Mesmo aposentado, o educador
e professor José Dias Sobrinho ainda freqüenta
os corredores da Faculdade de Educação
da Unicamp, onde atua como colaborador. Foi pró-reitor
de Pós-Graduação de 1990 a 1994,
quando idealizou e coordenou a pioneira experiência
de avaliação institucional na Universidade.
Dias Sobrinho preside atualmente a Comissão
Especial de Avaliação da Educação
Superior, instituída pelo MEC para analisar
e propor uma nova sistemática de avaliação
da educação superior. Na entrevista
que segue, o educador critica o ranqueamento preconizado
pelo Provão, afirmando que, do jeito que está
formulado, o modelo prioriza a lógica da competitividade,
e não da educação como bem púbico,
e fala sobre as mudanças previstas para o sistema
de avaliação.
JU Da forma como
foi concebido, qual seria hoje o principal problema
apresentado pelo Exame Nacional de Cursos (Provão)
em sua opinião?
Dias Sobrinho Um autor norte-americano,
George Madaus, sinaliza algo que entendo como um dos
principais problemas do Provão. Da forma como
é apresentado, o currículo de formação
de um curso escapa das mãos do professor e
da escola e passa para entidades externas. Entenda-se
currículo, não só a lista de
disciplinas, mas todo o conjunto de atividades educativas
(didático e pedagógico, as atividades)
em seu sentido mais amplo. Quando uma instituição
atribui exagerado valor ao resultado de seus estudantes
num teste, tende a transformar o conjunto de suas
práticas educativas em uma espécie de
cursinho que leve ao bom desempenho no
Exame. Existem casos em que disciplinas básicas
são colocadas mais próximo do Provão.
Ensinar e estudar para o exame representa um empobrecimento
da formação integral do indivíduo.
JU O mecanismo então
não é eficaz?
Dias Sobrinho O teste simplesmente funciona
como um instrumento que deve estar associado a múltiplos
instrumentos e procedimentos que devem constituir
a avaliação. É importante saber
como está o ensino no Brasil, mas que isto
não seja utilizado para constituir rankings.
Mesmo porque um A do Provão não está
dizendo que o curso é bom, nem o E indica que
é necessariamente muito ruim. Sugere simplesmente
uma posição relativa. Em algumas áreas,
há cursos A com baixa média. Entretanto,
recebem a melhor qualificação por terem
obtido resultados superiores a outros. Porém,
resultados dos estudantes não representam necessariamente
a qualidade dos cursos.
JU Qual o problema
do ranqueamento?
Dias Sobrinho É conhecida como
falácia harvardiana o seguinte:
a Universidade de Harvard tem tido os melhores resultados
em grande parte porque recebe os melhores alunos.
É uma injustiça comparar uma grande
universidade completa e complexa, com adequadas condições
de produção, que desenvolve ensino,
pesquisa, extensão, que recebe os melhores
alunos e que em geral têm as melhores condições
socioeconômicas, com uma instituição
mais pobre, menos consolidada, e que não recebe
os melhores alunos. O segundo ponto está ligado
ao desempenho do estudante. A média consolidada
não avalia a qualidade do curso. Não
se pode dizer que este resultado represente a qualidade
do curso. Mesmo porque a qualidade do curso é
muito mais que a soma ou a média do desempenho
do estudante. Em um curso superior, a qualidade consiste
no que aprendem, na qualidade das pesquisas, no nível
dos professores, qualidade das bibliotecas e todo
um ambiente que ultrapassa largamente o que o aluno
respondeu em um teste. Uma outra questão seria
que desempenho é diferente de aprendizagem.
Não dá para confundir. Não se
mede aprendizagem, que é algo pessoal, e muito
menos se avalia aprendizagem em nível nacional.
Só se poderia aferir aprendizagem em condições
muito concretas e específicas. O desempenho
diz respeito à capacidade de um estudante responder
a uma dada pergunta num determinado momento, mas não
necessariamente prova que esse estudante realmente
aprendeu o que o exame está cobrando.
JU A alternativa
então seria abolir o Provão como mecanismo?
Dias Sobrinho O próprio ministro
da Educação, Cristovam Buarque, tem
sinalizado a alteração da lógica
da Avaliação. Dentro da concepção
de instrumento isolado para produzir rankings, não
vai continuar. Isto não significa que não
se possa usar prova ou teste nacional dentro de uma
concepção mais ampla de avaliação,
onde passa a ser um instrumento articulado a muitos
outros dentro de uma lógica de avaliação
educativa e não simplesmente de ranqueamento.
Seria possível manter este instrumento sem
essa lógica e a finalidade que tem hoje. O
ranking está dentro da lógica da competitividade,
e isto faz parte do mercado e não propriamente
da educação como bem púbico.
JU Qual seria a
lógica mais adequada?
Dias Sobrinho A lógica seria
sobretudo a de uma construção coletiva
pela comunidade educativa articulada com a regulação
e a avaliação feitas pelo Estado, de
acordo com um projeto de educação superior.
A regulação, neste caso, não
seria meramente um controle com caráter punitivo
ou algo para dizer: você pode funcionar,
você não pode; você é melhor
que o outro e assim por diante. Mas, sim, concebido
dentro de uma lógica de melhoramento do processo
em que as instituições o façam
para melhorar. Haveria certamente uma divulgação
dos resultados, a sociedade precisa saber tudo a respeito
das instituições, mas a divulgação
deveria ser feita de forma que não produzisse
hierarquizações das instituições.
JU O que o senhor
quer dizer com o termo regulação feita
pelo Estado?
Dias Sobrinho Existem dois argumentos
para se colocar em questão. Um seria o conceito
de regulação, controle, fiscalização.
Isto diz respeito à autorização
de funcionamento e a credenciamento/recredenciamento.
Este aspecto deve existir, é legal, burocrático
e uma função basicamente do Estado.
Seu dever é regular não só para
manter o sistema educacional de acordo com parâmetros
mínimos de aceitabilidade, mas também
para induzir práticas de qualidade. Outra coisa
se chama avaliação. Avaliação
é construção, melhoramento, conhecer
os problemas para superá-los e fazer melhor.
Isto é avaliação educativa. Se
não for isto, é só controle.
Agora, existe, é claro, uma conexão
entre as duas coisas: regulação e avaliação.
JU Isto tem a ver
com o fenômeno de abertura de cursos na rede
privada nos últimos anos?
Dias Sobrinho Os instrumentos vigentes
foram criados para favorecer esta abertura de cursos,
segundo a idéia de que a avaliação
seria o contraponto da liberalização.
Desde que a pessoa esteja em dia com seus deveres
fiscais ela pode abrir um curso. Não há
um projeto, um programa, uma concepção
de educação superior que defina que
tipo de instituições precisam ser abertas
e onde. Há ampla liberdade para abrir cursos.
JU - Isto é ruim?
Dias Sobrinho A ampliação
do acesso à educação superior
é desejável. Ruim é a concepção
de educação superior não estar
vinculada a um projeto de nação. Sem
esse projeto, sem objetivo público, estão
sendo abertos cursos que não correspondem às
necessidades da sociedade. O que precisamos é
fazer com que a regulação exista e seja
séria, mas que também seja educativa.
Isto vai exigir acompanhamento, avaliações
verdadeiras e muito mais amplas. Mais do que uma prova
e uma visita. Tem que ser algo mais amplo e que se
paute por múltiplos fatores e referências.
JU Qual seria a proposta em meio a tantos
desajustes?
Dias Sobrinho A educação
superior deve ser puxada para cima para
que as instituições sejam mais completas
e complexas. Que se estimule o ensino, a pesquisa
e a extensão com qualidade. Nem todas podem
realizar todas essas dimensões (ensino, pesquisa,
extensão, graduação, pós
etc), mas é importante que políticas
do Estado aumentem as possibilidades de tais instituições,
para a criação de um sistema de maior
qualidade. Quer dizer, ao invés de cobrar pelo
mínimo numa prova, tem que se criar outros
instrumentos que induzam a educação
mais consistente. Precisa ser avaliada a função
social da educação. A Universidade existe
para promover a formação ampla do cidadão
e desenvolver ciência. É preciso recuperar
o valor público de toda e qualquer instituição
educativa. O setor privado também deve entender
que tem um mandato da sociedade para fazer educação
e deve corresponder às funções
sociais que lhe são atribuídas. Toda
instituição educativa deve ter a finalidade
pública. Se tiver só finalidade de mercado,
ela está fraudando a sociedade. O papel da
educação é transformar/ produzir
valores mais representativos do ponto de vista social.