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TROVAS
entre o mate e a bombacha (e no palco)

Encontro de trovadores no Rio Grande do Sul: manifestação cultural popular tem como principal característica o improviso (Foto: Divulgação) O que trovadores e atores têm em comum? Em que o trabalho deles difere ou se aproxima? Ao mergulhar no universo artístico gauchesco, a pesquisadora Gisela Reis Biancalana estudou em sua tese de doutorado – defendida no Departamento de Artes Cênicas Instituto de Artes (IA) e orientada pela professora do IA Sara Pereira Lopes – um dos elementos principais que une trovador e ator: a improvisação em uma performance. A autora, que é bailarina graduada pela Unicamp e atualmente professora de Artes Cênicas, concluiu no seu trabalho que o improviso, para o trovador, está mais ligado a um dom especial, ao passo que, para o ator, é uma habilidade sujeita a aprendizado mediante uma disciplina de exercícios. “São polos opostos. Cada qual reflete os diferentes universos culturais aos quais estão inseridos”, garante.

Falando sobre as trovas, Biancalana descreve que antes da primeira metade do século XX elas eram recitadas entre amigos e parentes, nas casas, nos bares e nas festas. Eram canções cujos versos compunham-se em quadras, com temas que surgiam durante a condução do jogo poético. Com apoio dos meios de comunicação, as trovas passaram a ser mostradas nas rádios, e os trovadores começaram a ser contratados para shows. Evoluíram, caminhando para sextilhas: seis versos de sete sílabas, com o segundo, o quarto e o sexto rimados, para maior exploração dos recursos poéticos. A seguir, comenta ela, foi introduzido nas trovas o tema sorteado, pensando em evitar que os trovadores viessem de casa com os versos já decorados, os famosos “versos de manga”. Surgiram então os festivais com avaliadores e premiações.

Apesar de ter aceitação do público, os trovadores reconheciam que, à época das trovas livres, eles sentiam-se mais despreocupados e mais à vontade diante de um novo desafiante. Acontece que, com a sua inserção nos meios de comunicação, a trova tornou-se mais comportada. Este fato, relata Biancalana, acentuou mais adiante a preocupação do trovador e o seu comprometimento com os festivais, com os temas-surpresa e com o julgamento, sentindo o peso da responsabilidade. “Não há como ignorar que, com a vontade de receber o prêmio, eles ficaram mais contidos. Por outro lado, notou-se que a qualidade poética tornou-se mais apurada, não somente no que se refere aos elementos regrais mas ainda quanto à profundidade de conteúdo”, avalia.

Biancalana realizou um estudo abrangente, orientado pela professora do IA Sara Pereira Lopes, que passou pelo processo formativo dos trovadores gaúchos, pela experiência vivida na cultura popular, pelo processo formativo de atores e pela experiência adquirida no ensino formal. Baseada nestes contextos, a sua tese buscou sustentar-se mais na improvisação da performance do trovador e do ator, bem como na corporeidade poética.

Segundo a professora, a cultura popular brasileira já se despontava entre as suas preferências na graduação. O insight relacionado a isso veio quando fixou residência em Santa Maria (RS), em 1994, e começou a se interessar pela cultura gaúcha, ricamente amparada na tradição desse povo. No mestrado, em Artes Corporais, obtido no IA, Biancalana voltou seus olhos para as danças tradicionalistas gaúchas e, no doutorado, mergulhou fundo nas trovas, sobretudo por entendê-las como uma manifestação cultural popular que tem como característica intrínseca o improviso. Hoje, com a visão de professora de Artes Cênicas, a pesquisadora constata que este improviso não é em si apenas um aspecto interessante para ser estudado, mas também elucidativo.

Novas observações

Encontro de trovadores no Rio Grande do Sul: manifestação cultural popular tem como principal característica o improviso (Foto: Divulgação)Para a tese de doutorado, Biancalana escolheu os trovadores gaúchos como sujeitos de pesquisa, particularmente por não se ter notícia de trabalhos abordando a temática. O que existe somente, aponta ela, é um estudo destacando a musicalidade da trova gaúcha e outro discutindo a espetacularidade do gaúcho, momento então em que é evocado o trovador. Este tipo de manifestação da cultura popular em que se compõem poesias cantadas no improviso, sob forma de desafio, compara ela, existe em diversas partes do país, mas com outros nomes, proveniente a princípio de algumas regiões da Europa. “Não entendo que os trovadores gaúchos são melhores que outros. Existem peculiaridades que se aplicam em cada região que se avalia”, expõe.

Cerca de 15 trovadores que frequentaram os mais renomados festivais do Estado do RS foram selecionados por Biancalana entre os anos de 2007 e 2009. Foram escolhidos ainda atores do curso de bacharelado em Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) que desenvolveram um processo criativo que, por sua vez, culminou com a apresentação de um espetáculo – Água quente, erva e cuia – estreado em 2006. Os atores envolvidos neste processo foram três formandos e um aluno do terceiro ano da graduação. O critério de seleção de todos baseou-se na opinião dos seus pares no que se referia à competência para o ofício: os trovadores, segundo opinião dos avaliadores de eventos, dos estudiosos e dos próprios colegas; e, os atores, segundo a opinião dos professores do curso e de outros atores. “No entanto, a competência neste trabalho referiu-se mais à corporeidade poética em performances e a uma maior facilidade de se jogar no improviso”, realça.

De acordo com observações de Biancalana sobre a arte da improvisação, os trovadores consideram-se artistas completos, por serem capazes de compor poesias cantadas de pronto, durante a performance. “Obedecem em geral uma estrutura poética fixa e criam as letras. Esta habilidade não é fácil para eles como cantar músicas decoradas”, lembra. É por este motivo que, para serem trovadores, precisam ter o que consideram um dom.

Já, na arte teatral, a improvisação pode ser usada de várias formas e com grande abrangência. Uma delas é como meio para criar cenas que serão posteriormente formalizadas. Outra envolve a sua incorporação a algum elemento da cena, seja no texto ou na ação entre atores. E outra ainda pode ser aplicada no jogo com o público. No espetáculo analisado, a improvisação foi usada para criação e para o jogo entre os atores e o público. Enquanto os trovadores acreditam no dom de fazer improvisos, os atores adquirem esta habilidade que pode ser desenvolvida mediante disciplina de exercícios. Vê-se que são duas crenças opostas que refletem os universos culturais aos quais os sujeitos da pesquisa estão ligados.

Por ser uma pesquisa na área de artes, explica Biancalana, não houve de sua parte uma preocupação demasiada em ficar realizando uma descrição objetiva dos fatos e sim dirigir seu olhar para a realidade investigada no período de 2006 a 2009. A diferença maior no estudo, contudo, esteve contida no reflexo do universo cultural dos sujeitos, esclarece Biancalana. Os trovadores, caracteriza, afirmaram descobrir seu talento natural ou divino quando houve oportunidade. “Seu processo formativo se deu no dia a dia, no contato com os mais velhos e a partir da observação, experimentação e estímulos recebidos”, conta. Por outro lado, os atores investigados afirmaram que atravessaram um processo formativo apoiado pelo ensino formal, sistematizado e orientado por esquemas metodológicos e didáticos para aquisição de seus conhecimentos.

Os elementos que aproximaram trovadores e atores na pesquisa foram especialmente o desenvolvimento de uma corporeidade poética e a habilidade para o improviso. Mas, quanto ao processo formativo, uma coisa que chamou a atenção de Biancalana em ambos os casos foi o desejo de ser trovador ou ator movendo os seus processos formativos. A improvisação, conclui a professora, é fundamental em toda a arte efêmera pois, mesmo em performances formalizadas, ela é realizada naquele momento. “O foco dado a ela no meu trabalho foi justamente devido a sua importância enquanto elemento integrante de artes efêmeras”, contextualiza.

A tese de Biancalana termina com a seguinte frase: “nem tanto ao céu, nem tanto à terra”. Embora tenha iniciado a investigação tentando encontrar as contribuições que trovadores poderiam trazer aos atores, relata a pesquisadora, deparou-se com contribuições que percorriam uma mão de via dupla. Os trovadores, enfatiza ela, sabem que a competência para sua performance não depende apenas de um apanhado de técnicas aplicadas em complexos treinamentos laboratoriais, porém de um saber que as transcende. Valores como o respeito ao tempo da natureza, da tradição e das relações humanas são consideradas fundamentais em sua prática. Mas, especialmente, o dom é fundamental para um trovador.

Além disso, o tempo acelerado na contemporaneidade é vislumbrado como necessidade fundamental, o motor do sucesso, impulsionado pelos ideais de produtividade e competitividade. “O tempo acelerado atropela o tempo da natureza e estabelece um tempo artificializado. Também a obsessão por resultados instantâneos corrompe a harmonia de um processo integralizador”, constata Biancalana. O cultivo das relações humanas que sustentem ao menos um viés comunitário, mesmo que vivendo em sociedade, também contribuiu significativamente para o fortalecimento de laços que unem um grupo de trabalho. “A raiz popular dos trovadores guarda, em si, valores pouco considerados na contemporaneidade e que os atores não devem perder de vista”, aconselha.

 

FICHA TÉCNICA

Pesquisa: “Corpos em performance: o processo formativo e o aspecto improvisacional nos trovadores gaúchos e nos atores”.
Autora: Gisela Reis Biancalana

Orientadora: Sara Lopes

Modalidade: Tese de doutorado

Unidade: Instituto de Artes (IA)

Financiamento: Capes

 

 

 
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