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Pesquisa associa polpa do açaí à
transmissão da doença de Chagas
Investigações multidisciplinares
comprovam
que protozoário sobrevive em diferentes condições
Equipe multidisciplinar liderada
pelo professor Luiz Augusto Corrêa Passos, diretor da Divisão
de Pesquisa do Centro Multidisciplinar para Investigação Biológica
(Cemib), e pela professora Ana Maria Aparecida Guaraldo, do
Departamento de Biologia Animal, do Instituto de Biologia
(IB), ambos da Unicamp, conseguiu demonstrar cientificamente
que o Trypanosoma cruzi, protozoário causador da doença de
Chagas, sobrevive na polpa de açaí, tanto na temperatura ambiente
como a 4°C na geladeira e, também, congelado por algumas horas
a -20º C. O resultado, considerado inédito, é de extrema importância,
principalmente porque dados do Ministério da Saúde (MS) de
2008 confirmaram a notificação de 124 casos da doença de Chagas
aguda contraídos por transmissão oral na região Norte brasileira,
sendo 99 deles no Estado do Pará.
Segundo Passos, a conclusão
da pesquisa aponta dois aspectos fundamentais que deverão
ser tratados de maneira concomitante. O primeiro deles é
que se trata de um problema de saúde pública e o segundo,
uma questão socioeconômica. “Além da importância econômica
que o açaí tem para a região, constitui-se muitas vezes
como o principal e único alimento da camada mais pobre da
população”, afirmou o diretor. Entretanto, Guaraldo observa
que o risco de infecção é maior para aqueles que consomem
a polpa fresca, ou seja, trata-se de um fenômeno localizado.
Para aqueles que consomem a polpa de açaí industrializada,
que passa pelo processo de pasteurização, o risco é quase
nulo. A pesquisa foi realizada no âmbito do convênio “Análise
da interferência da polpa de açaí na transmissão oral
de Trypanosoma cruzi, contribuindo para o surgimento
de surtos de doença de Chagas aguda (DCA) na região Norte
do Brasil”, firmado entre o MS e a Unicamp. Também já
resultou em um artigo em revista especializada, um capítulo
de livro, dois resumos expandidos e nove resumos simples publicados
em anais de congressos, além de artigo que acaba de ser aceito
pelo importante periódico Advances in Food and Nutrition
Research.
De
acordo com os pesquisadores, não existe uma relação direta
entre a polpa e o protozoário. Na verdade, ele pode ser levado
até a polpa pela maceração do próprio inseto vetor nos
batedores do açaí ou por meio das fezes do barbeiro. Quando
o fruto é processado, carrega junto o Trypanosoma cruzi;
portanto, se o lote de frutos não estiver contaminado, não
representará perigo à saúde humana. Passos contou que a
situação só não é mais grave porque depende muito da
pessoa que recolhe os frutos. Algumas têm um cuidado maior
com a limpeza e higienização dos frutos, enquanto outras
nem tanto, aumentando assim o risco. “Depende totalmente
da manipulação”, observou o docente.
Em toda bacia amazônica,
principalmente em Belém, o açaí é consumido em larga escala
pela população, desde os 6 meses de idade, como complemento
alimentar. Para os idosos, ele é muito importante porque,
pela falta de dentição, tem na polpa do fruto seu principal
alimento. Está presente em centenas de receitas, entre as
quais sorvetes e sucos, além de servir de simples acompanhamento
do arroz com o feijão. “Para que não represente um perigo
iminente para a saúde, é necessário que o fruto receba
um tratamento sanitário adequado e a polpa, um tratamento
térmico capaz de eliminar o protozoário”, afirmou o diretor
do Cemib.
A interferência do MS no problema
tem sido fundamental para alertar os produtores quanto a esses
cuidados. Tanto que a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)
lançou um manual específico para toda região amazônica, incluindo
Venezuela e Colômbia, trazendo uma abordagem para leigos e
médicos. A doença de Chagas aguda é fatal e, em muitos casos,
causa a morte da pessoa em até 25 dias. Como as microepidemias
de doença de Chagas aguda ocorrem justamente na época de produção
do açaí, o fato chamou bastante a atenção das autoridades,
principalmente pelo fato de a contaminação se dar por via
oral. O que a Unicamp fez foi realizar cientificamente a primeira
abordagem sobre o fenômeno.
Passos relatou que essa trajetória
teve início com a participação do professor Flávio Luis Schmidt,
da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp,
em um encontro em Brasília (DF), em setembro de 2007. Lá,
soube do interesse do MS em atender uma demanda específica
em Belém do Pará. Sabendo também que o Cemib atua na pesquisa
de Chagas experimental e nele era mantido o parasito in vivo,
Schmidt fez contato com Passos para saber qual poderia ser
a contribuição científica da Universidade no entendimento
dos surtos. Ambos partiram para Belém com o propósito de conhecer
como era feito o recolhimento dos frutos, de que maneira saíam
das ilhas e chegavam no continente e como era feito o processamento.
“Queríamos, enfim, entender como poderia ser estabelecido
um mecanismo que permitisse a transmissão do parasito por
via oral”, disse Passos.
A
convite do MS, participaram de reuniões de trabalho com equipes
e pesquisadores do Instituto Evandro Chagas (órgão ligado
à Fiocruz), e com técnicos do Ministério, da Anvisa e da Secretaria
de Saúde do Pará. Como este Estado depende do fruto, tanto
como suplementação alimentar como economicamente, o próprio
governo estadual estava sofrendo uma pressão muito grande
para dar respostas sobre o que estava ocorrendo e de que maneira
poderia intervir. Nesse meio tempo, surgiu uma questão sobre
como vincular os surtos de transmissão oral da doença de Chagas
ao consumo de açaí. De acordo com informações recolhidas junto
a essas equipes, o único ponto em comum encontrado residia
no consumo de polpa de açaí justamente nos locais onde os
surtos haviam se manifestado. Outra evidência que chamou a
atenção foi a de um médico que alegava ter comprado a polpa
congelada em um supermercado e também ter contraído a doença.
Porém, esses dados eram apenas de natureza epidemiológica,
segundo Passos. “Não havia nenhum dado científico que demonstrasse
a relação entre a polpa da fruta e a transmissão do protozoário”,
disse. Foi aí que teve início o desafio dos pesquisadores
da Unicamp. Um projeto foi formulado para o MS que, depois
de aprovado, evoluiu para um convênio.
No entanto, antes que a formalização
do projeto acontecesse e com recursos apenas da Unicamp, Passos
e Schmidt voltaram de Belém trazendo na bagagem a polpa do
açaí, dando início aos primeiros testes. O objetivo era ter
uma resposta ao problema o mais rápido possível. Além de Passos,
Guaraldo e Schmidt, fazem parte da equipe a professora Regina
Maura Bueno Franco, do IB; a professora Karen Signori Pereira,
da UFRJ; a professora Nanci do Nascimento, do IPEN/USP; Viviane
Liotti Dias e toda a equipe da Divisão de Pesquisa do Cemib;
e Rodrigo Labello Barbosa, aluno de mestrado em parasitologia
do IB. Barbosa defenderá sua dissertação de mestrado no próximo
dia 11 de junho, a primeira resultante desse projeto de pesquisa.
Metodologia
De maneira intencional, os
pesquisadores desenharam determinados protocolos capazes de
ampliar as chances de repetidamente identificar ao menos um
protozoário nas amostras. Passos garantiu que, pela metodologia
desenvolvida no Cemib, se um único tripomastigota estiver
vivo, será detectado. A amostra é colocada por três vias diferentes
em um animal especial, uma linhagem imunodeficiente que não
resiste a um protozoário virulento: por via oral; por gavage
(técnica intragástrica, na qual, por meio de uma cânula a
amostra é colocada diretamente no estômago); e pela clássica
via intraperitoneal.
Para que não houvesse nenhuma
contestação a respeito dessa metodologia, a Unicamp foi
convidada pelo MS para participar de três eventos internacionais
para demonstrar os resultados. “O ministério pediu que
déssemos as respostas à academia daquilo que dizia respeito
às providências científicas que ele estava tomando para
abordar o problema”, disse o diretor de pesquisa. Os protocolos
apresentados foram discutidos e questionados, e no final,
foram aprovados comprovando que a metodologia foi muito bem
estabelecida.
O resultado produzido pelo
Cemib faz parte de um conjunto de ações estratégicas do
MS para interferir na produção dos frutos. Existem dois
aspectos por meio dos quais as equipes da Vigilância Sanitária
de Belém estão trabalhando para desenvolver um plano de
ação.
O primeiro se concentra nos
grandes centros consumidores e o segundo, na população mais
humilde que não tem conhecimentos básicos, entre os quais
sobre higiene, por exemplo. As iniciativas contemplam a questão
educacional, responsável por traduzir esse conhecimento para
a linguagem da população caiçara; aspectos técnicos, como,
por exemplo, um banho de hipoclorito e posterior enxágue dos
frutos; forma de recolhimento dos frutos para colocação nos
paneiros e, por último, uma técnica que está sendo desenvolvida
no Cemib, chamada cinética de inativação térmica, capaz de
determinar uma temperatura mínima para tratar a polpa sem
alterar suas condições nutricionais e de paladar. “Os testes-piloto
demonstraram uma temperatura que parece ser bastante eficiente
na erradicação do protozoário. Nos próximos dias iniciaremos
os testes com a própria polpa e, em breve, teremos mais esse
resultado”, garantiu Passos.
Guaraldo fez questão de ressaltar
que, desde 1909, quando a doença de Chagas foi descoberta,
é preciso considerar que 80% da transmissão ainda se dá pela
via vetorial e que, de 5% a 20% por transmissão sanguínea.
Apenas 1% ocorre por transmissão vertical – da mãe para o
feto – e nesse índice é que entra a transmissão oral. Nem
todas as pessoas que entram em contato com o Trypanosoma cruzi
morrerão, assegurou a docente. “Aproximadamente 70% das pessoas
que contraem a doença têm uma infecção, superam a fase aguda,
nunca entram na fase crônica e jamais terão problema algum”,
concluiu.
Risco e emoção
marcam visita a mercado no PA
Quando estiveram em
Belém, Passos e Schmidt passaram por situações que causaram
desconforto e emoção. Foram visitar o tradicional mercado
Ver-o-Peso, ponto de chegada e comercialização do açaí.
Levados por um motorista que conhecia o local, chegaram
às 3 horas da manhã, horário de intenso comércio. A situação
estava muito tensa porque os produtores estavam entendendo
ou acreditando que esses episódios de contaminação por
doença de Chagas eram uma invenção do governo federal
para transferir todo o cultivo, coleta e processamento
do açaí para a iniciativa privada.
Como se trata de uma
cultura que rende muitos dividendos para aquela população,
que depende disso para sobreviver, eles estavam muito
nervosos e pressionaram muito os docentes da Unicamp,
gerando uma situação de desconforto e até um certo risco.
Por sugestão do motorista, prevendo que a situação poderia
ficar perigosa, eles foram retirados de lá.
Na saída, encontraram
uma senhora, já bastante idosa, que recolhia os frutos
caídos entre as frestas dos paralelepípedos. O motorista
perguntou a ela porque estava fazendo aquilo e ela respondeu
que era dali que sairia a alimentação de toda a sua família
naquele dia. “Isso me deixou profundamente sensibilizado
e me fez começar o estudo imediatamente”, afirmou Passos.
O impacto causado
pela ocorrência dos surtos da doença de Chagas fez um
comerciante local, conhecido como Francisco, ver sua produção
despencar. Acostumado a enviar para Salvador (BA) aproximadamente
de 15 a 20 toneladas por mês de polpa de açaí, teve essa
quantidade reduzida drasticamente para quase duas toneladas.
O fruto é perecível e estraga muito rápido, interferindo
radicalmente na renda obtida com o comércio. Passos ressalta
que como se trata de uma cultura sustentável, que fixa
o trabalhador em sua região de origem, não dar atenção
a isso é sinônimo de prejuízo.
Artigo
Pereira, K.S; Schmidt, F.L.; Guaraldo, A.M.A.; Franco,
R.M.B.; Dias, V.L.; Passos, L.A.C. Chagas Disease as
a Foodborne Illness. Journal of Food Protection,
v. 72, p. 441-446, 2009.
Capítulo de livro
Pereira, K.S; Schmidt, F.L.; Barbosa-Labello, R.; Guaraldo,
A.M.A.; Franco, R.M.B.; Dias, V.L.; Passos, L.A.C..
Transmission of Chagas Disease (American Trypanosomiasis)
by Food (in press). Foods and American Tripanosomiasis,
2010.
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