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Economista prega revisão de lei que
limita empréstimo de última instância
LRF é empecilho para que
Banco Central atue como prestamista
Desde o período em que Napoleão ameaçava invadir a Inglaterra,
há 200 anos, a função de prestamista de última instância já
se fazia necessária para conter o pânico financeiro que levou
o público a querer trocar dinheiro por ouro. Diante da crise
de 2008, bancos dos EUA se viram obrigados a tomar empréstimos
e dar em garantia ativos (compostos por títulos e contratos
de dívidas de clientes), ao realizar empréstimos de última
instância junto ao Federal Reserve System (Banco Central dos
Estados Unidos). Se fosse no Brasil, o Banco Central (BC)
não teria condições de atuar como prestamista de última instância
de instituições privadas, pois esbarraria na Lei de Responsabilidade
Fiscal (LRF), conforme análise do economista Dante Ricardo
Chianamea em sua tese defendida no Instituto de Economia (IE)
da Unicamp. Ele explica que a LRF não admite prejuízos a órgãos
do governo com este tipo de operação. A seu ver, a economia
tem ciclos (alta e baixa) e é preciso que o Banco Central
esteja preparado para reagir nos momentos de instabilidade,
realizando empréstimos de última instância, lastreados nos
mais variados títulos e operações de crédito produzidos pelo
sistema financeiro, e não apenas com autorização legal de
conceder apenas empréstimos garantidos por títulos públicos.
Chianamea declara que o Banco
Central brasileiro pode até conceder empréstimos a um banco
desde que este dê garantias sólidas, ou seja, títulos públicos.
Durante a crise, em 2008, passaram a ser aceitas outras garantias,
mas desde que fossem avaliadas pelo mercado como sendo de
alta qualidade. Para que o Banco Central tenha de fato a capacidade
de deter recessões mais profundas, é preciso que haja revisão
no artigo da lei que limita o empréstimo de última instância,
acredita o economista. Citando como exemplo o mercado imobiliário,
ele analisa que, em fase de crescimento, o volume de crédito
aumenta porque todos – inclusive quem concede crédito – estão
otimistas em relação às condições futuras da economia.
O valor dos imóveis, segundo
o pesquisador, vai subindo a tal ponto que esses bens não
podem mais ser comprados ou financiados com salários ou rendas
advindas da produção de outros bens. É neste momento que a
demanda diminui e o valor dos imóveis tende a se reduzir.
Essa redução leva novos investidores a se desinteressarem
e a demanda diminui ainda mais. “Esse ciclo vicioso causa
prejuízo a muitos agentes dos mais variados setores da economia,
mas que possuíam imóveis, causando uma recessão mais generalizada
e aumentando a inadimplência dos contratos de crédito”, explica.
Chianamea afirma que a crise
de 2008 e 2009 não atingiu o Brasil a ponto de o BC ter de
usar a função de prestamista de última instância, pois um
conjunto de outras ações foi suficiente para conter a turbulência.
Quem desempenhou a função de prestamista de última instância,
comprando créditos de bancos menores, foram o Banco do Brasil
e, em menor quantidade, a Caixa Econômica Federal, além do
Fundo Garantidor de Créditos (FGC). “Graças a eles, o BC não
precisou conceder esse tipo de crédito ao mercado. Mas se
ele precisasse, teria que alterar rapidamente a LRF, como
fizeram os EUA com leis ou normas que limitavam a atuação
do Fed”, diz.
Apesar
dos riscos que incorreria o BC, Chianamea acredita que o Banco
Central deve atuar como prestamista de última instância num
momento de crise. “Na atualidade, para enfrentar crises financeiras
e riscos, o Brasil, como uma economia monetária de produção,
precisa ter um banco central com capacidade de exercer essa
função”, complementa. Para ele, o papel do setor bancário
no período anterior a uma crise tem de ser repensado. Ele
acredita que a existência de bancos estatais tenha efeito
estabilizante, já que, ao contrário do banco privado, eles
não têm o lucro como objetivo principal e podem agir de maneira
anticíclica tanto antes quanto durante uma crise. Em relação
a entidades privadas de defesa da estabilidade, o autor enfatiza
que “a estabilidade econômica importa para a sociedade inteira,
não só para os bancos privados”.
A iniciativa, porém, é alvo
de polêmica, sobretudo por parte de atores sociais que se
posicionam contra o “socorro” a empresas (bancos) de iniciativa
privada, já que, nas boas fases econômicas, elas são beneficiadas
pelo lucro. “Nesses períodos, as pessoas consideram o sistema
privado eficiente, pois acompanham o lucro dos bancos e, quando
chega a crise, eles têm de ser socorridos por dinheiro público.
Ninguém quer dar dinheiro público para salvar empresas que
distribuíram lucros privados”, explica Dante. Mas a sociedade
fica refém, pois se não salvá-las, a crise nas empresas afeta
a economia em geral e, além dos acionistas e depositantes
de bancos, também o trabalhador, que acaba desempregado.
Chianamea explica que alguns
acham que o governo deve deixar quebrar as empresas ineficientes,
e outros que o governo não deve salvar empresas privadas.
Na sua opinião, a sociedade seria mais realista se assumisse
que o Estado sempre corre o risco de ter prejuízos nas crises
causadas por decisões tomadas pelo mercado. Ele lembra que
até mesmo Henry Paulson, secretário do Tesouro na gestão de
George Bush no início da crise, era radicalmente contra o
empréstimo de última instância, mas no auge do caos, disse:
“Sou contra, mas temos de fazer”. E apoiou a concessão de
crédito para salvar empresas e bancos privados da insolvência.
Trata-se de uma decisão altamente
controversa, segundo o pesquisador, mas tem sua lógica, pois
o governo sabe que, socorrendo o setor privado, evitará um
aprofundamento da situação de desemprego e, sem renda, os
clientes não teriam condições de pagar os créditos adquiridos
nas instituições financeiras. “Na verdade, apesar do risco,
o governo se rende por entender que o empréstimo de última
instância é necessário para conter a crise e que o país
depende inicialmente de investimentos públicos e, posteriormente,
de investimentos do mercado para se recuperar”, segundo
o pesquisador. O economista acrescenta que se for feito balanço
do fim de 2008, encontrará um EUA em situação difícil,
mas no fim de 2009, a avaliação será melhor, graças à
recuperação de parte dos empréstimos. “Quando um governo
age numa crise, ele substitui uma parte do que as empresas
privadas deixaram de investir. Muitas pessoas que ficariam
desempregadas, vão continuar a ter recursos para pagar suas
dívidas”.
De acordo com o economista,
o valor de um contrato de crédito está ligado à confiança
de que a dívida será paga, pois os bancos concedem créditos
baseados em avaliações de liquidez e de solvência de empresas.
Ele explica que em casos de iliquidez, os bancos podem possuir
um total de ativos em valor maior que suas dívidas, mas perderiam
recursos ao vender rapidamente ativos para pagar suas dívidas
mais imediatas. Já em casos de insolvência, o banco não possui
ativos suficientes para pagar todas as suas dívidas. Tanto
os casos de iliquidez quanto os de insolvência de bancos estão
ligados a avaliação de ativos que o mercado faz. E nos tempos
de crise a redução do número de negócios dificulta essas avaliações.
Ele explica que a perda de
liquidez de um banco é difícil de ser dissociada de sua insolvência.
Ao emitir depósitos bancários em troca de dívidas de empresas,
os bancos comerciais criam moeda, entretanto, como não há
certeza de que os compromissos serão pagos no futuro e como
os contratos de dívida são difíceis de serem vendidos, os
bancos exigem um prêmio de risco ao conceder crédito. Esses
prêmios de risco estão relacionados a estimativas de futuras
condições econômicas a que os emissores das dívidas podem
vir a ser submetidos. Se essas estimativas são partilhadas
com outros agentes financeiros, elas podem se tornar predominantes
no mercado e se transformarem no que se chama de convenção
financeira. O pesquisador esclarece que, enquanto existir,
a convenção tornará os ativos envolvidos mais líquidos assim
como também será considerado mais líquido o banco que mantém
esses ativos em sua carteira. Quando a convenção financeira
perde sua força, a dúvida sobre o valor dos ativos aumenta
e isso se transmite para o banco que os detem.
Governos
buscam reduzir instabilidade
Para tentar reduzir a instabilidade
nos mercados financeiros, os governos têm de estabelecer
normas de comportamento na concessão de créditos. Chianamea
explica que, desde o final dos anos 1980 até hoje, são aplicadas
normas de exigência de um capital mínimo para cobrir os
riscos a que os bancos se expõem. Apesar de não serem suficientes
para evitar as crises financeiras, mecanismos assemelhados
a esses são utilizados desde o século 19 como um esforço
para reduzir a frequência e a amplitude das crises.
O pesquisador enfatiza que
entre os motivos pelos quais essas normas não são capazes
de impedir todas as crises está o fato de essas restrições
serem transpostas por inovações financeiras e, também, porque
a implantação das normas restritivas é dificultada pela
existência de um longo debate sobre a eficiência ou ineficiência
dos mercados.
Nos EUA e na Grã-Bretanha,
o discurso recente tem sido favorável à eficiência dos mercados,
segundo ele. Como essas nações têm exercido papel central
na economia mundial, esses conceitos têm se disseminado
para os demais, segundo o economista. “Nesses países, tanto
as normas restritivas ao mercado quanto à necessidade de
um prestamista de última instância são fortalecidas após
as crises que se seguem a períodos de mais liberalidade”,
acrescenta.
Chianamea informa que as
normas norte-americanas historicamente deixam muitas áreas
do sistema financeiro livres de exigências e sem um prestamista
de última instância abrangente. Como exemplo, ele cita os
períodos do Free Banking (1837 a 1864), no qual havia poucas
regras a todo o sistema financeiro, e do National Banking
System (1864 a 1908), em que muitos bancos estaduais não
tinham exigências de capital nem de reservas monetárias.
Publicação:
Tese de doutorado “Empréstimos em última instância:
conceitos e evolução”
Autor: Dante Ricardo Chianamea
Orientador: José Carlos de Souza Braga
Unidade: Instituto de Economia (IE)
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