O aparato institucional brasileiro
de prevenção e combate à lavagem
de dinheiro convergiu rapidamente para os padrões
internacionais e está acima da maioria das
demais nações, mas mostra-se praticamente
nulo em relação a resultados concretos.
A conclusão, altamente preocupante, faz parte
da dissertação de mestrado defendida
recentemente por Gerson Luís Romantini junto
ao Instituto de Economia (IE) da Unicamp. De acordo
com ele, entre 1998, ano de promulgação
da lei antilavagem brasileira, até
outubro de 2002 foram encaminhadas ao Conselho de
Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão
vinculado ao Ministério da Fazenda, 18.610
comunicações de operações
suspeitas. No mesmo período, foram instaurados
apenas 666 inquéritos policiais e indiciadas
149 pessoas. Até o momento, porém, ninguém
foi preso e nenhum centavo dos cerca de US$ 17 bilhões
lavados anualmente foi recuperado. De acordo com estudos
internacionais, o País ocupa a 20ª posição
no ranking das maiores lavanderias do
mundo.
Paradoxalmente, o combate
à lavagem de dinheiro encontra obstáculo
no próprio aparato institucional criado para
facilitar a persecução criminal, segundo
Romantini. O Brasil é exemplar na criação
de instituições para o enfrentamento
desse tipo de crime. O problema é que elas
não funcionam, afirma. O ponto nevrálgico
da inoperância, conforme apontou o autor da
pesquisa, está no Coaf, unidade de inteligência
financeira (FIU, em inglês) criada segundo os
moldes internacionais pela lei 9.613/98. Sua finalidade
é disciplinar, aplicar penas administrativas,
receber, examinar e identificar ocorrências
suspeitas de atividades ilícitas relacionadas
à lavagem de dinheiro. A despeito dessas
atribuições, o órgão tem
enviado à Polícia ou ao Ministério
Público (MP) um número inexpressivo
de casos suspeitos, segundo apurou o estudo.
Isso acontece, no entender
de Romantini, principalmente por causa da falta de
estrutura do Coaf. Embora tenha várias responsabilidades,
inclusive a de estar em contato e cooperar com as
FIUs de outros países, o Conselho dispunha
de apenas 18 funcionários até fevereiro
de 2002. Além disso, esse quadro é
composto por pessoas cedidas por outras unidades administrativas,
o que não garante o desenvolvimento de um corpo
funcional com compromissos de longo prazo com o órgão.
Isso também cria problemas de qualificação
técnica e até mesmo de continuidade
das atividades, explica.
Só para ter uma idéia
do gargalo formado no âmbito do Coaf, Romantini
apurou que das mais de 18 mil notificações
de operações suspeitas recebidas pelo
órgão entre 1998 e 2002, apenas duas
haviam sido encaminhadas à Polícia Federal
(até 31 de novembro de 2002) e nenhuma ao Ministério
Público (até 29 de agosto do mesmo ano).
Detalhe: as duas instituições em questão
estão localizadas em São Paulo, justamente
o Estado que mais gerou comunicações.
O Coaf, entretanto, tem divulgado números positivos
acerca do próprio desempenho. Em sua home page,
o organismo sustenta que tem obtido resultados significativos
nas inúmeras ações no combate
ao crime de lavagem de dinheiro.
De acordo com os dados disponibilizados
no site, em 2001 o Coaf recebeu 6.364 comunicações
de operações suspeitas, encaminhadas
pelos diversos agentes econômicos e financeiros
(bancos, bolsas de mercadorias, bingos, joalherias,
lojas de antiguidades, entidades fechadas de previdência
privada, bingos, administradoras de cartões
de crédito etc). Dessas, 99 teriam sido encaminhadas
às autoridades policiais e ao MP, por
terem apresentado sérios indícios de
prática de crime de lavagem de dinheiro.
De 1998 a outubro de 2002, teria havido 712 encaminhamentos.
Com base nas informações que conseguiu
levantar, Romantini diz que tem motivos para duvidar
desses indicadores.
De acordo com ele, a discrepância
entre o volume de comunicações e o número
de encaminhamentos à Polícia e ao MP
indica que, além do problema estrutural do
órgão, as atividades do Coaf podem vir
a ser contaminadas por critérios políticos.
Por definição, não cabe
ao Conselho fazer a seleção das comunicações.
Sua função é recebê-las,
cruzá-las com outros dados e depois enviá-las
às esferas competentes, que aí sim vão
identificar quais estão ou não ligadas
a atos ilícitos, esclarece.
O atual governo brasileiro, diz, tem demonstrando
preocupação com o aperfeiçoamento
das ações de combate à lavagem
de dinheiro. No início de junho, o ministro
da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, anunciou
algumas medidas nesse sentido. A principal delas foi
a criação do Departamento de Recuperação
de Ativos Ilícitos, que tentará reaver
o dinheiro envolvido em ações do crime
organizado. Além disso, o ministro também
informou que o Coaf será reestruturado, o que
implica na contratação de novos funcionários
e no investimento em tecnologia. Na opinião
de Romantini, se essas medidas forem de fato executadas,
o Coaf finalmente poderá vir a se transformar
num órgão de grande valia no combate
ao crime organizado e à lavagem de dinheiro,
como ocorre em outros países.
Histórico
A lavagem de dinheiro está umbilicalmente ligada
ao crime organizado, especialmente ao tráfico
de drogas. A prática de ocultar ou dissimular
a origem ilícita de ativos obtidos com o crime
é antiga, mas a lavagem de dinheiro em larga
escala nos mercados financeiros internacionais é
um fenômeno relativamente recente (remonta à
década de 1980), que tem despertado uma crescente
preocupação da comunidade internacional.
Tanto é assim, que o assunto deixou de ser
tratado apenas na esfera jurídica e passou
a ser analisado também sob o ponto de vista
econômico. De acordo com Gerson Luís
Romantini, o processo de lavagem consiste em dar uma
aparência lícita a recursos oriundos
de atividades criminosas.
Para isso, os lavadores não respeitam fronteiras
e valem-se de uma série de artifícios,
incluindo sofisticadas operações financeiras
e comerciais. Segundo o FMI, organismo que tem estado
atendo ao assunto, o tamanho do fluxo anual de lavagem
de dinheiro no mundo pode ser estimado como algo entre
2% e 5% do PIB mundial.
Usando as estatísticas
de 2001, essas porcentagens indicam que os criminosos
movimentavam anualmente recursos da ordem de US$ 600
bilhões a US$ 1,5 trilhão.
Atentos aos impactos micro e macroeconômicos,
diversos países iniciaram um esforço
conjunto para combater esse tipo de crime. Em 1988,
dezena de nações, entre elas o Brasil,
assinaram um acordo internacional conhecido como Convenção
de Viena, no qual se comprometeram a adotar iniciativas
para criminalizar a lavagem de dinheiro. Em seguida,
no âmbito da Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE), foi criado o Grupo de Ação Financeira
contra a Lavagem de Dinheiro (Gafi/Fatf), que recomendou
diretrizes e políticas para a área.
O Gafi/Fatf elaborou uma espécie de bíblia
com 40 mandamentos a serem seguidos pelas nações
engajadas.
O Grupo gerou, ainda, uma
lista de países e territórios não-cooperantes,
como forma de pressioná-los a aderir ao esforço,
mediante a ameaça de marginalização
econômica. A comunidade internacional percebeu
que as ações do crime organizado, que
em algum momento desembocam na lavagem de dinheiro,
têm caráter transnacional. Em outras
palavras, ficou claro que se não houvesse uma
ação conjunta dos estados, o problema
não só não poderia ser resolvido,
como tenderia a se agravar. O Brasil, conforme o pesquisador,
levou três anos para ratificar a Convenção
de Viena pelo Congresso Nacional. Em 1996 o governo
enviou ao Legislativo projeto de lei criminalizando
a lavagem de dinheiro e criando a FIU nacional, o
Coaf. Em 1998, dez anos depois de iniciado o movimento,
o País finalmente promulgou a lei antilavagem.
A legislação,
reforça Romantini, estabelece uma série
de procedimentos para a prevenção e
combate à lavagem de dinheiro, como a obrigatoriedade
de os bancos, bolsas de valores, comerciantes de jóias
etc comunicarem ao Coaf qualquer operação
suspeita. Isso vem sendo feito regularmente, mas as
informações não têm chegado
em volume satisfatório à Polícia
e ao Ministério Público, como sustenta
a pesquisa. Por enquanto, segundo o autor do trabalho,
os criminosos estão nadando de braçada
no mar da inoperância institucional.
Os caminhos da lavagem
A lavagem de dinheiro obedece,
com pequenas variações, a um mesmo
processo no mundo inteiro. De acordo com Gerson
Luís Romantini, ficou convencionado,
para fins analíticos e didáticos,
que o caminho para dar aparência lícita
a recursos oriundos de atividades criminosas
obedece a três etapas: placement,
layering e integration.
O Coaf traduziu esses termos para colocação,
ocultação e integração,
respectivamente. Essas fases são descritas
da seguinte maneira na dissertação
de Romantini:
Colocação
Também chamada de conversão
por alguns autores. Após a captação
e concentração dos ativos oriundos
da atividade delituosa, o lavador de dinheiro
busca distanciar o agente que praticou o crime
do produto ilícito por ele obtido. O
lavador tenta romper o elo entre o criminoso
e os recursos ilícitos, buscando inserir
esses ativos no sistema econômico formal.
É nessa etapa que o dinheiro sujo
está mais vulnerável à
detecção e ao confisco. Um dos
ativos mais comumente obtidos com a prática
criminosa é o dinheiro em espécie.
Esse meio de pagamento traz um grande grau de
anonimato e, conseqüentemente, de segurança
para a contraparte da operação
ilícita.
No entanto, para o criminoso,
o pagamento em espécie constitui um grande
problema. Muitas vezes, o volume físico
do dinheiro em espécie, especialmente
em relação às cédulas
de pequeno valor obtidas com a comercialização
de drogas, pode ser muito maior que o próprio
volume da mercadoria vendida. Para se ter uma
idéia, 200.000 em notas de 10 pesam algo
em torno de 18 quilos. Além disso, o
dinheiro em espécie é mais facilmente
perdido, roubado ou destruído. Em alguns
esquemas identificados em países de moeda
forte como os EUA, o dinheiro em espécie
obtido ilicitamente é contrabandeado
para o exterior e inserido no sistema financeiro
internacional através de instituições
financeiras localizadas em países estrangeiros,
especialmente paraísos fiscais.
Ocultação
Também chamada de estratificação
ou dissimulação por
alguns. O objetivo nessa etapa é dificultar
o rastreamento contábil dos recursos
ilícitos inseridos no sistema econômico
formal, tentando quebrar a cadeia de evidências
que ligam esses fundos a sua real origem. A
ocultação consiste de uma série
de transações, geralmente de natureza
financeira, que visam encobrir ou dissimular
a verdadeira origem dos recursos. Essa é
a fase mais complexa do processo e também
a mais internacional delas. O lavador procura
movimentar várias vezes os recursos inseridos
no sistema financeiro, através de transferências
eletrônicas dentro de um mesmo país
ou entre diversos países, transferindo
os ativos para contas anônimas, dividindo
os fundos em diversas contas para concentrá-los
novamente mais adiante, etc.
O dinheiro é preferencialmente
movimentado entre países amparados por
leis rígidas de sigilo bancário,
com deficientes sistemas nacionais de controle
antilavagem ou com dificuldades legais ou operacionais
de cooperação judicial e policial.
Merece destaque o papel desempenhado pelos consultores
financeiros e jurídicos internacionais.
Eles, muitas vezes, idealizam as operações
de lavagem, vendem seu know-how, mas não
têm qualquer contato direto com os ativos
ilícitos ou com o crime que os originou.
Cabe destacar também que nesta
etapa é que surgem os maiores riscos
de vulneração aos sistemas financeiros
nacionais.
qIntegração
Os ativos são incorporados
formalmente ao sistema econômico legal,
através do investimento em empreendimentos
lícitos ou pela simples compra de bens
e serviços. Os recursos que tiveram origem
numa atividade delituosa retornam agora aos
criminosos que os geraram, com uma aparência
de legitimidade. Nesse momento pode-se dizer
que os recursos foram lavados e tornaram-se
limpos. Uma vez tendo os recursos
novamente disponíveis em suas mãos,
os criminosos podem reinvesti-los em sua própria
atividade ilícita ou diversificá-los.
Investimentos em atividades
lícitas constituem não só
uma fonte de renda insuspeita para o criminoso,
mas também facilita a dissimulação
de novos ativos que precisem ser lavados. É
importante ressaltar que, nesse modelo padrão,
as etapas se sucedem no tempo e são teoricamente
independentes entre si. No entanto, não
é raro encontrar esquemas de lavagem
de dinheiro em que essas fases ocorrem ao mesmo
tempo.
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