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A construção social do P-Mapa,
um medicamento brasileiro
Jornalista investiga
desenvolvimento de fármaco
concebido pelo médico Odilon da Silva Nunes
Isolamento no laboratório dá lugar à interação
e força-tarefa
Odilon,
um pesquisador não-acadêmico, preferiu trabalhar em silêncio
em seu laboratório particular, com escassas colaborações.
Mas, na opinião de Fioravanti, o isolamento o impediu
de avançar quando ele precisou de ajuda, apesar de ter
tido autonomia e o composto ter apresentado eficácia nos
testes preliminares em animais e seres humanos. Seu estilo
de trabalho, conforme o autor, havia divergido bastante
das regras coletivas de produção de conhecimento científico.
O que promoveu a retomada e a expansão da pesquisa com
o composto foi a criação de estratégias que valorizaram
as interações com outros especialistas e instituições.
Pesquisadores acadêmicos, instituições e médicos que seguiram
as regras habituais da produção científica avaliaram o
composto e lhe deram credibilidade científica e visibilidade,
segundo Fioravanti.
De acordo com o jornalista, uma primeira organização
não-governamental, o Cedecab, mostrou-se eficaz para reunir
pessoas, instituições e empresas interessadas em desenvolver
um medicamento no Brasil. Na terceira e atual fase do
percurso do composto, outra organização não-governamental,
Farmabrasilis, ampliou as colaborações com grupos de pesquisa
acadêmica e médica no Brasil e em outros países por meio
de uma proposta de uso amplo do medicamento, que inclui
a possibilidade de licenciamento sem cobrança de royalties,
resultado da flexibilidade no uso das patentes sobre o
composto.
O Cedecab e a Farmabrasilis funcionaram como força-tarefa
no desenvolvimento do P-Mapa, formando equipes temporárias
e concentrando esforços em ações específicas. “Uma força-tarefa
facilita o encontro e o surgimento de mediadores e é ela
própria uma mediadora, por transformar problemas e levar
outros à ação”, pontua Fioravanti. Segundo o jornalista,
essa estratégia tem sido aplicada internacionalmente para
diagnosticar precocemente câncer de mama e, no Brasil,
já foi comprovado como eficaz no tratamento contra tuberculose.
A estratégia baseada em força-tarefa ajudou a vencer
resistências e tensões entre produtores formais e informais
de ciência, além de otimizar o uso de recursos humanos,
materiais e financeiros limitados. Para Fioravanti, os
grupos de pesquisa e as ONGs mostraram que a flexibilidade
e a readequação dos arranjos organizacionais podem facilitar
a formação de grupos de trabalho, bem como a implantação
de políticas públicas de desenvolvimento científico e
tecnológico, em especial na área de fármacos.
O percurso do desenvolvimento do P-Mapa é um exemplo
de pesquisa coletiva, participativa e integrada. Os grupos
formais e as instituições privadas de apoio à ciência,
na opinião de Fioravanti, poderiam examinar com mais
atenção as possíveis contribuições de produtores
não-acadêmicos de conhecimento científico e tecnológico
e as situações ou objetos de estudo que saiam do habitual.
“O esforço pode ser recompensador”, acrescenta.
Do mesmo modo que o desenvolvimento do medicamento P-Mapa
extrapolou os muros da academia, o jornalista Carlos Henrique
Fioravanti extrapolou os limites das redações de jornais,
a partir da década de 1990, para descrever e ao mesmo tempo
analisar a trajetória desse fármaco. O medicamento começou
a tomar forma há mais de 60 anos, quando o médico Odilon da
Silva Nunes (1922-2001) decidiu criar uma molécula que com
o tempo se mostrou eficaz contra tumores e depois contra vírus
como o do herpes e microrganismos causadores de infecções
associadas ao vírus HIV. Não-saciado com as informações apuradas
ao longo de seu trabalho como jornalista, Fioravanti se plantou
dentro do laboratório e ao lado dos atores envolvidos em uma
rede criada pelo químico Nelson Durán, professor do Instituto
de Química (IQ) da Unicamp, e por Iseu Nunes, filho de Odilon
Nunes, para acompanhar de perto os fatos que permeiam a construção
social de um medicamento. Anos mais tarde, a investigação
jornalística transformou-se em pesquisa acadêmica, na qual
ele voltou a analisar o percurso do fármaco, foco da tese
defendida no Departamento de Política Científica e Tecnológica
(DPCT) do Instituto de Geociências da Unicamp, sob orientação
da professora Léa Velho.
A proposta do trabalho, segundo
o pesquisador, foi apresentar os diferentes modos de produção
de conhecimento, examinados principalmente por meio da Teoria
Ator-Rede (TAR), que considera a ciência uma construção social
coletiva resultante das negociações, conflitos, alianças e
interesses de grupos diversificados de atores, incluindo,
mas não se restringindo, aos cientistas.
A história é contada a partir
de 1911, com a fundação da cidade de Birigui, interior de
São Paulo, por um tio de Odilon, que Fioravanti teve a oportunidade
de conhecer pessoalmente em 1992. Aos poucos, o jornalista
conheceu também os outros pesquisadores que participavam voluntariamente
dessa pesquisa. “Encontrei um grupo de pesquisa diferente
de tudo que já tinha visto. Tanto em termos de medicamento
quanto no modo de fazer ciência. Vi a ciência em ação, constatei
o rigor dos mecanismos formais de legitimação científica,
conheci muitos pesquisadores (alguns cientistas) e jornalistas”,
conta.
O trabalho acompanhado pelo
jornalista uniu um grupo não-acadêmico já envolvido com as
pesquisas a outro formado por outros médicos e pesquisadores
de dentro e de fora do espaço acadêmico. Juntos, os grupos
avaliaram as propriedades do composto de acordo com as regras
convencionais de desenvolvimento de fármacos, ampliaram a
escala de produção e o aplicaram para tratar um grupo restrito
de pessoas com HIV/Aids. Na época, na década de 1990, programas
de televisão e reportagens de jornais e revistas apresentaram
o composto, então conhecido pela sigla SB-73, como “o remédio
brasileiro contra Aids”, até então uma doença ainda sem tratamentos
estabelecidos, contra a qual havia sido usado experimentalmente,
resultando na recuperação clínica de portadores de HIV/Aids.
Como
jornalista, ele entrevistou os pesquisadores, conheceu os
laboratórios em que trabalhavam, colecionou reportagens e
observou os momentos de exposição e de retração do trabalho
com o composto. De acordo com o autor, o grupo foi reorganizado
e ampliado e foram surgindo novas propostas de uso do medicamento,
focadas em doenças infecciosas, especialmente as mais comuns
em países pobres, como Aids e tuberculose.
Ao ingressar no DPCT, em 2006,
Fioravanti recomeçou a analisar o percurso da pesquisa de
modo mais aprofundado. Foi quando observou que a história
do P-Mapa (abreviação de agregado polimérico de fosfolinoleato-palmitoleato
de magnésio e amônio protéico) revela um estilo um pouco
mais brasileiro de fazer ciência. “Para poder estudar,
tive de ir além da investigação jornalística, avançando
para a esfera acadêmica. Ingressei no DPCT para poder me
aprofundar e analisar a construção social do medicamento”,
explica. O jeito mais brasileiro de fazer ciência, enfatiza,
é colocado em prática quando a pesquisa envolve a participação
de grupos heterogêneos de participantes, não apenas de cientistas
acadêmicos, e pode trazer benefícios de diferentes espécies
para muitos grupos de atores, até mesmo para os que não
participaram diretamente, cada um incorporando os desejos
do outro. “Não implica apenas produção de conhecimento
ou de bens materiais, mas também seu compartilhamento”,
acrescenta.
Ao tratar das quatro décadas
que o médico Odilon, num laboratório montado em sua casa,
em Birigui, dedicou à criação da molécula, ele mostra que
existe um estilo de fazer ciência sem a organização formal
imposta por órgãos avaliadores. A molécula foi arquitetada
enquanto Odilon cursava medicina na Universidade Federal do
Paraná (UFPR), em Curitiba. “Ele adotou uma forma peculiar
de fazer ciência, tinha método, plano de trabalho, mas não
era acadêmico. Não fazia paper. Se hoje é difícil escrever
um paper, imagine há 40 anos numa cidade do interior de São
Paulo”, reflete. Para o jornalista, Nunes foi uma prova de
que existem cientistas que trabalham sem a preocupação de
produzir papers, por ter iniciado o trabalho fora da academia.
Em
sua busca, o jornalista encontrou uma pesquisa que começou
no desejo de um médico, prosseguiu sob a liderança de um
químico, o professor Nelson Durán, e depois de um administrador
de empresas e advogado especializado em desenvolvimento de
medicamentos, Iseu Nunes. Todos, segundo ele, com competências
específicas suficientes para superar obstáculos e imprevistos.
Do mesmo modo que o trabalho
mudou de mãos quando necessário, embora mantendo os objetivos
iniciais, a molécula ganhou diferentes nomes e definições.
Sua estrutura química também passou por modificações com o
tempo. O nome do composto passou de Penicilon, fusão de penicilina
e Odilon, para SB-73 e depois para P-Mapa – e sua definição,
de antibiótico para imunomodulador e mais recentemente para
modificador de resposta biológica – à medida que a visão dos
especialistas sobre suas propriedades terapêuticas amadurecia.
Na sua opinião, as substituições de protagonistas e conceitos
permitiram a continuidade do trabalho.
Fioravanti compara a trajetória
de pesquisa e o desenvolvimento do P-Mapa à da penicilina
– descoberta durante a Segunda Guerra por Alexandre
Fleming –, pois ambos foram produzidos a partir de fungos
e resultam de pesquisas iniciadas por médicos. Em 2007, como
bolsista do Instituto Reuters, Fioravanti percorreu os espaços
de descoberta e desenvolvimento da penicilina, em Londres
e Oxford, com o propósito de retratar a diversidade de atores
que participaram da construção social de cada um deles e
as possibilidades de ampliação das redes estabelecidas em
torno dos dois medicamentos.
Neste
percurso, conversou com pesquisadores e empresários ligados
à pesquisa de medicamentos na Inglaterra. A cada nova resposta
à sua investigação, Fioravanti constatava que o fármaco
em desenvolvimento no Brasil apresentava um potencial maior
que o da penicilina. O medicamento, segundo o jornalista,
tem capacidade mais ampla, que permite agir contra outros
microrganismos e tumores. “O P-Mapa inclui a ação da penicilina,
que é a de um antibiótico, mas acrescenta ações mais eficientes
contra vírus e tumores”, acrescenta.
Cada etapa de desenvolvimento
do P-Mapa, segundo o autor, expressa formas distintas de organização,
com resultados igualmente distintos. Com a penicilina não
foi diferente, pois quando Fleming sai de cena, outros grupos
dão continuidade ao trabalho. Segundo Fioravanti, a penicilina
é a primeira ação coletiva e integrada de desenvolvimento
de fármacos no mundo.
Fleming também enfrentou a
resistência da academia, e sua pesquisa ganhou força após
receber o apoio de Howard Florey e Ernest Chain, da Universidade
de Oxford, que publicaram os achados e sistematizaram sua
produção. Naquele momento, soldados combatentes na Segunda
Guerra eram mortos mais por infecções que pelo combate, e
os Estados Unidos tinham interesse em financiar pesquisas
de novas drogas. De acordo com o pesquisador, a iniciativa
de produzir a penicilina também foi dos Estados Unidos, apesar
da origem londrina de seu criador. Assim como foram os primeiros
a fazer da penicilina um medicamento, os estadunidenses também
colaboram nas pesquisas com o P-Mapa.
Após toda a trajetória jornalístico-acadêmica,
Fioravanti conclui que os impasses, os desvios e os avanços
do desenvolvimento do P-Mapa indicam que o desafio de criar
medicamentos, além de dinheiro, implica integração, organização
e planejamento conjunto dos líderes de centros de pesquisa,
empresas e órgãos de governo em torno de objetivos claros
e comuns. “Sem conexões e sem mediadores que complementem
as competências e busquem alternativas às portas que se fecham,
o conhecimento dificilmente vence as paredes dos laboratórios
e tende a tornar-se oportunidade perdida.” Ele explica que,
do ponto de vista da Teoria Ator-Rede, os mediadores são indispensáveis,
pois transformam o significado do que carregam, diferentemente
dos intermediários, que apenas transportam informação, sem
gerar qualquer modificação ou ação.
A
molécula planejada pelo médico Odilon da Silva Nunes ganha
continuamente novas aplicações. Em testes realizados nos Estados
Unidos desde 2006, o P-Mapa havia apresentado resultados positivos
contra um vírus que reproduz os efeitos do vírus causador
da febre do Rift Vale, doença fatal comum na África subsaariana.
Em dezembro de 2008, como coordenador da ONG Farmabrasilis,
Iseu Nunes recebeu um e-mail de um dos coordenadores de pesquisa
do Instituto Nacional de Doenças Alérgicas e Infecciosas (Niaid),
uma das unidades dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH),
sediados em Bethesda, cidade próxima a Washington, Estados
Unidos, informando que o composto havia sido eficaz, mesmo
em doses baixas, para deter a ação de uma variedade bastante
agressiva de bactéria causadora de tuberculose em camundongos.
Esse resultado fortalece a perspectiva de usar esse composto
contra tuberculose e outras doenças infecciosas de difícil
controle, como Aids e malária, de acordo com Fioravanti. Segundo
o jornalista, foi essa a proposta que a Farmabrasilis apresentou
em um fórum internacional realizado no Rio de Janeiro em 2009,
com base também em outros estudos, que indicaram que o P-Mapa
é de uso seguro e versátil por reconstruir as defesas do organismo
em vez de atacar tumores ou microrganismos diretamente.
Testes clínicos já foram iniciados
De acordo com a tese, o
P-Mapa encontra-se em fase final de desenvolvimento. O fármaco
passou por testes pré-clínicos e chegou à etapa inicial
de testes clínicos, tendo apresentado toxicidade muito baixa.
Faltam os testes mais amplos
em seres humanos e a autorização das agências oficiais reguladoras
de medicamentos para que o P-Mapa complete o percurso de
desenvolvimento de fármacos e possa ser produzido em larga
escala e comercializado.
Fioravanti explica que a
pesquisa de novos medicamentos – da caracterização de um
composto químico até a aprovação para venda pelas autoridades
regulatórias – é uma tarefa arriscada, demorada e cara,que
pode ser dividida em duas etapas. A primeira é a descoberta
de uma molécula de interesse farmacológico, isolando-a de
planta ou animal, transformando-a a partir de outras moléculas
ou obtendo-a por processos químicos ou biotecnológicos.
A segunda é o desenvolvimento, que começa com os testes
pré-clinicos, em células (in vitro) e animais de laboratório
(in vivo), para avaliar principalmente a toxicidade e os
efeitos positivos, em diferentes dosagens.
As moléculas que apresentarem
toxicidade aceitável e efeitos biológicos promissores seguem
para os testes clínicos, primeiramente em grupos pequenos
de pacientes (fase 1) e depois em grupos maiores (fases
2 e 3), para avaliar a segurança, o potencial terapêutico
e provável dosagem mais efetiva do medicamento.
As novas moléculas têm de
apresentar resultados positivos nos estudos pré-clínicos
e nas três fases dos estudos clínicos para serem aprovadas
pelas autoridades regulatórias. Em média, apenas um novo
composto, de cada 100 mil a 1 milhão avaliados, cumpre todos
os requisitos para ser aprovado pelas agências regulatórias,
que permitem o início da comercialização e o retorno dos
investimentos feitos em seu desenvolvimento.
Artigo
FIORAVANTI, C. New Perspectives on Drug Development
in Developing Countries: a Case Study of the Brazilian
Compound P-MAPA. Oxford, UK: Reuters Institute for
the Study of Journalism, 2007 (Research paper).
Publicação: Tese de doutorado “A construção
de um medicamento no Brasil: a trajetória do fármaco
P-Mapa”.
Autor: Carlos Henrique Fioravanti
Orientadora: Léa Maria Leme Strini Velho |
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