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Físicos formulam nova interpretação para
propriedades mecânicas do hélio 4 sólido

Estudo do IFGW foi publicado na revista Physical Review Letters

Os professores Maurice de Koning e Sílvio Antonio S. Vitiello, do IFGW: resultados experimentais como ponto de partida (Foto: Antoninho Perri) É difícil imaginar que um líquido possa escoar subindo pelas paredes de um copo. Mas isso acontece com o hélio (He) líquido quando ele está abaixo de uma determinada temperatura. Esta característica do He que, além disso, a temperaturas muito baixas, apresenta viscosidade praticamente nula, levou os estudiosos a cunhar o termo superfluidez para caracterizar um escoamento sem resistência. A superfluidez que, ao que tudo indica, é também observada mesmo no He sólido – em que recebe mais apropriadamente o nome de supersolidez – confere-lhe propriedades mecânicas muito particulares a temperaturas vizinhas ao zero absoluto, isto é, próximas a -273 graus Celsius.

Tentando explicar as propriedades mecânicas do He 4 sólido que fogem do comportamento usual – experimentalmente observadas ao longo de anos recentes – e intrigados com as explicações aventadas, ou inconformados com a falta delas, os físicos e professores Maurice de Koning e Sílvio Antonio S. Vitiello, do Departamento de Física da Matéria Condensada, do Instituto de Física “Gleb Wataghin” (IFGW) da Unicamp, propuseram-se ao estudo desses fenômenos.

Para tanto, uniram a experiência do primeiro em ciências dos materiais – que procura entender o comportamento mecânico destes – e do segundo em muitos corpos quânticos, assim denominados os sistemas compostos de muitas partículas que obedecem à mecânica quântica. O trabalho interdisciplinar por eles orientado foi realizado pelo doutorando Renato Pessoa e levou a uma nova interpretação das propriedades mecânicas ostentadas pelo He 4 sólido. As conclusões do estudo foram publicadas recentemente no Physical Review Letters, periódico de tradição na divulgação de trabalhos importantes, atuais, de impacto e de interesse geral.

O He 4 sólido conjuga características de um sólido com propriedades de superfluidez, ou supersolidez, conforme preferem alguns, em temperaturas muito baixas e por isso tem atraído recentemente a atenção de pesquisadores. As características do He 4 permitem sua caracterização como sólido quântico – assim considerado porque cada um de seus átomos possui uma amplitude de oscilação grande quando comparada a distância de seus vizinhos.

Vitiello enfatiza que é o caso do He 4, mas não de outros materiais: “Na verdade, na mecânica quântica perde-se a capacidade de localização precisa da posição das partículas. Esse efeito quântico assume importância maior quanto menor a massa da partícula. O He além de extremamente leve – é o átomo mais leve depois do hidrogênio – não forma moléculas e, por isso, os efeitos quânticos assumem nele dimensão maior”. Ademais, lembra o docente, o modelo quântico se coaduna com as propriedades macroscópicas apresentadas pelo He 4, que são aquelas passíveis de serem medidas.

Os pesquisadores destacam a natureza de pesquisa básica e teórica que envolveu o trabalho. Desenvolveram o projeto partindo de resultados experimentais obtidos por grupos de outros países. O estudo foi realizado em computador adquirido com recursos da Fapesp e nos super computadores do Centro Nacional de Processamento de Alto Desempenho (Cenapade), que funciona junto ao Centro de Computação da Unicamp.

Vitiello e de Koning mostram-se particularmente entusiasmados não só pelo fato de trabalho ter sido aceito por uma revista de visibilidade, mas também por sido realizado total e exclusivamente no Brasil e na Unicamp. “Neste corredor”, dizem brincando, referindo-se ao acesso às salas do departamento. Vitiello frisa que, dentro de suas características, o estudo, que resultou do casamento de competências muito particulares, não havia sido feito até então. Credita à qualidade e ao ineditismo sua aceitação pela revista.

Por sua vez, de Koning esclarece que a abordagem de ciência dos materiais que aplicaram é a mesma utilizada em outros tipos de sistemas, caso dos metais, que não apresentam efeitos quânticos tão significativos. Por outro lado, foi a primeira vez que um sistema como o do He 4 foi estudado com esta abordagem.

Para Vitiello, o estudo serviu também para a formação de pessoal de excelência. Lembra que o estudante Renato Pessoa foi o primeiro colocado no concurso que o levou ao ingresso no Instituto Federal Goiano em que concorreu com candidatos que já haviam concluído o doutorado. Diz, com orgulho, que o fato é indicativo do nível de formação adquirido na Unicamp pelo aluno por eles orientado.

O macroscópico

Nos trabalhos experimentais realizados por outros grupos, o He 4 foi solidificado em uma cápsula colocada na extremidade de um eixo de um dispositivo chamado pêndulo de torção, em que o material pode ser posto a oscilar em pequenos movimentos de vaivém executados em torno do eixo. Nesses casos, quaisquer sólidos apresentam um momento de inércia, que pode ser entendido como a dificuldade que o corpo tem para iniciar o movimento de rotação ou a dificuldade em pará-lo. As medidas dos momentos de inércia são classicamente muito bem definidas e podem ser determinadas para quaisquer materiais. Para o He 4 sólido, não foi diferente.

Mas, quando submetido a progressivo abaixamento de temperatura, repentinamente a resistência ao giro caia abruptamente, como se uma pequena fração do material permanecesse imóvel. Os resultados observados foram publicados pela primeira vez em 2004 e posteriormente vários laboratórios os reproduziram. E não havia explicação para a quebra da resistência ao movimento.

Posteriormente foi descrito outro experimento com o He 4 sólido envolvendo agora a medida da resistência elástica do material, que é uma propriedade mecânica. Para isso, o sólido foi submetido a uma pequena deformação e mediu-se a força aplicada para consegui-la. O experimento foi realizado no mesmo regime de temperatura do anterior.

Os experimentadores constataram que, com a redução da temperatura, de repente, para conseguir o mesmo grau de deformação havia necessidade de aplicar força maior. Mediram também as variações das intensidades dessas forças em função do grau de impureza do He 4, contaminado pelo He 3, com o qual constitui uma mistura isotópica natural e estável. Comparando os resultados obtidos com os divulgados em 2004, na mesma faixa de variação de temperatura, concluíram que os resultados se assemelhavam. Ou seja, às mesmas temperaturas, no primeiro experimento se observava a diminuição da resistência ao movimento de rotação e no segundo, o aumento da resistência à deformação.

Discordância

O grupo envolvido neste último experimento tentou uma explicação. Um cristal real não tem grade cristalina – entendida como a disposição relativa dos átomos que o constituem – perfeitamente uniforme e apresenta vários defeitos de formação. Um desses defeitos de cristalização se chama discordância, que pode ser representada, por exemplo, pela retirada de metade dos átomos de um dos planos em que estão alojados, dando origem a falhas de formação. As discordâncias são importantes na definição das propriedades mecânicas dos metais.

Quando o material é tensionado, a discordância se desloca e quanto mais ela caminha mais facilmente o material se deforma. Como ao baixar a temperatura o movimento ficou mais difícil, propuseram que as discordâncias que seriam aprisionadas pelas impurezas disseminadas pelo retículo estariam perdendo sua mobilidade e dificultariam o movimento de todo o sistema. Utilizavam uma explicação sobejamente adotada no estudo dos metais. Esse mesmo modelo, aplicado ao He 4, constituiu a explicação oferecida pelo grupo.

Maurice de Koning, que acumula experiências recentes na área, achou essa explicação incompleta porque, diz ele, mesmo em um material real desprovido de impurezas e, portanto sem pontos que dificultem o movimento, existem obstáculos ao movimento de uma discordância. E justifica: “As discordâncias se situam no cristal como se estivessem na parte mais baixa de telhas com ondulações, formadas pelos planos cristalinos. A superação destas verdadeiras barreiras dificultam a movimentação da discordância. Eles ignoraram esse fato. Por que no He 4 não haveria essa calha? Achei muito estranho, mesmo porque em outros materiais que conheço a resistência imposta por essas ondulações é muito alta.”

Como de Koning conhece os métodos que permitem calcular a resistência contra o movimento das discordâncias e Vitiello sabe como modelar quanticamente as interações do He 4, juntaram esses conhecimentos para calcular a resistência que o material impõe às deformações e verificaram que ela não é nada desprezível. Concluíram então que a explicação que fora dada é ao menos incompleta.

Vitiello explica que não havia sido levado em conta que o sólido não é um continuo, mas sim que possui uma rede cristalina com sítios em torno dos quais os átomos oscilam. E mais, que as discordâncias se manifestam diferentemente nos diversos tipos de redes que existem na natureza e que, por isso, o tipo de cristal também deve ser levado em conta.

Segundo Vitiello, a explicação dada foi que, reduzindo a temperatura, as impurezas encontram dificuldade em caminhar, o que dificulta o movimento das discordâncias por elas aprisionadas. “Dissemos que essa interpretação não pode estar completa porque, mesmo que não existissem essas impurezas, a discordância possui uma resistência ao movimento produzida pela própria rede cristalina. E isso se deve à circunstância de que as discordâncias moram no cristal, na parte baixa das telhas, o que determina uma resistência ao movimento. O modelo matemático que aplicaram não é completo já que deve ser levado em consideração o reticulo cristalino”.

Os docentes deixam claro que não eliminaram a possibilidade de a resistência ser devia a impurezas, mas acrescentaram um elemento que até então não havia sido considerado: a rede cristalina. Discordâncias são defeitos que ocorrem em cristais e que apresentam diferentes comportamentos em razão da natureza da rede cristalina. Ou em outras palavras, o comportamento desses defeitos depende em grande parte da estrutura cristalina e ela é fundamental para entender o que está acontecendo.

 

Artigo:
Physical Review Letters
104, 085301 (2010)

 

 

 
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