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Rastreando os genes do glaucoma
Pesquisadores identificam
mutação genética
descrita apenas na população brasileira
ISABEL
GARDENAL
O
glaucoma é uma degeneração da cabeça do nervo óptico
que leva a uma perda de campo visual permanente e irreversível
no indivíduo. É a segunda causa de cegueira no mundo,
respondendo por 12% dos casos, ficando atrás apenas da
catarata (48%). A pressão intraocular e a história familiar
positiva são importantes fatores de risco para o desenvolvimento
do glaucoma primário de ângulo aberto, que é a forma
mais comum da doença e que se manifesta principalmente
após os 40 anos com certas peculiaridades. Seu início
tardio em muitos casos e suas alterações em diferentes
tecidos oculares, como o trabeculado (região responsável
em parte pela determinação da pressão intraocular) e
a cabeça do nervo óptico, indicam a presença de mais
de um gene no desenvolvimento do glaucoma.
No genoma humano existem,
até o momento, 14 regiões associadas ao glaucoma do adulto.
Apenas em três dessas regiões, os genes já foram identificados:
o gene miocilina (ou myocilin), que é o de maior efeito
para o desenvolvimento do glaucoma, o optineurin e o WDR-36,
o que leva a crer que ainda é possível encontrar genes novos
mesmo na população brasileira. Alguns grupos permanecem
procurando genes relacionados à doença, como é o caso do
Grupo de Genética em Oftalmologia do Centro de Biologia
Molecular e Engenharia Genética (CBMEG) da Unicamp, coordenado
pela geneticista Mônica Barbosa de Melo e pelo oftalmologista
José Paulo Cabral de Vasconcellos.
O aumento da pressão intraocular,
pontua José Paulo, é o mais destacado fator de risco para
o glaucoma do adulto. Porém, existem outras situações
em que, antagonicamente, é possível que um paciente com
glaucoma não tenha pressão intraocular elevada e ainda,
mesmo sendo portador do problema, que não tenha glaucoma.
A característica fundamental que define esta moléstia,
no entanto, é de fato a presença de lesão típica da
cabeça do nervo óptico, observada durante o exame oftalmológico.
Em termos de genética,
o grupo da Unicamp tem concentrado forças para caracterizar
melhor o papel do gene miocilina em relação ao glaucoma,
que é o mais expressivo gene conhecido relacionado a esta
doença. Alterações neste gene estão geralmente associadas
a um tipo de glaucoma familiar, de instalação mais precoce
e de maior gravidade, cuja pressão intraocular é bem mais
elevada que a normal.
Descobertas
Os principais estudos com o gene miocilina foram iniciados
no Brasil com a tese de doutorado de José Paulo, em pacientes
com glaucoma primário de ângulo aberto do tipo juvenil,
que é uma forma de glaucoma do adulto que surge mais precocemente
e também mais agressiva. Em sua pesquisa, o oftalmologista
identificou uma nova e frequente mutação neste gene que,
até hoje, ainda não foi descrita em outra população, somente
na brasileira. A mutação consiste na troca de uma cisteína
(um dos aminoácidos que fazem parte do código genético)
por uma arginina na posição 433 da proteína miocilina, o
que equivale a dizer que esta alteração localiza-se em uma
região bastante conservada e estruturalmente muito importante
para o bom funcionamento desta proteína.
Por isso o grupo da Unicamp
acompanha rotineiramente famílias com alterações neste gene.
“Quando as encontramos, procuramos estudar o seu papel em
relação à doença e à evolução clínica do paciente, indagando
a quantidade de cirurgias a que o paciente foi submetido
e a quantidade de medicações em uso para controle da doença.
Com isto tentamos estabelecer uma relação entre a gravidade
da doença (fenótipo) e a presença ou não da mutação (genótipo)”.
Também há uma tentativa de identificar novos genes modificadores
que agiriam de forma a colaborar para o aparecimento da
doença ou torná-la mais ou menos grave. Por que indivíduos
que têm a mesma alteração se comportam de formas diferentes?
José Paulo esclarece que neste processo pode haver uma interação
com genes modificadores, como no caso do CYP1B1, que é o
gene associado ao glaucoma congênito, além da contribuição
de fatores ambientais.
Ao
concluir sua tese e constatar o estado daquela pesquisa
no mundo, o pesquisador propôs uma investigação para
identificar novos genes ou novas regiões do genoma associadas
ao glaucoma primário de ângulo aberto – glaucoma do
adulto – em famílias brasileiras. Esta iniciativa gerou
um projeto que foi aceito pelo Programa Jovens Pesquisadores
em Centros Emergentes da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (Fapesp).
Ao longo deste projeto,
várias famílias portadoras de glaucoma foram analisadas
e apresentaram a troca de cisteína por arginina no aminoácido
433 da miocilina. Nesse particular, as famílias têm sido
acompanhadas quanto à presença desta mutação em relação
à manifestação do glaucoma, a sua evolução e ao seu prognóstico,
abrindo novas perspectivas para que elas possam ser seguidas
mais de perto pelo oftalmologista, uma vez que se sabe que
indivíduos com esta alteração acima dos 40 anos apresentam
a doença de 80% a 100% dos casos.
Um dos pontos do estudo,
contudo, permanece uma incógnita, já que até agora são pelo
menos 11 regiões do genoma com grande probabilidade de conter
genes relacionados ao glaucoma adulto. Por outro lado, também
foram selecionadas famílias sem alteração em nenhuma destas
regiões. A pergunta de Mônica é: “será que conseguiremos
identificar algum gene novo nestas famílias com glaucoma
na população brasileira?”
Em uma outra fase da pesquisa,
que é uma abordagem de ponta, utilizam-se chips de DNA para
avaliar variações de números de cópias ou copy number variations
(CNV). Isso porque atualmente se discute a participação
destas alterações, que variam de quilobases a megabases
em tamanho e que poderiam ter participação na causa de diversas
doenças. Estes resultados estão sendo analisados e algumas
regiões podem estar relacionadas ao desenvolvimento do glaucoma.
Prevenção e
aconselhamento
Uma das contribuições da genética para o glaucoma é
compreender melhor os mecanismos por meio dos quais
esta doença se desenvolve. Com isso, propõem-se melhores
tratamentos e métodos diagnósticos, pontua José Paulo.
Outra contribuição, enfatiza Mônica, consiste na possibilidade
de se realizar um futuro aconselhamento genético, pois,
quanto mais se entende a genética do glaucoma, mais
se chega a indivíduos com maior ou menor risco. Além
disso, a genética permite indicar um acompanhamento
personalizado, iniciativa que tem sido estimulada pelo
grupo da Unicamp.
Conforme Mônica, na pesquisa de genética em Oftalmologia,
há seis pessoas atualmente envolvidas, quatro atuando
mais na identificação de genes e outras duas em pesquisas
sobre as alterações do gene miocilina. O grupo, ligado
ao Laboratório de Genética Molecular Humana do CBMEG,
também investiga aspectos genéticos da catarata congênita,
da degeneração macular relacionada à idade, da retinopatia
falciforme e do glaucoma congênito. Criado em 1998,
desde o seu início o grupo contou com o apoio do Hemocentro,
do Setor de Glaucoma da Disciplina de Oftalmologia e
do Departamento de Genética Médica da Faculdade de Ciências
Médicas da Universidade e da Santa Casa de São Paulo.
Em relação ao glaucoma congênito, estuda-se o principal
gene identificado até o momento, o CYP1B1, em famílias
e também em casos esporádicos. Esta pesquisa foi publicada
na revista Investigative Ophthalmology and Visual Science
(IOVS), desenvolvida em conjunto com a Universidade
de Connecticut, EUA. Recentemente, uma tese defendida
sob orientação de Mônica e de José Paulo teve seus resultados
divulgados no Journal of Glaucoma, demonstrando que
na população brasileira existe uma variação de 30% a
50% de mutações neste gene relacionadas ao glaucoma
congênito, ou seja, de crianças que já nascem com a
doença.
O glaucoma, quando não diagnosticado e, portanto não
tratado, pode levar a um risco maior de cegueira. Sendo
assim, indivíduos com histórico familiar ou mesmo alterações
nos genes associados ao glaucoma devem ter uma atenção
médica mais dirigida aos seus aspectos preventivos.
Pacientes que têm uma mutação no gene miocilina e não
desenvolvem a doença, por exemplo, devem ter um acompanhamento
mais frequente para que, estando diante de qualquer
indício da doença, possam começar rapidamente o tratamento.
Realizar consultas desse modo – com mensuração da pressão
intraocular e exames de fundo de olho – e não protelar
o início do tratamento ao menor indício de aumento da
pressão intraocular, ou mesmo mediante algum sinal precoce
de alteração do nervo óptico, são medidas fundamentais
para minimizar e mesmo evitar as perdas visuais causadas
pelo glaucoma, de acordo com José Paulo. O início da
terapêutica em geral é clínico, conta ele, começando
pela indicação de um colírio que reduz a pressão intraocular;
a indicação cirúrgica fica restrita aos pacientes que
não responderam ao tratamento clínico, com redução para
níveis seguros da pressão intraocular.
A cirurgia do glaucoma consiste na redução da pressão
para valores que impeçam a progressão da doença, protegendo
a cabeça do nervo óptico e impedindo perda adicional
do campo visual. Quando se trata de um indivíduo com
história familiar de glaucoma, recomenda-se que haja
uma ampla investigação e acompanhamento, não somente
do paciente, mas igualmente da sua família.
Ao estudar famílias que têm alteração no gene miocilina,
José Paulo recorda que atendeu uma adolescente que chegou
à consulta médica apresentando 20mmHg de pressão intraocular,
sendo que o pai já era cego dos dois olhos e o avô também.
“Não houve dúvida para instituirmos o tratamento, começando
a tratá-la, apesar de não ter sinal de alteração glaucomatosa
da cabeça do nervo óptico. A pressão intraocular normal
varia entre 10mmHg e 20mmHg, portanto a adolescente
estava no limite superior da pressão intraocular e tinha
histórico familiar da mutação.
Mutações são esmiuçadas
Em 1997, o pesquisador
Stone e colaboradores identificaram o gene miocilina,
associado ao glaucoma primário de ângulo aberto
(GPAA), por meio de estudos de ligação em famílias
portadoras desta enfermidade. Os autores concluíram
que mutações no gene miocilina seriam a causa mais
frequente de cegueira com base molecular conhecida.
Diversos estudos subsequentes, avaliando mutações
neste gene em populações portadoras de GPAA esporádico,
das mais diversas origens étnicas, obtiveram frequências
de mutações variando de 2% a 5%. Entretanto, observou-se
que esta frequência elevava-se para aproximadamente
30% em indivíduos com história familiar de glaucoma
e desenvolvimento da moléstia antes dos 40 anos
de idade, caracterizando o GPAA do tipo juvenil
(GPAA-J).
O rastreamento de
mutações neste gene foi realizado na população brasileira
de pacientes com GPAA-J e GPAA, obtendo-se uma frequência
de mutações de 35,71% e 3,85% respectivamente. Além
disso, identificou-se uma mutação específica da
população brasileira, a troca do aminoácido cisteína
por arginina na posição 433 da proteína, presente
em 28% dos pacientes com GPAA-J. A presença desta
mutação entre os indivíduos com GPAA-J levou ao
desenvolvimento de um glaucoma com níveis pressóricos
significativamente mais elevados e necessidade mais
frequente de procedimentos cirúrgicos para o controle
da doença. Portanto, o tipo de mutação no gene miocilina
contribuiria para a gravidade do glaucoma. |
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