A
tradução recente de parte das obras Le Nuove Musiche (1601)
e Nuove Musiche e Nuova Maniera di Scriverle (1614), cerca
de 400 anos depois da primeira publicação, tiram o compositor
italiano Giulio Caccini (1561-1618) das notas de rodapé
de livros de música brasileiros. O responsável por traduzir
a obra é o educador e musicista Conrado Augusto Gandara
Federici, que depois de ler o nome de Caccini em inúmeros
livros, decidiu pesquisar de maneira aprofundada seu repertório,
ao mesmo tempo em que busca relações entre o cantor Caccini
e a música renascentista. O resultado da pesquisa está
na tese “Giulio Caccini e suas Novas Músicas – Um Elogio
ao Canto”, orientada pela professora Eliane Ayoub e defendida
na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp. A proposta de
Federici é aproximar a literatura especializada da musicologia,
da história e da sociologia, integrando conhecimentos dispersos
importantes para um melhor entendimento das publicações
de Giulio Caccini.
Um dos precursores da ópera
na Itália e um dos primeiros a compor música conhecida como
barroca, Caccini tinha o canto na medida certa para os
salões da corte de Florença, onde atuou por pelo menos 30
anos, desde os 12 de idade, “animando” festas de casamento
e outras comemorações. As primeiras composições então teriam
surgido depois da atuação como cantor, talvez como uma forma
de se manter na corte, ou por que não, na música. Federici
lembra que nos séculos 15 e 16, quando Caccini cantou e
compôs, a expectativa de vida não passava de 40 anos de
idade. “Caccini não se tornou conhecido porque não viajou
tanto quanto Monteverdi (1567-1643) e outros compositores
do período barroco. Então não lhe restava alternativa senão
tentar continuar na corte”, explica Federici.
Para
aproximar a literatura de Caccini do musicista ou leitor
contemporâneo, Federici teve de atualizar a escrita musical
dos livros encomendados especialmente para a pesquisa de
doutorado. A tese é enriquecida com imagens das partituras
originais, marcantes pela característica peculiar da escrita
de Caccini. A “relíquia” obtida na internet chamou
a atenção do estudioso de música antiga pelas características
peculiares da maneira de escrever. “Se pedíssemos para
um estudante executar, ele não compreenderia. Quando recebi
as obras fiquei surpreso, pois a partitura é muito diferente
do que se lê em edições modernas. Optei então por fazer
uma versão atual, do ponto de vista da escrita, de algumas
árias”, explica Federici. Mas a experiência com a flauta-doce,
instrumento típico da música antiga, fez com que se identificasse
com a obra e analisasse cada detalhe.
O autor tentou manter a
espirituosidade do compositor também nos textos de apresentação.
“Existe uma versão anterior à minha, em que a autora interfere
na essência do texto, “ajudando-o”. Eu decidi manter para
mostrar quem foi Caccini”, garante. O próprio texto chega
a intrigar, não pelo italiano arcaico, mas pela caligrafia.
“É difícil ler estes textos, então decidi traduzi-lo também”,
acrescenta. Caccini chega a fazer “propaganda” da importância
de sua obra logo na capa do livro.
A partir do texto do próprio
Caccini, o pesquisador consegue fazer uma análise baseada
em questões que sempre inquietaram a si mesmo, como educador
e como flautista: as afinações diversas e o temperamento
musical, as transformações da construção dos instrumentos
da época, o percurso da notação musical, a educação da sensibilidade
e da escuta, a formação da plateia, a vontade de conhecer
pela ótica do cotidiano, ao invés da perspectiva do oficial,
os interesses e mesclas político-sociais em relação à música,
as técnicas de composição e as teorias do afeto, a retórica
musical, a moralidade implícita na música como linguagem
e as relações com a música atual.
As
partituras publicadas pela editora SPES são de domínio
simbólico restrito aos especialistas em música antiga.
“Provavelmente, o especialista em música antiga vai tocar
o que está nos originais”, declara o pesquisador. E foi
o interesse por música antiga, por causa dos estudos em
flauta-doce, que colocou Federici em contato com a obra
de Caccini. Explica que, na Renascença, a letra da música
era muito valorizada, pois havia necessidade de destacar
a poesia, mas Caccini já procurava relacionar a melodia
e as palavras.
Afeto
Como cantor, professor e compositor da corte, Caccini não
fugiu muito das exigências da época, em que a música
seguia padrões educativos e cristãos. Ele integrou o grupo
que produziu as bodas de Maria de’ Medici e Henrique IV
da França em 1600, compondo a maior parte de Il Rapimento
di Cefalo. Posteriormente, em 1608, participou diretamente
do casamento de Maria Magdalena da Áustria com Cósimo
de’ Medici. Foi neste momento que publicou As Novas
Músicas e, já ao final da vida, Novas Músicas
e Nova Maneira de Escrevê-las.
Como um bom integrante da
corte, Caccini frequentou a Camerata Fiorentina, ao lado
de Vincenzo Galilei, pai do famoso astrônomo Galileu Galilei,
que também era estudioso da música, além de compositor.
Nas reuniões, eles se ocupavam de estudar os ideais gregos,
entre os quais a “Harmonia das Esferas”, antiga doutrina
grega, pitagórica, que postulava uma relação harmônica entre
os planetas, governados pela proporção entre as suas órbitas
e a sua distância fixa da Terra.
Federici explica que, dentro
do movimento educativo regulador da época, já experimentado
na pintura, a música encaminhava o som para o alto e educava,
como forma de simular os interiores das almas, conduzindo-as
em escalas ascendentes. Nas partituras de Caccini, por exemplo,
são encontradas não apenas indicações de dinâmica musical,
mas do comportamento do cantor e do musicista.
As
peças, além da qualidade, teriam de mover afeto de quem
estava a um metro de distância. “Daí a especialidade
dele como cantor de pequeno público. Não precisava de
uma enorme ressonância”, explica Federici. Existia, segundo
o pesquisador, uma força política no sentido de agradar
à Igreja, na qual Caccini participou por ser músico da
corte. O afeto também era regido por convenções. Em termos
técnicos, o afeto era estimulado pelas notas graves e outros
sentimentos, pela região média e aguda. “O grave, marcado
pelo baixo contínuo cifrado, promoveria angústia, tristeza,
enquanto as agudas exprimiriam alegria”. O compositor
chegava a apostar também nas melhores vogais que movessem
determinados afetos, como o I e o U.
As peças, segundo ele, propõem
uma leitura mais vertical, em que as vozes e os instrumentos
se harmonizam em acordes: a voz é escrita acima e o acompanhamento,
em baixo cifrado contínuo, na linha inferior.
A força das doutrinas cristãs tinham muita influência na
elaboração da música ocidental como um todo. “As músicas
traduziam as vontades divinas nas expressões do ser humano.
A dominação religiosa era desvelada pela angústia na música
(tensão) e acalmada pela salvação divina (relaxamento),
o mesmo movimento do pecado, seguido da penitência e apaziguado
pelo perdão”, explica.
A melhor forma de promover
e divulgar a música era a presença em reuniões que somassem
o maior número possível de pessoas relevantes, poderosas
social e politicamente, que pudessem ser tocadas pelo inédito
e, assim, mantê-lo. As festas de casamento entre os nobres
nas quais Caccini se apresentava estavam entre esses eventos.
“Havia concorrência entre os músicos para atuar na corte.
Não com os exageros das produções cinematográficas que assistimos,
mas havia disputa, sem dúvida”, acrescenta Federici.