o elo entre o criminoso e os recursos ilícitos, buscando inserir esses ativos no sistema econômico formal. É nessa etapa que o dinheiro “sujo” está mais vulnerável à detecção e ao confisco. Um dos ativos mais comumente obtidos com a prática criminosa é o dinheiro em espécie. Esse meio de pagamento traz um grande grau de anonimato e, conseqüentemente, de segurança para a contraparte da operação ilícita.

No entanto, para o criminoso, o pagamento em espécie constitui um grande problema. Muitas vezes, o volume físico do dinheiro em espécie, especialmente em relação às cédulas de pequeno valor obtidas com a comercialização de drogas, pode ser muito maior que o próprio volume da mercadoria vendida. Para se ter uma idéia, 200.000 em notas de 10 pesam algo em torno de 18 quilos. Além disso, o dinheiro em espécie é mais facilmente perdido, roubado ou destruído. Em alguns esquemas identificados em países de moeda forte como os EUA, o dinheiro em espécie obtido ilicitamente é contrabandeado para o exterior e inserido no sistema financeiro internacional através de instituições financeiras localizadas em países estrangeiros, especialmente “paraísos fiscais”.

Ocultação
Também chamada de “estratificação” ou “dissimulação” por alguns. O objetivo nessa etapa é dificultar o rastreamento contábil dos recursos ilícitos inseridos no sistema econômico formal, tentando quebrar a cadeia de evidências que ligam esses fundos a sua real origem. A ocultação consiste de uma série de transações, geralmente de natureza financeira, que visam encobrir ou dissimular a verdadeira origem dos recursos. Essa é a fase mais complexa do processo e também a mais internacional delas. O lavador procura movimentar várias vezes os recursos inseridos no sistema financeiro, através de transferências eletrônicas dentro de um mesmo país ou entre diversos países, transferindo os ativos para contas anônimas, dividindo os fundos em diversas contas para concentrá-los novamente mais adiante, etc.

O dinheiro é preferencialmente movimentado entre países amparados por leis rígidas de sigilo bancário, com deficientes sistemas nacionais de controle antilavagem ou com dificuldades legais ou operacionais de cooperação judicial e policial. Merece destaque o papel desempenhado pelos consultores financeiros e jurídicos internacionais. Eles, muitas vezes, idealizam as operações de lavagem, vendem seu know-how, mas não têm qualquer contato direto com os ativos ilícitos ou com o crime que os originou. Cabe destacar também que “nesta etapa é que surgem os maiores riscos de vulneração aos sistemas financeiros nacionais”.
qIntegração

Os ativos são incorporados formalmente ao sistema econômico legal, através do investimento em empreendimentos lícitos ou pela simples compra de bens e serviços. Os recursos que tiveram origem numa atividade delituosa retornam agora aos criminosos que os geraram, com uma aparência de legitimidade. Nesse momento pode-se dizer que os recursos foram lavados e tornaram-se “limpos”. Uma vez tendo os recursos novamente disponíveis em suas mãos, os criminosos podem reinvesti-los em sua própria atividade ilícita ou diversificá-los.

Investimentos em atividades lícitas constituem não só uma fonte de renda insuspeita para o criminoso, mas também facilita a dissimulação de novos ativos que precisem ser lavados. É importante ressaltar que, nesse modelo padrão, as etapas se sucedem no tempo e são teoricamente independentes entre si. No entanto, não é raro encontrar esquemas de lavagem de dinheiro em que essas fases ocorrem ao mesmo tempo.

 

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