Estar
cada dia mais perto de Marte é, para o engenheiro geólogo
Carlos Roberto de Souza Filho, professor do Instituto de
Geociências (IG) da Unicamp, Carlos Roberto de Souza Filho,
uma das peculiaridades mais interessantes do seu trabalho
no momento. O docente, alunos do IG e uma numerosa equipe
de pesquisadores nacionais e internacionais estão envolvidos,
nos últimos anos, em um projeto de planetologia comparada
que estuda ambientes análogos entre os planetas Terra e
Marte, sob patrocínio da Nasa (Agência Espacial Norte-Americana).
Além do mérito e impacto do trabalho, ele tem revelado
várias descobertas científicas, ainda que “a distância”.
As pesquisas desenvolvidas
pelo grupo são fundamentadas em dados e métodos de sensoriamento
remoto (SR), um ramo da ciência que aborda a obtenção de
informações sobre um determinado alvo através de um dispositivo
qualquer (sensor), sem que haja contato direto com o fenômeno
sob investigação. Em Marte, o SR é utilizado para extração
de informações sobre a composição mineralógica de solos
e rochas presentes na superfície a partir de suas respostas
espectrais – a capacidade de refletir ou absorver luz solar
em diferentes comprimentos de onda do espectro eletromagnético.
Estas respostas são estudadas analogamente na Terra e vice-versa,
na tentativa de compreender o ambiente de formação dos minerais
e de mapear materiais favoráveis à preservação de bioassinaturas
(fósseis) ou mesmo para a manutenção de alguma forma de
vida.
Os primeiros trabalhos foram
conduzidos em uma área da Serra dos Carajás, no Pará, que
reúne um conjunto de rochas muito antigas portadoras de
microorganismos fossilizados, cujos registros em imagens
de SR fornecem diagnósticos, o que potencializa sua detecção
análoga na superfície de Marte, caso um conjunto similar
de rochas exista naquele planeta. O artigo Brazilian Analog
for Ancient Marine Environments on Mars, publicado pela
equipe de Carlos Roberto em setembro de 2008, na EOS Transactions
da American Geophysical Union, apresenta os resultados preliminares
dessa investigação.
Evidências
Outros dois ambientes na Terra que têm sido abordados como
análogos particularmente pelo professor são lagos salinos
e crateras de impacto de meteoritos. Ele explica que os
lagos salinos compreendem situações extremas para sustentação
de vida atual na Terra, mas a do tipo microbiana é amplamente
observada em lagos posicionados em áreas desérticas presentes
em quase todos os continentes. Várias evidências reveladas
em Marte nos últimos anos apontam para a ocorrência desse
tipo de ambiente durante a sua evolução, onde água líquida
acumulada em amplas áreas no planeta teria evaporado, propiciando
a deposição e o acúmulo de minerais hidratados na superfície.
Para estudar essa hipótese,
lagos salinos (ou evaporíticos) foram aproximados e o destino
levou Carlos Roberto e uma equipe da Nasa à Oceania em 2008
e neste ano. Lá fizeram levantamentos de campo e estudos
de SR no Oeste da Austrália. Os primeiros resultados das
duas expedições foram publicados em março de 2009 na revista
Geochimica et Cosmochimica Acta, um dos periódicos de maior
impacto científico na área de Geociências e Ciências Planetárias
do mundo.
Conforme aponta o geólogo,
“desde que uma família de novos sensores remotos foi colocada
a bordo de satélites na órbita de Marte na última década,
a superfície marciana passou a ser imageada constantemente
e cada vez em maior detalhe”. Um desses sensores, menciona,
o Omega (Visible and Infrared Mineralogical Mapping Spectrometer),
foi lançado pela Agência Espacial Europeia (AEE) em 2003,
a bordo do satélite Mars Express. Era do tipo hiperespectral
e “enxerga’ a luz solar refletida na superfície de Marte
em centenas de bandas espectrais, viabilizando a identificação
remota de vários minerais, tal como é feito na Terra.
Foi com base nos dados gerados
por esse sensor, detalha o geólogo, que minerais formados
na presença de água líquida foram identificados pela primeira
vez fora da Terra. Essas determinações sustentaram uma divisão
da história evolutiva de Marte, proposta pela equipe da
AEE, com base nas diferenças mineralógicas verificadas ao
redor do planeta, justamente considerando a presença de
sais e argilas. Estudos sobre a origem desses minerais levaram
o grupo a propor a hipótese de que, em algum momento, houve
uma mudança em escala global no ambiente de Marte que passou
de condições de alteração aquosa em condições “quasi-neutras”
(o que favorece a deposição de argilas) no período denominado
Noachiano para um sistema evaporítico ácido (o que favorece
a deposição de sais) no período Hesperiano.
Aceitação
Essa hipótese defendida pelos pesquisadores europeus teve
grande impacto e aceitação na comunidade internacional.
Perdurou inquestionável por anos até que um importante breakthrough
realizado pela equipe de Carlos Roberto foi publicado em
outubro de 2009 na revista Geophysical Research Letters,
sob o título Contemporaneous deposition of phyllosilicates
and sulfates: Using Australian acidic saline lake deposits
to describe geochemical variability on Mars.
O artigo, liderado pela
pesquisadora Alice Baldridge (pós-doutoranda da Nasa e orientanda
do professor), revelou que os lagos salinos da Austrália
têm como principal característica uma grande variação de
pHs, entre ácido, neutro e alcalino, separada vertical e
horizontalmente por poucos metros. Os dados foram suficientes
para demonstrar como essas condições distintas podem coexistir
num mesmo ambiente. Carlos Roberto comenta que dois minerais
marcam as diferenças ambientais importantes nos lagos australianos:
sulfatos (sais) e filossilicatos (argilas). “Mais interessante:
ambos são detectáveis a distância por sistemas de sensoriamento
remoto a bordo de aviões e satélites”, conta. Pela demonstração
de que ambientes aquosos mais diversos e variáveis podem
ter coexistido em Marte e de que existe uma associação espacial
de argilas e sais naquele planeta, em analogia aos verificados
na Terra, o trabalho foi considerado um dos Paper Highlights
de 2009 pela American Geophysical Union (AGU), organização
sem fins lucrativos de geofísicos.
“Descobrimos, a partir de
observações no terreno e com base em imagens hiperespectrais
obtidas a partir de aviões e satélites, que as argilas e
sais presentes nos lagos salinos australianos são formados
em ambientes extremamente dinâmicos e que sua deposição
pode ocorrer de forma quase simultânea. Situações similares
em Marte foram mapeadas por nós e por outros grupos de pesquisa,
com base em dados gerados pelos rovers Spirit e Opportunity
e a partir de satélites, mas a nossa interpretação original
do sistema é o que muda tudo e isso terá um impacto significativo
para as futuras missões em Marte”, dimensiona o geólogo.
“Por exemplo, vista a comum associação de microorganismos
com esses ambientes de lagos salinos ricos em argilas e
sais na Terra, por que não podemos ter microorganismos marcianos
equivalentes? Acredito também que com esse trabalho abrimos
um leque de opções sobre locais onde novas sondas devem
ser enviadas para Marte na próxima década.”
Rede
Crateras
de impacto de meteorito são ambientes que também têm
sido explorados como análogos. O estudo sobre impactos
na Terra e a analogia do processo ocorrido em outros planetas
é um tema que passou a ocupar um espaço especial na “agenda
de interesses planetários” de Carlos Roberto, desde que
publicou seu primeiro artigo na revista Science, em maio
de 2002, sobre o tema. A partir dali, constituiu uma rede
multidisciplinar que conta, além de alunos da Unicamp,
com estudantes, pesquisadores e docentes da Stellenbosch
University (África do Sul), do Imperial College (Inglaterra),
do Jet Propulsion Lab da Nasa, do Instituto Astronômico
e Geofísico da Universidade de São Paulo (IAG-USP) e do
Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
Essa rede de pesquisa é
hoje a mais produtiva do Brasil no estudo de crateras de
impacto, com numerosas publicações, a última também publicada
na Geochimica et Cosmochimica Acta, na edição de setembro,
intitulada “Generation, mobilization and crystallization
of impact-induced alkali-rich melts in granitic target rocks:
evidence from the Araguainha impact structure, central Brazil”.
O seu autor principal, Rogério Machado, recém-concluiu o
mestrado orientado pelos professores Carlos Roberto e Cristiano
Lana. “Estamos estudando atualmente várias crateras de impacto
no Brasil, incluindo a de Araguainha (GO/MT) – a maior da
América do Sul”, relata. Essas pesquisas, segundo o geólogo,
visam não somente conhecer os processos e produtos de impacto
na Terra, que têm implicações para a prospecção de minerais,
óleo e gás, e aquíferos, mas também para estabelecer comparações
com crateras de Marte e de outros planetas rochosos.
Entre
outras consequências positivas, os impactos revelam o substrato
rochoso de Marte, o qual se encontra muitas vezes encoberto
por solo e poeira, impedindo o acesso à informação sobre
sua composição mineralógica a partir de sensores remotamente
situados. “Assim, a investigação das crateras na Terra
pode subsidiar a interpretação sobre quais são as rochas
transformadas por impacto e quais são pouco afetadas pelo
choque e, portanto, são mais próximas da rocha primordial,
que pode conter análogos terrestres mais interessantes”,
pontua o geólogo.
Atualmente professor titular
do IG e Pesquisador 1A do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), Carlos Roberto iniciou
a carreira graduando-se em Engenharia Geológica pela Universidade
Federal de Ouro Preto (Ufop). Depois fez o mestrado na Unicamp
e o doutorado na Open University/Milton Keynes, Inglaterra.
Desde o seu doutorado, vem contribuindo para os avanços
realizados no uso de SR em aplicações geológicas. Seu ofício
tem possibilitado conhecer características da constituição
geológica de diversos sítios na Terra e em Marte. O professor
orienta alunos, coordena e participa de vários projetos
e grupos de pesquisa nos EUA, na Austrália e na Europa.
Alguns aspectos deste trabalho mostram a importância dos
grupos nos quais está envolvido. O projeto de análogos Terra-Marte,
por exemplo, foi o único aprovado pela Nasa no âmbito do
Interdisciplinary Exploration Science Program em 2006, recebendo
extensão de recursos até 2011.
Interação
Esta interação garantiu o acesso do pesquisador e de seus
associados a uma boa parte dos dados gerados sobre Marte
pelas agências espaciais americana e europeia. A iniciativa
vem sendo levada a efeito até hoje, quando dados obtidos,
seja por satélites ou pelos rovers, por encomenda ou não,
tornam-se acessíveis a membros da equipe. Carlos Roberto
conta que este relacionamento com a Nasa tem sido bastante
positivo, principalmente porque essa possibilidade de aproximação
com a agência há cerca de 15 anos era bem mais complexa
para pesquisadores baseados em países em desenvolvimento.
O acesso aos dados de missões planetárias, exemplifica ele,
normalmente era feito após vários anos, quando já havia
esgotado boa parte das chances de descobertas mais importantes.
“Daí então acontecia a sua liberação para a comunidade.
Porém, agora, na medida em que integramos esses grupos internacionais,
temos acesso aos dados numa certa condição de igualdade
de oportunidade com nossos pares”.
Esse acesso ainda representou
para os especialistas brasileiros uma maior aproximação
com equipes multidisciplinares e que trabalham em rede para
gerar publicações em série nas revistas mais conceituadas
de Geociências e Ciências Planetárias do mundo. Ao falar
acerca da inserção brasileira nessa nova política de compartilhamento
globalizado de informações, Carlos Roberto classifica que
as coisas estão ficando cada vez mais interessantes. De
acordo com ele, depois de muitos anos investidos pelo país
na geração de recursos humanos, hoje há pesquisadores de
categoria internacional e com expertise para participar
destes projetos de grande porte. “Além disso, a Unicamp
continua sendo uma instituição capaz de atrair alunos e
pesquisadores de classe mundial. Apesar do projeto Terra-Marte
ser financiado pela Nasa, muitos dos laboratórios que têm
proporcionado a geração de dados e suporte às investigações
foram montados com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (Fapesp), do CNPq e com o apoio desta
Universidade.”
Desafios
Carlos Roberto sugere que tais avanços não devem parar mais.
“Se nós, seres humanos, pretendemos estender nossa existência
por vários outros milhares de anos, não há outra alternativa
senão aquela da exploração espacial, de outros planetas
terrestres. No caso de Marte, em algum momento nas próximas
décadas, nós deveremos ter uma missão tripulada, com uma
primeira equipe atingindo esse feito extraordinário. Torço
para que tenhamos muitos geólogos envolvidos em todas as
fases, quem sabe pessoal formado pela Unicamp”.
Do ponto de vista dos custos
e dos riscos, situa ele, é muito melhor enviar numerosas
missões não-tripuladas à Marte, particularmente as que incluam
a locação de robôs e veículos automatizados no terreno e
aéreos não-tripulados de baixa altitude, para o conhecimento
detalhado do planeta. A exploração através de programas
robóticos atuais e futuros proporcionará os conhecimentos
fundamentais para exploração mais segura e previsível de
Marte por humanos. O problema é que, mesmo Marte tendo uma
dimensão cerca de 50% menor que a Terra, o planeta ainda
assim é enorme.
Os robôs, mesmo das gerações
futuras, dificilmente terão autonomia suficiente de energia
e robustez para cobrir grandes extensões num terreno tão
heterogêneo e mesmo inóspito. “Neste caso, será fundamental
manter os trabalhos que nós e outros especialistas estamos
fazendo quanto ao estudo de ambientes análogos Terra-Marte.
Estes estudos nortearão o envio de missões robóticas futuras
para locais relevantes que possam revelar cada vez mais
evidências sobre a presença de água líquida passada e presente,
e talvez algum tipo de vida naquele planeta”, considera
o professor.
Outros planetas do sistema
solar também têm sido objeto de estudo por sistemas de sensoriamento
remoto. Além de várias missões bem-sucedidas a Marte no
último decênio, “também tivemos a primorosa missão Cassini-Huygens,
patrocinada pela Nasa, para o planeta Saturno e sua lua
Titan”, observa Carlos Roberto. A sonda Cassini, batizada
em homenagem ao italiano Jean-Dominique Cassini (1625-1712),
que descobriu quatro das dezenas de luas de Saturno: Jápeto
(ou Iapetus), Reia (ou Rhea), Tétis (ou Tethys) e Dione,
já completou mais de quatro anos em operação, gerando informações
sem precedentes sobre aquele planeta, seus anéis e luas.
A missão Venus Express, da AEE, encontra-se em andamento
no planeta homônimo, desde 2006. A missão Messenger tem
como objetivo a investigação de Mercúrio – o satélite deverá
entrar em órbita definitiva naquele planeta a partir de
março de 2011. A exploração espacial, conclui ele, deu um
grande salto de 2003 para cá, após um período grande de
relativa estagnação.