Numa
conversa com Jorge Sabato, um dos fundadores do Pensamento
Latino-americano sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade (Placts),
ele me contou como havia surgido o “seu” triângulo. Tinha
sido numa reunião com economistas em que ele queria mostrar-lhes
o modelo cognitivo que usava para descrever e prescrever
a Política de C&T (PCT). E, para isso, estilizou as
relações entre Governo, Empresa e Universidade com essa
figura geométrica porque ela era a mais complicada que os
que o estavam escutando podiam entender.
Brincadeiras à parte, a força dessa estilização já quarentona,
permanece. E tem sido retomada no norte com outras roupagens.
Ela manifestou-se uma vez mais numa das poucas sessões
em que se discutiu a PCT latino-americana da 4ª Reunião
auspiciada pelas “SBPCs” brasileira, argentina e uruguaia
no final de novembro, em Porto Alegre. A sessão contou com
a participação (entre outros; poucos, diga-se de passagem)
da vice-presidente do CNPq – Wrana Panizzi – conhecida pelas
suas propostas de renovação dessa política.
Este texto resume o que ali sugeri: a introdução de mais
um vértice na figura proposta por um dos meus mestres mais
brilhantes que dê conta das mudanças que ocorreram desde
então e se aproveite da maior capacidade que temos hoje
os que fazemos no nosso quotidiano – de maneira bottom-up
e incremental – a PCT. Assim, de forma bem-humorada, mas
respeitosa, proponho uma nova estilização. Um modelo cognitivo
que nos permita prescrever sobre a relação Ciência, Tecnologia
e Sociedade sul-americana atual: o “Quadrado do Dagnino”.
Antes disso, me fiz algumas perguntas. Quem eram esses
três atores? Qual era o projeto que político que esse triângulo
simbolizava? Que comportamento dos atores, que dinâmica
de funcionamento sistêmico se pretendia? Que processos de
co-construção sócio-técnica e co-organização política no
âmbito interno e externo eram com eles coerentes?
O Governo – antecipador, forte e portador de um “projeto
nacional” de industrialização de baseado na substituição
de importações que expressava o compromisso desenvolvimentista
entre as elites e o operariado –, não por acaso, ficava
no vértice superior. A universidade, que na Argentina prefigurava
o que viria a ser no Brasil – o celeiro de onde se esperava
viria o conhecimento necessário para o desenvolvimento tecnológico
na empresa – ficava, como esta, na base. A pesquisa universitária
receberia os recursos do governo para fornecer à empresa
nacional – demiurgo modernizante e quase antiimperialista
do capitalismo nascente – a capacitação tecnológica que
a condição periférica e o acosso das multinacionais não
havia (ainda) gerado.
Uma das contribuições mais importantes de Sabato não foi
muito levada em conta. Talvez por não aparecer no triângulo,
mas provavelmente porque não era conveniente para os que
o popularizaram, as “fábricas te tecnologia” que, com base
nos institutos públicos e em novos grupos universitários
de pesquisa, fariam a ponte entre os habitantes de dois
territórios-vértices que “não falavam a mesma língua”. Na
verdade, com o início do desmantelamento neoliberal do Estado
latino-americano, sua proposta se transformou nos anos 80
no simulacro das incubadoras, parques e pólos de alta (!?)
tecnologia.
Quarenta anos depois do triângulo, não são apenas os mecanismos
institucionais da interação universidade-empresa que se
revelam inadequados e, por isto, inócuos. O ambiente nacional
e globalizado em que se inseria o triângulo sofreu transformações
que alteraram a natureza e o comportamento dos três atores
e, é claro, o que se pode esperar das relações entre eles.
O Governo, ademais de ocupar um Estado tetraplégico e lobotomizado
que o torna muito distinto, não logrou forjar um projeto
que, no âmbito tecnológico-produtivo, viabilize pela via
cognitiva o estilo alternativo de desenvolvimento econômico-social
com o qual se comprometeu. Pelo contrário, se aprofunda
a disfuncionalidade entre a PCT – focada na obtenção de
um quimérico aumento na propensão à P&D da empresa que
a tornaria internacionalmente competitiva e que permitiria
uma ainda mais irrealista melhoria da vida da população
excluída – e as políticas de inclusão social nas quais este
mesmo governo aplica (e não poderia nem deveria ser de outra
forma!) recursos crescentes.
O vértice Empresa mudou também, em relação ao que se esperava,
para pior. Agravou-se o predomínio das multinacionais, sobretudo
nos setores intensivos em tecnologia que poderiam demandar
resultados da pesquisa universitária; o que levou a um paroxismo
da disfuncionalidade. Somou-se à idéia de que é a universidade
Pública (e não a Privada) que deve produzir conhecimento
com e para a empresa Privada, ao invés de fazê-lo para o
benefício do conjunto (Público) da sociedade, o fato (que
eu saiba único) de que um país destine recursos públicos
para multinacionais desenvolverem pesquisa.
São muitas as evidências empíricas de uma PCT que, tentando
remediar o que é estrutural na nossa condição periférica
e em dependência cultural e que preside a baixa propensão
à P&D da empresa local, agrava sua disfuncionalidade
ao invés de alavancar aquele estilo alternativo. Segue-se
tentando alterar essa propensão pela via da formação de
mestres e doutores quando a capacidade de absorção das empresas
é de menos de 1%; incentivando a competitividade das empresas
quando apenas uma centena delas inova em termos mundiais;
aumentando a disponibilidade de recursos para a P&D
quando elas afirmam que os sinais de mercado não as estimulam
a usá-los e que sua estratégia de inovação não passa pela
P&D e sim pela aquisição de equipamento (o que provavelmente
explique a tendência observada de diminuição de sua receita
destinada à P&D); estimulando as empresas a se relacionarem
com a universidade quando as pouquíssimas que o fazem afirmam
que isso não lhes interessa muito...
Não vou me referir ao vértice Universidade. Primeiro, porque
já o tenho feito em outras oportunidades e porque nós bem
sabemos dos seus defeitos. Segundo, porque eles só poderão
ser amenizados e transformados em qualidades caso um novo
vértice, que tensione a PCT e a agenda da pesquisa universitária
pela via da policy e da politcs seja introduzido no seu
modelo cognitivo. O “Quadrado do Dagnino” (e vale o duplo
sentido para os que o considerarão retrógrado) pretende
“introduzir” no triângulo da PCT o vértice dos Movimentos
Sociais.
Pretende fazer com que dela participe esse ator que com
cada vez maior força vem colocando sua agenda em outras
políticas públicas menos controladas pelos seus atores dominantes
e que ainda não dispõem de um substrato cognitivo adequado;
que é um portador do futuro igualitário que se quer construir;
e que possui necessidades insatisfeitas que, estas sim,
ao contrário daquelas poucas colocadas pelas empresas, contêm
desafios tecnocientíficos capazes de mobilizar nosso potencial
– tangível e intangível – de C&T.
Pretende fazer que dela participem os que, cada vez mais
excluídos, seguem financiando a produção de um conhecimento
crescentemente orientado para as empresas que hoje não absorve
nem a metade da nossa População Economicamente Ativa.
Os presentes à sessão a que me refiro concordaram que o
atual governo foi o primeiro a desenvolver ações no sentido
do desenvolvimento de tecnologia para a inclusão social.
Mas, que a julgar pela parcela dos recursos do PAC da C&T
a ele destinado – apenas 2% do total – muito mais deve (e
poderia) ser feito.
Discutiu-se também a necessidade de contar com instrumentos
e arranjos institucionais para viabilizar o atendimento
das demandas cognitivas dos Movimentos Sociais e implementar
o “Quadrado do Dagnino”. Citou-se, entre elas, o Instituto
Nacional de Inovação Social cuja proposta, enviada pela
Unicamp ao CNPq no âmbito de recente Edital, está sendo
reconsiderada pela comissão responsável.