Um passar de olhos sobre as imagens reproduzidas nesta
página é suficiente para remeter o leitor
aos livros de história do Brasil. São
litografias das aquarelas de Jean-Baptiste Debret.
Tão difundidas para ilustrar e fundamentar
trabalhos dos nossos historiadores, elas acabaram
dissociadas dos textos produzidos pelo próprio
artista para compor os três volumes de Viagem
Pitoresca e Histórica ao Brasil, publicados
em Paris entre 1834 e 1839. Fiel à sua formação
de pintor de história, Debret manteve
a prática da documentação, complementando
as pinturas com textos informativos e interpretativos.
Mas dele, que se definia como homem de pena
e pincel, sobressaíram os pincéis.
Enquanto a maioria dos
viajantes estrangeiros se preocupava apenas em classificar
os elementos da natureza e das personagens que compunham
seus quadros, Debret tinha o propósito deliberado
de criar uma história a partir da sistematização
das informações. Em três volumes,
ele organiza os trabalhos numa linha progressiva,
dos índios até as instituições
políticas e religiosas, contextualizando cada
aquarela a seu período. Não existe outra
obra deste porte aliando textos à força
de 150 imagens, afirma a historiadora Valéria
Alves Esteves Lima.
Formada pela UFRJ, Valéria
já tinha o mestrado em história da arte
pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH) da Unicamp, onde também defendeu sua
tese de doutorado sob orientação do
professor Robert Wayne Slenes. Inicialmente, ela pretendia
dar continuidade à dissertação
sobre a Academia Imperial de Belas-Artes, mas viu-se
debruçada em Debret um dos fundadores
e professores da escola e na documentação
ilustrativa visando apresentar à Europa a imagem
de um Brasil em regeneração com a chegada
da Corte Portuguesa, e que inevitavelmente atingiria
o nível de civilização dos países
do velho continente.
Debret foi discípulo
do primo Jacques-Louis David, líder da escola
neoclássica francesa. Acompanhou o primo durante
a Revolução Francesa e na corte de Napoleão
Bonaparte, como autor de obras celebrizando os feitos
do imperador. Mais que o declínio do império
napoleônico, o desconsolo com a morte do filho,
em 1815, foi o que motivou sua vinda para o Brasil
no ano seguinte, integrando uma missão francesa
contratada para criar na colônia uma escola
de artes plásticas que se transformaria na
Academia Imperial.
Debret desembarcou no Rio
de Janeiro em 1816, justamente quando o Brasil era
elevado à condição de Reino Unido.
Aqui ficou por 16 anos, tempo que lhe rendeu grande
conhecimento da realidade brasileira, ainda mais gozando
de proximidade com o poder emprestava sua arte
à família real e na capital que
vivia um período de desenvolvimento econômico,
urbano e cultural, com inauguração de
bibliotecas, teatros e academias literárias
e científicas. Os trabalhos de Debret
seriam um testemunho que se contrapõe à
imagem de uma monarquia fugida da Europa, despreparada,
decadente e caricata. Na visão dele, nem João
VI e Pedro I, nem as capacidades do País mereciam
desprezo, afirma a historiadora.
Para o pintor francês,
a família real trouxe tradição
e simbolizou o poder constituído, marcando
o fim da administração colonial. A bagagem
adquirida na corte francesa e nos estudos de história
e filosofia permitia que compreendesse bem o momento
político e deve ter influído na elaboração
de sua obra. Ele entende a elevação
a Reino Unido como o início do processo de
regeneração do país, que então
pega o trem da civilização. É,
então, que se sentem os efeitos da abertura
dos portos e a retomada das relações
de Portugal com as nações européias,
o que promovera a entrada de mais estrangeiros no
Brasil. Segundo Debret, esta presença européia
era fundamental, explica Valéria Lima.
Miscigenação
A pesquisadora atenta para as idéias
iluministas de Debret, que via na educação
e na miscigenação racial e cultural
de índios e negros com os europeus, o meio
de acesso dessas populações a níveis
de civilização inatingíveis caso
permanecessem em seu isolamento. Freqüentando
o poder e sem perder o contato intenso e prolongado
com os habitantes, o artista detinha visão
privilegiada do regime, atestando as condições
de diálogo para esta mistura racial. A
leitura que ele faz é curiosa, pois não
vê nada de diminuidor na proposta. Simplesmente
achava que a miscigenação já
estava acontecendo, que era preciso reconhecê-la
e ter consciência de que dela dependia, também,
o progresso que se desejava para o país,
observa Valéria.
Isto não significa
que Debret enaltecesse ou colocasse as outras raças
em pé de igualdade com os brancos. Sem contestar
as teorias raciais da época, como as especulações
sobre o tamanho do crânio, o pintor tinha o
negro como indolente e mentalmente limitado, admirando
apenas a sua força física. Seu
interesse na miscigenação estava na
formação de um tipo biológico
capaz de sobreviver ao clima considerado insuportável
para o branco e que fosse intelectualmente capaz de
acompanhar a civilização européia,
acrescenta. Em relação aos nativos,
o artista organizou o material a partir dos indígenas
mais primitivos até os civilizados,
a fim de mostrar que se tratava de uma tendência
natural. Ele trata o primitivismo já
como parte do passado, algo folclórico. Avalia
como inevitável a associação
dos índios com os brancos, esperando que os
próprios índios civilizados resgatassem
os mais avessos para a civilização.
Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil
A Devido ao hábito
da observação, natural em um pintor
de história, fui levado a extrair espontaneamente
os traços característicos dos
objetos que me rodeavam; desta forma, meus desenhos
feitos no Brasil retratam especialmente as cenas
nacionais ou familiares do povo entre o qual
passei dezesseis anos.
(Sobre sua filiação artística,
vol. 1)
É no índio selvagem
que encontramos o princípio e o germe
de tudo aquilo que o espírito humano
concebeu como idéias filosóficas,
elevadas, admiráveis e mesmo bizarras,
aplicadas por ele unicamente através
do instinto e da inspiração.
(Sobre os indígenas, vol. 1)
Minha intenção
foi compor uma verdadeira obra histórica
brasileira, na qual se desenvolva, progressivamente,
uma civilização que já
honra seu povo, dotado naturalmente das mais
preciosas qualidades, para merecer um paralelo
vantajoso com as nações mais destacadas
do antigo continente.
(Sobre a proposta de fazer uma obra histórica,
vol.1)
Porém, por um singular
contraste, foi a mão de um rei de Portugal
que desperta o brasileiro depois de três
séculos de apatia quando, fugitivo da
Europa, ele vem estabelecer seu trono na sombra
destas agradáveis palmeiras, para logo
abandonar, é verdade, esta obra de regeneração
inspirada pela necessidade. No entanto, a civilização
havia germinado e o Brasil, consciente de seu
futuro, conserva o primogênito deste inconstante
protetor, e faz dele um imperador independente
cujo poder soberano anula definitivamente as
pretensões do poder português sobre
suas antigas possessões na América.
Assim emancipada, a terra de Alvarez Cabral
governa a si mesma e deve às suas próprias
luzes sua prosperidade sempre crescente.
(Sobre o papel da monarquia portuguesa,
vol. 3).
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