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O cheiro do medo
Pesquisas do IB com olfato
de animais de laboratório
podem ajudar na compreensão do cérebro humano
Pesquisa
desenvolvida na Unicamp, na área de Biologia Molecular do
Sistema Nervoso, ilustra a capa da próxima edição da revista
Cell, um dos periódicos de maior impacto no campo da Biologia
Celular e Molecular. O artigo “The Vomeronasal Organ Mediates
Interspecies Defensive Behaviors through Detection of Protein
Pheromone Homologs” revela, por meio do estudo do sistema
olfativo, informações inéditas para a compreensão de como
determinados comportamentos são gerados pelo cérebro. De acordo
com o professor Fabio Papes, do Departamento de Genética,
Evolução e Bioagentes do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp,
um dos autores do artigo, apesar de se tratar de pesquisa
básica, os resultados são subsídios importantes para estudos
futuros na área médica destinados à compreensão de doenças
comportamentais humanas. Além de Papes, também assinam o artigo
os pesquisadores Darren W. Logan e Lisa Stowers, do Scripps
Research Institute, localizado em La Jolla, no estado americano
da Califórnia.
Experimentos feitos com camundongos
comprovaram, a partir de técnicas de Bioquímica, Biologia
Celular e Molecular, que células sensoriais olfativas são
capazes de detectar o odor associado a uma proteína conhecida
como MUP (Major Urinary Proteins), encontrada na pele, nos
pelos, na urina, na saliva e em outras secreções corpóreas
de predadores, provocando comportamentos defensivos de medo
em espécies de animais que são presas daqueles predadores.
Em um dos experimentos realizados
no estudo, quando camundongos normais são simplesmente expostos
aos odores de predadores, comportamentos de medo são gerados
nesses animais. Essas respostas foram diagnosticadas a partir
do acompanhamento de vários efeitos nas presas, incluindo
ritmo de batimentos cardíacos, taxa respiratória, características
de locomoção e posicionamento na gaiola, além da liberação
de hormônios de estresse. “Isso acontece para odores de várias
espécies de predadores, como gatos, ratos, cobras, raposas,
entre outras”, acrescenta Papes. Um aspecto importante é que
tais respostas são inatas, por não dependerem de experiência
prévia, o que, segundo o pesquisador, indica que o cérebro
de camundongos é preparado geneticamente para gerar tais comportamentos.
Outro experimento, em que
os próprios predadores, anestesiados e depois introduzidos
no ensaio, são utilizados como estímulo, resultou em comportamentos
inatos de medo muito substanciais por parte dos camundongos.
No entanto, de maneira surpreendente aos pesquisadores, camundongos
mutantes – produzidos nos Estados Unidos e trazidos para o
Brasil por Papes – nem se dão conta da presença dos predadores
e, em vídeo gravado pelos cientistas, são vistos repousando
sobre eles durante o experimento.
O
professor explica que nesses animais mutantes, um pequeno
e enigmático órgão sensorial presente no nariz de vertebrados,
o órgão vomeronasal, não é ativo, pois não há a presença de
uma proteína essencial para que os neurônios sensoriais desse
órgão funcionem. Já que essa é a única mudança nos animais
mutantes, Papes afirma que tal experimento forneceu forte
evidência de que os odores de predadores que geram medo são
detectados pelo órgão vomeronasal. Segundo o professor, curiosamente,
seres humanos também possuem o mesmo órgão na cavidade nasal.
“Na verdade, o órgão foi identificado primeiramente em nossa
própria espécie, há quase 200 anos, porém, os estudos moleculares
e funcionais do órgão vomeronasal em humanos são ainda imaturos
e preliminares”, afirma.
Ao avaliar as regiões do cérebro
envolvidas com o sistema olfativo, os pesquisadores observaram
que em animais normais tais regiões são fortemente ativadas
quando há exposição aos odores de predadores. Nos mutantes,
no entanto, nenhuma das células foi ativada. “Nesse caso,
não há comportamento, detecção e não tem ativação do cérebro”,
enfatiza o professor.
Medo
Depois das evidências com
o órgão vomeronasal, os pesquisadores embarcaram em uma busca
às moléculas liberadas pelos predadores capazes de gerar comportamentos
de medo em camundongos. Utilizando uma combinação de métodos
moleculares, Papes e colaboradores chegaram à comprovação
de que os odores envolvidos são na verdade proteínas pertencentes
à família de MUPs. Originalmente, os pesquisadores purificaram
esse estímulo a partir da urina de ratos, mas depois demonstraram
que proteínas semelhantes de outros predadores, como gatos,
também produzem o mesmo efeito de medo em roedores de laboratório.
Além da identificação das
proteínas e do órgão que detecta tais estímulos sensoriais,
Papes afirma que o projeto trouxe a compreensão de um outro
aspecto fundamental desse sistema. Por meio de uma análise
detalhada da ativação de grupos de neurônios no órgão vomeronasal,
foi comprovado que as células que respondem aos odores dos
predadores não são as mesmas que respondem a outros odores
capazes de gerar comportamentos, como os feromônios de agressividade,
de comportamento sexual ou de cuidado maternal. “Sendo assim,
o sistema olfativo já é geneticamente programado para responder
adequadamente a odores com diferentes qualidades”, pontua.
O
trabalho aponta para a conclusão de que algumas células possuem
receptores que detectam as proteínas capazes de gerar respostas
de medo. Outras possuem receptores que detectam moléculas
que induzem agressividade. Outra descoberta é que esse sistema
de medo funciona especificamente para o fim de gerar respostas
defensivas em animais. A partir desses traços, os pesquisadores
pretendem dar continuidade à pesquisa para identificar os
receptores moleculares envolvidos em cada caso e, principalmente,
saber de que maneira o cérebro interpreta as informações detectadas.
Como as áreas do cérebro que
respondem a essas proteínas de medo são as mesmas que respondem
a situações de medo no ser humano, estudá-las no modelo animal
é um caminho para entender a gênese de distúrbios comportamentais
relacionados ao medo em seres humanos, para Papes. “Ainda
não estudamos maneiras para tratar essas doenças, mas fazemos
pesquisa básica que levará à compreensão detalhada de como
o cérebro funciona para gerar o comportamento. Um dia será
possível modular tais comportamentos com base nesses resultados.
Trata-se de uma descoberta importante para a área médica”,
segundo Papes.
O professor lembra que o número
de pessoas com doenças comportamentais ou que fazem uso de
drogas para modular comportamentos é bastante significativo
em nossa sociedade. Estima-se que três em cada dez pessoas
tomem medicamentos para modular, tratar ou controlar problemas
comportamentais nos EUA. Os casos variam de efeitos simples
até condições graves. Segundo o professor, os seguintes exemplos
são relacionados em maior ou menor grau aos comportamentos
estudados na pesquisa: fobias, síndrome do pânico, estresse
pós-traumático (PTSD), além de alguns aspectos da esquizofrenia
e do autismo. Em uma relação interessante, ele acrescenta
que pessoas que não possuem olfato têm tendência à depressão
e são mais suscetíveis a uma série de distúrbios e disfunções
comportamentais.
O sistema olfativo foi escolhido
para o estudo publicado na Cell porque os comportamentos
são gerados nos camundongos de maneira inata, na presença
de odores de outras espécies. Papes esclarece que a importância
do olfato no comportamento em animais é inegável, mas, em
humanos, onde o sistema visual tem maior importância, a olfação
adquiriu papel secundário. No entanto, diferentemente da
maioria das respostas em sistemas sensoriais humanos, existe
uma relação muito direta entre estímulo e comportamento
no sistema olfativo de animais-modelo, pois quando a resposta
é inata há pouca interferência da memória e do aprendizado.
Ademais, de acordo com o professor, “é um modelo essencial
para estudar as propriedades integrativas sensoriais do sistema
nervoso de mamíferos”.
As pesquisas realizadas no
passado restringiam-se ao estudo dos feromônios, que induzem
respostas comportamentais estereotípicas, ou seja, comuns
entre todos os indivíduos da mesma espécie. Hoje, porém, com
o advento da biologia molecular, os cientistas têm a capacidade
de estudar esse aspecto focando nos genes relacionados a comportamentos
específicos. “Estamos estudando de que maneira nosso genoma
prepara nosso organismo para responder ao mundo. Quando estudam
essa transformação de estímulo sensorial dentro do cérebro
para gerar comportamentos, os neurobiologistas estão interessados
em qualquer aspecto dessas transformações, desde o que ocorre
nos órgãos sensoriais, até como o cérebro interpreta o mundo”,
reforça Papes.
Papes explica que, do ponto
de vista dos sistemas sensoriais, os estímulos só existem
fora do organismo, sejam eles fótons de luz, ondas sonoras,
ou moléculas, como no caso do sistema estudado por ele. De
alguma forma, o sistema nervoso detecta essas informações
e as transforma em atividade elétrica dentro do cérebro, o
único elemento que existe à disposição do sistema nervoso
para representar e interpretar o que está fora do organismo.
“Não existem as moléculas, a luz, os sons dentro do organismo,
dentro do cérebro. O cérebro transforma aquela energia que
existe fora em atividades elétricas dentro dos neurônios.
Esse aspecto também foi interessante para vermos como a transformação
de moléculas em estímulos elétricos se dá dentro do sistema
olfativo. E por último, procuramos entender como o comportamento
é gerado, ou seja, por que essa via neural resulta num comportamento
de medo e não em um comportamento de cópula ou agressividade”,
explica.
Segundo o autor, quando o
projeto começou no Scripps Research Institute, já existia
uma quantidade substancial de estudos indicando que comportamentos
de medo eram gerados em camundongos e ratos na presença de
odores de predadores. Eles revelavam que algumas espécies,
ao apresentar comportamentos defensivos, estavam de fato defendendo-se
de uma situação adversa. Os trabalhos que trouxeram esses
dados não foram realizados por biologistas moleculares, mas
por etologistas – estudiosos do comportamento animal –
sendo cruciais naquele momento inicial, pois mostraram que
o comportamento era gerado de maneira inata, sugerindo uma
organização pré-programada do sistema nervoso. “Se o
organismo responde de maneira inata a um estímulo, é porque
ele já é preparado geneticamente para responder a esse estímulo”.
As informações constantes
desses estudos preliminares indicaram que genes do genoma
preparam as células neuronais, os conjuntos de células,
e o sistema nervoso como um todo para responder àqueles estímulos
e gerar comportamentos de maneira adequada. Tal fato tornou
o estudo molecular muito mais fácil. “Quando sabemos que
já existe um sistema pré-programado geneticamente, podemos
desenvolver a investigação utilizando métodos de biologia
molecular”, completa o autor.
Investimento
Para Papes, que estuda a olfação
desde o pós-doutorado na Universidade de Harvard, EUA, o estudo
molecular do sistema olfativo provou ser um excelente modelo
para compreender como o cérebro é organizado. Pesquisas como
essa que deu origem ao artigo publicado na Cell explicam por
que o investimento em estudos do sistema olfativo tem se intensificado
em todo o mundo, inclusive no Brasil. A parte desse trabalho
desenvolvida na Unicamp recebeu apoio da Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Fundo de Apoio
ao Ensino, à Pesquisa e Extensão (Faepex), da Pró-Reitoria
de Pesquisa da Unicamp.
De acordo com o professor,
desde 2004, após a concessão do Prêmio Nobel de Medicina/Fisiologia
a dois pesquisadores na área de olfação, a comunidade científica
tem dado muita atenção ao estudo molecular olfativo. Além
disso, a publicação de pesquisas desta área em grandes
revistas científicas também tem sido intensificada. Segundo
Papes, “muitos pesquisadores da área estudam agora o sistema
olfativo de insetos, pois a modulação da olfação é um
importante alvo biotecnológico para o controle de populações
de pragas, parasitas e vetores transmissores de doenças,
como atestam publicações recentes nas revistas Nature
e Science”.
Artigo
Papes et al.: “The Vomeronasal Organ Mediates Interspecies
Defensive Behaviors through Detection of Protein Pheromone
Homologs.” Publishing in Cell 141, 692–703,
May 14, 2010. DOI 10.1016/j.cell.2010.03.037
Financiamento: Fapesp e Faepex
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