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Trabalhadores rurais enfrentam
‘entressafra produtiva’ em PE
Educadora percorre usinas
e canaviais para fundamentar tese defendida na Feagri
São várias as pesquisas que apontam a precariedade do trabalho
rural na lavoura de cana-de-açúcar no Brasil, mas hoje – com
a conquista da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – muitas
coisas mudaram, e para melhor. Esse trabalhador na condição
de morador possui uma situação mais cômoda e com o amparo
da lei: tem direito ao salário mínimo, ao 13º salário e à
aposentadoria. Para os trabalhadores safristas, como são chamados
os boias-frias em Pernambuco, os benefícios da lei são relativos
apenas ao período da safra, o que os obriga a dobrar a produtividade
para sobreviver durante o período de entressafra. Para eles,
o problema está na perda da qualidade de vida pelo fato de
morarem em alojamento ou nas periferias das cidades e trabalhar
no campo, afetando suas relações sociais, de convívio familiar
e dos amigos. Esta foi uma das conclusões a que chegou a tese
de doutorado da pesquisadora Eloah Nazaré Varjal de Melo Risk,
defendida na Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) e orientada
pelos professores Mauro José Andrade Tereso e Roberto Funes
Abrahão.
A educadora, que hoje divide
o seu tempo entre a coordenação geral de uma instituição de
ensino superior de Campinas e os estudos de pós-graduação
na Unicamp, nasceu em Pernambuco, local onde foi realizada
a pesquisa. O Estado, por apresentar dificuldades topográficas
para mecanização, proporciona mais empregos na colheita de
cana. O estudo também mostrou que 98% dos trabalhadores pesquisados
são analfabetos e que, quando perguntados sobre sua perspectiva
de futuro para fora do contexto rural, salientaram não ter
nenhuma. A investigação foi feita por Eloah entre 2007 e 2010.
Segundo ela, essas conclusões colaboraram para que entendesse
melhor a passagem de trabalhador-morador para boia-fria. O
termo “boia-fria” surgiu do costume destes trabalhadores levarem
uma marmita no trabalho logo cedo e, na hora do almoço, comê-la
fria mesmo. A configuração do boia-fria foi alvo de análise
da educadora, que relatou este processo desde a saída dos
engenhos até sua fixação na periferia. Foi nesse momento que
passou a trabalhar apenas seis meses, atuando somente no período
da safra. E outros seis meses? “Esse trabalhador tem que sobreviver
com o produto que colheu durante os meses em que teve atividade”,
revela.
A pesquisadora reconhece os
benefícios da CLT, a partir da década de 60, a principal norma
legislativa brasileira ligada ao Direito do Trabalho. Ela
recorda que a CLT trouxe ao trabalhador rural outras coberturas
fornecidas ao trabalhador urbano. Só que no caso dos safristas,
por serem trabalhadores de curto período, a lei não os contemplou
da mesma forma que aqueles que permaneceram nas propriedades.
“Aos que permaneceram, a lei veio favorecer de maneira fabulosa
pois, além de terem o conforto da casa e desfrutar da produção
do cultivo, eles têm um bom salário. Vi no campo moradores
indo trabalhar de motos”, comenta.
Para o safrista, o dinheiro
é apenas para suprir as suas necessidades durante o ano. E
mais: esta condição somente é alcançada com muito sacrifício,
porque ele deixa de conviver com a família para viver num
alojamento dentro dos canaviais no período da colheita. “Esse
trabalhador não tem como manter relações da época em que vivia
nas propriedades. Ele não vê os filhos crescerem e não tem
perspectiva de emprego, porque o mais complicado de tudo isso
é que o avanço tecnológico sinaliza que em pouco tempo essa
categoria será extinta”, sentencia a pesquisadora.
A cada avanço tecnológico,
garante Eloah, diminui um posto de trabalho. Para as atividades
posteriores ao cultivo da cana, ainda é absorvida mão de obra,
mesmo que mais restrita àqueles que moram nas propriedades.
A maioria dos trabalhadores rurais foi “expulsa” porque agora,
com a relação patrão e empregado, aquilo a que eles teriam
direito, os senhores de engenho se recusaram a pagar. Por
isso mudaram para as periferias e esta passagem trouxe-lhes
um sentimento de remissão ao passado que pode ser traduzido
pela frase: “eu era feliz e não sabia”.
Esses trabalhadores também
ficaram com uma leitura superficial de futuro, achando que
o trabalho está diminuindo porque a produção caiu. Não perceberam
que a máquina está retirando o trabalho deles, apesar da topografia
do campo em Pernambuco desencorajar a participação das máquinas
nas lavouras de cana-de-açúcar. Pensam que a sua substituição
vai demorar. “Todavia, as pesquisas atuais já mostram o oposto”,
refere Eloah, para quem os boias-frias dão mostras de conhecer
profundamente o que fazem, do cultivo da cana até o momento
da colheita. “No entanto, a visão de futuro que têm desse
trabalho é que o emprego será mantido por muito tempo. E isso
não é verdade”, atenta a educadora.
Transição
A autora da tese contextualiza
a história dos boias-frias. Conforme ela, tudo começou ainda
quando esses trabalhadores eram escravos. Ele é, portanto,
o bisneto ou tataraneto do escravo. Ao longo do período estudado,
que vai do século XVIII até 2010, esse trabalhador vai se
metamorfoseando. Começa como escravo e, quando a escravidão
termina no país, ele passa a morador de condição (morador
interno), trabalhando nos engenhos ao longo do dia. Em Pernambuco
tradicionalmente o boia-fria executa suas tarefas apenas no
período matutino. O período da tarde ele diz que é “pra jogar
conversa fora”. Pelos relatos, o trabalho é desenvolvido a
céu aberto, com extremo cansaço. Mas, quando chove, ninguém
trabalha. A CLT dá esta cobertura.
Já a questão da remuneração,
ela começou a existir somente quando houve a passagem de escravo
para morador de condição. Na lei, a categoria de trabalhador
rural abrange a todos que residem na propriedade. Passaram
a boia-fria quando a CLT veio a contemplá-los. Tal designação
vingou no Sudeste. No Nordeste, vogam os termos safrista e
trabalhador-morador.
De acordo com a educadora,
a lei trouxe proteção aos trabalhadores a priori em termos
físicos. Hoje, eles atuam equipados da cabeça aos pés, fato
que Eloah comprovou ao fazer o trabalho de campo. Na época
dos escravos, a maior característica deles eram os pés descalços.
Nos dias atuais, trabalham com bota, chapéu, paletó para cobrir
as mãos e lenço para protegê-los contra a fuligem da cana,
que provoca doenças de pele.
O usineiro tem propriedades na usina, nas quais também trabalha.
Ele concede o transporte, não a comida, porque os trabalhadores
já estão em casa. De outra via, fornece as marmitas térmicas,
para mantê-las quentes, e leva todo o aparato para os eitos
onde estão trabalhando, que é o caminhão-refeitório.
Sentimentos
O
ano de 1964 foi de turbulência política que ressoou forte
em Pernambuco com grande conflito no campo. Na época chamavam
o ex-governador Miguel Arraes de “paizinho” e “pai dos pobres”.
“Até agora é uma figura emblemática do movimento, assim como
dom Hélder Câmara, Francisco Julião e outros nomes da região”,
lembra Eloah. Vem dessa época a ideia de que os trabalhadores
deveriam trabalhar metade do período porque outro período
seria para “enricar” o patrão. “Esta é uma conserva cultural
que foi plantada para eles pelos movimentos sociais.”
Essa questão é permeada de
uma série de outros fatores, segundo a pesquisadora, sobretudo
os ideológicos. Mas o seu trabalho foi encaminhado pela área
de ergonomia. “É que tal disciplina estuda o trabalho real
e como ele repercute no homem, do ponto de vista físico, psicológico
e cognitivo. Então era essa a minha preocupação, apesar de
ter elementos para discorrer sobre isso. O questionário, a
propósito, foi feito com essa tríplice abordagem para ver
como eles enxergavam o próprio trabalho.”
O questionário somou 40 questões.
Foram 178 depoimentos de trabalhadores, sendo 140 de boias-frias
e 38 de trabalhadores-moradores. “As diferenças de sentimentos
apareceram apenas quando comparada uma categoria com outra.
Isso porque o eixo da discussão era a implementação da CLT
no campo e as suas vantagens. Para aqueles que se mantiveram
nos engenhos, a lei veio consagrar todos os benefícios. “Para
quem estava fora, não teve condições de trabalhar em outra
atividade, por gostar disso, e o caminho foi mais árduo. Mesmo
assim, quando indagados se queriam mudar de profissão, eles
garantiram que não. Questionados sobre o que queriam fazer?
Responderam: ‘ser patrão’”.
Eloah acredita que conseguiu
demonstrar como a lei assegurou benefícios de um lado e tirou
de outro. O sentimento de que não valeu a pena, diz, é muito
grande na fala dos boias-frias. Muitos deles responderam que
era melhor o trabalho no tempo dos avós. “Mesmo agora sabendo
que estão amparados pela lei, a precarização do trabalho já
é uma realidade.”
Existem duas condições de
se trabalhar hoje no campo: ou você faz as refeições nos alojamentos,
no horário certo, ou a refeição é feita no canavial, contudo
não mais sentados entre as ruas e sim dentro do caminhão-refeitório.
Viver em um canavial com condições mais dignas, com banheiros
azulejados, vasos sanitários, roupa de cama, quartos limpos
e cozinha é muito alentador. Estes foram os ganhos da Lei
5.889, de 18 de junho de 1973, regulamentada pelo Decreto
73.626/74, que regula as normas do trabalho rural e define
pontos como o salário e as condições mínimas de trabalho,
entre outros.
Eloah entrevistou proprietários
dos engenhos Tobé, Coimbra e Bom Jardim, para ouvir o outro
lado, o do empregador. Foi preciso conhecer a dinâmica do
meio rural, entendida pelos diferentes atores. Eles admitiram
que a condição de safrista é péssima para os trabalhadores
e que o cultivo da cana não é fácil, passando-se muito tempo
investindo para somente receber no período da colheita.
O fato dos boias-frias estarem
morando na cidade e terem que trabalhar no campo é uma dinâmica
que muito os entristece. Eles nem enxergam os benefícios da
lei se os sentimentos são de saudade da família e dificuldade
de terem que acordar às 4 horas para poderem chegar ao eito
de cana às 7 horas, retornarem para a casa e dormirem exaustos.
Publicação:
Tese de Doutorado “A organização e
análise ergonômica do trabalho do ‘boia-fria’: a saga
do trabalhador rural da lavoura da cana-de-açúcar no
Estado de Pernambuco – do escravo ao boia-fria, uma
história de ‘sangue, suor e lágrima’”
Autora: Eloah Nazaré Varjal de Melo
Risk
Orientador: Mauro José Andrade Tereso
Coorientador: Roberto Funes Abrahão
Unidade: Faculdade de Engenharia Agrícola
(Feagri)
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