Físicos formulam nova interpretação para
propriedades mecânicas do hélio 4 sólido
Estudo do IFGW foi publicado
na revista Physical Review Letters
É difícil imaginar que um líquido possa escoar subindo pelas
paredes de um copo. Mas isso acontece com o hélio (He) líquido
quando ele está abaixo de uma determinada temperatura. Esta
característica do He que, além disso, a temperaturas muito
baixas, apresenta viscosidade praticamente nula, levou os
estudiosos a cunhar o termo superfluidez para caracterizar
um escoamento sem resistência. A superfluidez que, ao que
tudo indica, é também observada mesmo no He sólido – em que
recebe mais apropriadamente o nome de supersolidez – confere-lhe
propriedades mecânicas muito particulares a temperaturas vizinhas
ao zero absoluto, isto é, próximas a -273 graus Celsius.
Tentando explicar as propriedades
mecânicas do He 4 sólido que fogem do comportamento usual
– experimentalmente observadas ao longo de anos recentes –
e intrigados com as explicações aventadas, ou inconformados
com a falta delas, os físicos e professores Maurice de Koning
e Sílvio Antonio S. Vitiello, do Departamento de Física da
Matéria Condensada, do Instituto de Física “Gleb Wataghin”
(IFGW) da Unicamp, propuseram-se ao estudo desses fenômenos.
Para tanto, uniram a experiência
do primeiro em ciências dos materiais – que procura entender
o comportamento mecânico destes – e do segundo em muitos
corpos quânticos, assim denominados os sistemas compostos
de muitas partículas que obedecem à mecânica quântica.
O trabalho interdisciplinar por eles orientado foi realizado
pelo doutorando Renato Pessoa e levou a uma nova interpretação
das propriedades mecânicas ostentadas pelo He 4 sólido.
As conclusões do estudo foram publicadas recentemente no
Physical Review Letters, periódico de tradição na
divulgação de trabalhos importantes, atuais, de impacto
e de interesse geral.
O He 4 sólido conjuga características
de um sólido com propriedades de superfluidez, ou supersolidez,
conforme preferem alguns, em temperaturas muito baixas e por
isso tem atraído recentemente a atenção de pesquisadores.
As características do He 4 permitem sua caracterização como
sólido quântico – assim considerado porque cada um de seus
átomos possui uma amplitude de oscilação grande quando comparada
a distância de seus vizinhos.
Vitiello enfatiza que é o
caso do He 4, mas não de outros materiais: “Na verdade, na
mecânica quântica perde-se a capacidade de localização precisa
da posição das partículas. Esse efeito quântico assume importância
maior quanto menor a massa da partícula. O He além de extremamente
leve – é o átomo mais leve depois do hidrogênio – não forma
moléculas e, por isso, os efeitos quânticos assumem nele dimensão
maior”. Ademais, lembra o docente, o modelo quântico se coaduna
com as propriedades macroscópicas apresentadas pelo He 4,
que são aquelas passíveis de serem medidas.
Os pesquisadores destacam
a natureza de pesquisa básica e teórica que envolveu o trabalho.
Desenvolveram o projeto partindo de resultados experimentais
obtidos por grupos de outros países. O estudo foi realizado
em computador adquirido com recursos da Fapesp e nos super
computadores do Centro Nacional de Processamento de Alto Desempenho
(Cenapade), que funciona junto ao Centro de Computação da
Unicamp.
Vitiello e de Koning mostram-se
particularmente entusiasmados não só pelo fato de trabalho
ter sido aceito por uma revista de visibilidade, mas também
por sido realizado total e exclusivamente no Brasil e na Unicamp.
“Neste corredor”, dizem brincando, referindo-se ao acesso
às salas do departamento. Vitiello frisa que, dentro de suas
características, o estudo, que resultou do casamento de competências
muito particulares, não havia sido feito até então. Credita
à qualidade e ao ineditismo sua aceitação pela revista.
Por sua vez, de Koning esclarece
que a abordagem de ciência dos materiais que aplicaram é a
mesma utilizada em outros tipos de sistemas, caso dos metais,
que não apresentam efeitos quânticos tão significativos. Por
outro lado, foi a primeira vez que um sistema como o do He
4 foi estudado com esta abordagem.
Para Vitiello, o estudo serviu
também para a formação de pessoal de excelência. Lembra que
o estudante Renato Pessoa foi o primeiro colocado no concurso
que o levou ao ingresso no Instituto Federal Goiano em que
concorreu com candidatos que já haviam concluído o doutorado.
Diz, com orgulho, que o fato é indicativo do nível de formação
adquirido na Unicamp pelo aluno por eles orientado.
O macroscópico
Nos trabalhos experimentais
realizados por outros grupos, o He 4 foi solidificado em uma
cápsula colocada na extremidade de um eixo de um dispositivo
chamado pêndulo de torção, em que o material pode ser posto
a oscilar em pequenos movimentos de vaivém executados em torno
do eixo. Nesses casos, quaisquer sólidos apresentam um momento
de inércia, que pode ser entendido como a dificuldade que
o corpo tem para iniciar o movimento de rotação ou a dificuldade
em pará-lo. As medidas dos momentos de inércia são classicamente
muito bem definidas e podem ser determinadas para quaisquer
materiais. Para o He 4 sólido, não foi diferente.
Mas, quando submetido a progressivo
abaixamento de temperatura, repentinamente a resistência ao
giro caia abruptamente, como se uma pequena fração do material
permanecesse imóvel. Os resultados observados foram publicados
pela primeira vez em 2004 e posteriormente vários laboratórios
os reproduziram. E não havia explicação para a quebra da resistência
ao movimento.
Posteriormente foi descrito
outro experimento com o He 4 sólido envolvendo agora a medida
da resistência elástica do material, que é uma propriedade
mecânica. Para isso, o sólido foi submetido a uma pequena
deformação e mediu-se a força aplicada para consegui-la. O
experimento foi realizado no mesmo regime de temperatura do
anterior.
Os experimentadores constataram
que, com a redução da temperatura, de repente, para conseguir
o mesmo grau de deformação havia necessidade de aplicar força
maior. Mediram também as variações das intensidades dessas
forças em função do grau de impureza do He 4, contaminado
pelo He 3, com o qual constitui uma mistura isotópica natural
e estável. Comparando os resultados obtidos com os divulgados
em 2004, na mesma faixa de variação de temperatura, concluíram
que os resultados se assemelhavam. Ou seja, às mesmas temperaturas,
no primeiro experimento se observava a diminuição da resistência
ao movimento de rotação e no segundo, o aumento da resistência
à deformação.
Discordância
O grupo envolvido neste último
experimento tentou uma explicação. Um cristal real não tem
grade cristalina – entendida como a disposição relativa dos
átomos que o constituem – perfeitamente uniforme e apresenta
vários defeitos de formação. Um desses defeitos de cristalização
se chama discordância, que pode ser representada, por exemplo,
pela retirada de metade dos átomos de um dos planos em que
estão alojados, dando origem a falhas de formação. As discordâncias
são importantes na definição das propriedades mecânicas dos
metais.
Quando o material é tensionado,
a discordância se desloca e quanto mais ela caminha mais facilmente
o material se deforma. Como ao baixar a temperatura o movimento
ficou mais difícil, propuseram que as discordâncias que seriam
aprisionadas pelas impurezas disseminadas pelo retículo estariam
perdendo sua mobilidade e dificultariam o movimento de todo
o sistema. Utilizavam uma explicação sobejamente adotada no
estudo dos metais. Esse mesmo modelo, aplicado ao He 4, constituiu
a explicação oferecida pelo grupo.
Maurice de Koning, que acumula
experiências recentes na área, achou essa explicação incompleta
porque, diz ele, mesmo em um material real desprovido de impurezas
e, portanto sem pontos que dificultem o movimento, existem
obstáculos ao movimento de uma discordância. E justifica:
“As discordâncias se situam no cristal como se estivessem
na parte mais baixa de telhas com ondulações, formadas pelos
planos cristalinos. A superação destas verdadeiras barreiras
dificultam a movimentação da discordância. Eles ignoraram
esse fato. Por que no He 4 não haveria essa calha? Achei muito
estranho, mesmo porque em outros materiais que conheço a resistência
imposta por essas ondulações é muito alta.”
Como de Koning conhece os
métodos que permitem calcular a resistência contra o movimento
das discordâncias e Vitiello sabe como modelar quanticamente
as interações do He 4, juntaram esses conhecimentos para calcular
a resistência que o material impõe às deformações e verificaram
que ela não é nada desprezível. Concluíram então que a explicação
que fora dada é ao menos incompleta.
Vitiello explica que não havia
sido levado em conta que o sólido não é um continuo, mas sim
que possui uma rede cristalina com sítios em torno dos quais
os átomos oscilam. E mais, que as discordâncias se manifestam
diferentemente nos diversos tipos de redes que existem na
natureza e que, por isso, o tipo de cristal também deve ser
levado em conta.
Segundo Vitiello, a explicação
dada foi que, reduzindo a temperatura, as impurezas encontram
dificuldade em caminhar, o que dificulta o movimento das discordâncias
por elas aprisionadas. “Dissemos que essa interpretação não
pode estar completa porque, mesmo que não existissem essas
impurezas, a discordância possui uma resistência ao movimento
produzida pela própria rede cristalina. E isso se deve à circunstância
de que as discordâncias moram no cristal, na parte baixa das
telhas, o que determina uma resistência ao movimento. O modelo
matemático que aplicaram não é completo já que deve ser levado
em consideração o reticulo cristalino”.
Os docentes deixam claro que
não eliminaram a possibilidade de a resistência ser devia
a impurezas, mas acrescentaram um elemento que até então não
havia sido considerado: a rede cristalina. Discordâncias são
defeitos que ocorrem em cristais e que apresentam diferentes
comportamentos em razão da natureza da rede cristalina. Ou
em outras palavras, o comportamento desses defeitos depende
em grande parte da estrutura cristalina e ela é fundamental
para entender o que está acontecendo.
Artigo:
Physical Review Letters
104, 085301 (2010)
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