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Adição de CO2 melhora estabilidade
do leite UHT, conclui estudo da FEA
Dióxido de carbono inibe
proliferação de micro-organismos em etapa de produção
Estudo de doutorado desenvolvido na Faculdade de Engenharia
de Alimentos (FEA) conclui que a conservação do leite cru
com dióxido de carbono (CO2) pode melhorar a estabilidade
do leite UHT, que responde hoje por 75% do leite fluido consumido
no Brasil. Isso porque o CO2 inibe micro-organismos na etapa
de resfriamento que vão causar defeito no produto, além de
prevenir a sua gelificação, que é o início de sua deterioração
físico-química e um dos maiores obstáculos para a sua qualidade,
segundo a autora da pesquisa, Priscila Cristina Bizam Vianna.
A gelificação é o processo
em que o leite forma um gel no fundo da caixa, perdendo inclusive
a sua fluidez. Isso acontece em geral durante a vida de prateleira
do UHT. A legislação brasileira, no entanto, proíbe a adição
de quaisquer produtos ao leite cru. A justificativa contra
a adição é que ela é considerada uma fraude. O trabalho, realizado
entre 2008 e 2010, foi orientado pela docente da Faculdade
Mirna Gigante e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (Fapesp).
Na investigação, a engenheira
de alimentos trabalhou com a avaliação do leite cru e do longa
vida (UHT). O leite cru foi armazenado em tanques de expansão,
simulando uma situação semelhante à que ocorre com produtores
de leite de entrepostos de armazenamento. O leite foi armazenado
por seis dias, sob duas condições: uma com adição de CO2 e
outra sem adição, a uma temperatura de 4ºC, que é a indicada
para conservação do leite.
Decorrido esse tempo, o leite
foi processado como leite UHT, que tem em sua composição 3%
de gordura, 2,5% de proteínas, 12% de sólidos totais e 85%
de água, sendo obtidas duas amostras para avaliação físico-química
e do comportamento da vida de prateleira durante 120 dias.
“Esta vida de prateleira foi estipulada com base no que é
praticado no mercado, sendo contada a partir da data do seu
processamento”, relata Vianna.
Os experimentos da tese não
foram feitos em embalagens cartonadas, por não se dispor deste
tipo de envase. “Trabalhamos com sacos plásticos de polietileno,
como os usados para o leite pasteurizado, porém com o envase
asséptico, que mantém a esterilidade deste produto como se
ele estivesse numa caixa de leite UHT”, descreve Vianna.
O
que faz o leite UHT ser o mais consumido no Brasil, aponta
ela, é que ele não somente consegue ser conservado em temperatura
ambiente, mas também tem uma vida de prateleira maior. Comparando-se
o leite UHT com o leite pasteurizado, em que a vida de prateleira
é de no máximo dez dias, Vianna atesta que este último não
é a realidade do mercado nacional. “O leite UHT entrou com
grande força no mercado na década de 90, pois não tem necessidade
de ser conservado na geladeira”, constata Mirna. Ele respondia
por uma pequena fatia do mercado: 4%. Hoje detém quase 80%.
É um crescimento elevado em sua avaliação, justamente porque
o tratamento térmico aplicado a esse produto, desde que embalado
adequadamente, permite a sua conservação por até 180 dias.
Micro-organismos
Teoricamente, é sabido que
o dióxido de carbono pode ser empregado no leite cru para
inibir o desenvolvimento de micro-organismos. Quando adicionado
ao leite, ele abaixa o seu pH. No processo desenvolvido por
Vianna, o CO2 é eliminado do leite antes do processamento
e após a conservação, voltando ao seu pH normal. “O leite
normal apresenta uma faixa de variação de pH entre 6,7 e 6,8.
Então abaixamos dessa faixa para um pH 6,2”, relata Vianna.
Para a legislação, a adição
do CO2 ao leite cru se caracteriza mesmo como uma fraude,
embora seu uso não prejudique a saúde, uma vez que é eliminado
no processo. Não significa que o produto não se conserve,
afirma Mirna. O que está em jogo é a sua ilegalidade. “O uso
da água oxigenada, por exemplo, foi uma fraude descoberta
no leite cru. Os fraudadores ainda incluíam no produto citrato,
açúcar e sal. Foi a chamada operação Ouro Branco”, alude-se
Mirna, relembrando o episódio recente. O objetivo era aumentar
o volume do produto, o prazo de conservação e a recuperação
do leite impróprio para o processamento.
O trabalho desenvolvido na
FEA, conta Vianna, teve apenas finalidade de pesquisa, seguindo
condições de planta piloto. Isso porque o dióxido de carbono
é uma opção para a conservação do leite de “boa qualidade”.
Ela acredita, entretanto, que a legislação sobre o tema possa
avançar, particularmente se houver interesse da indústria.
É algo viável, apesar de não ser novidade. “O que não existe
na literatura é a produção do leite UHT obtido pelo leite
cru conservado pelo dióxido de carbono. Este foi o diferencial
do trabalho da Priscila”, lembra Mirna.
O dióxido de carbono já é
reconhecido como um conservante empregado para outras situações.
É o mesmo dióxido presente no refrigerante (só que não sob
pressão). Logo, não há nenhuma proibição neste sentido, exceto
quanto à adição de dióxido de carbono em leite cru. “A grande
dificuldade na obrigatoriedade do resfriamento do leite –
e aqui não estamos legislando contra ele, isso porque o resfriamento
é a melhor maneira de conservação – é que o leite resfriado
por muito tempo pode levar ao desenvolvimento de micro-organismos
como os psicrotróficos, que crescem em leite frio, a 7°C”,
comenta Mirna, “e vão causar defeito no produto depois de
processado, lá na prateleira do supermercado”.
O dióxido de carbono, menciona
ela, serve para inibir a proliferação destes micro-organismos.
“O CO2 é adicionado ao leite cru, conserva o produto, é expulso
antes do processamento e resulta num produto processado de
vida útil maior. Vale como um ajudante deste processo.” Um
dos principais impedimentos para a vida de prateleira do produto
processado é a qualidade do leite cru e, quando se trabalha
com uma matéria-prima de baixa qualidade, é certo que não
terá uma vida de prateleira longa sem que ocorram defeitos
nesse produto.
A contaminação pelos micro-organismos
psicrotróficos vem das más condições de higiene durante a
ordenha e do armazenamento inadequado do leite, expõe Vianna.
“São os tanques mal-higienizados, inclusive com resíduos de
água de lavagem. Esses micro-organismos vão se desenvolvendo
aos poucos, contaminando o leite e, especialmente, produzindo
enzimas que não são destruídas no tratamento térmico. E continuam
atuando nos produtos processados.”
Gelificação
A gelificação do leite UHT
começa como um espessamento, aumentando a sua viscosidade.
Ele vai perdendo a sua fluidez e as suas características originais,
deteriorando-se por aspectos físico-químicos, não microbiológicos.
“E o que os consumidores esperam, ao abrir uma caixa de leite
longa vida, é que ele esteja fluido – não com uma viscosidade
própria dos iogurtes.”
O tempo para a gelificação
não é algo pontual, discute Mirna, e não existe uma resposta
na literatura sobre o momento exato da sua ocorrência. O problema
depende do tipo de contaminante, sobretudo os psicrotróficos.
Os mais observados são as Pseudomonas spp., particularmente
P. fluorescen de diferentes cepas. As enzimas produzidas por
esses micro-organismos provocam a desestabilização da proteína,
o que resulta no seu rearranjo e consequente gelificação.
“É uma microbiota complexa. Se fosse apenas um micro-organismo
isolado, seria fácil de controlar”, relativiza Mirna.
Esse tempo, refere a orientadora,
está descrito na literatura como provavelmente relacionado
à qualidade da matéria-prima: quanto melhor for ela, maior
será a sua vida de prateleira posterior. Como o produto é
comercialmente estéril, não tendo micro-organismos ou esporos
no leite UHT, posto que ele sofre a ultra-alta temperatura
que os destrói, ele é estável do ponto de vista microbiológico.
O que limita a sua vida de prateleira são as alterações físico-químicas,
especialmente a gelificação.
Em visita técnica realizada
a uma indústria, Mirna perguntou aos dirigentes por que eles
não davam seis meses de vida de prateleira, levando em conta
que cumpriam as condições ideais de produção? A resposta foi
que, se houver o problema da gelificação, o leite já estará
comercializado. “Então a gelificação acaba sendo um limitante
para a indústria, e o início desta limitação está na base
da cadeia”, revela. “O processo não faz milagre. Ele até conserva
a matéria-prima, contudo, se resfrio leite cru de boa qualidade,
vou ter no tanque leite resfriado de boa qualidade. Se resfrio
leite de qualidade ruim, eu tenho um leite de qualidade ruim
resfriado. Assim sendo, a qualidade do produto final começa
no início da cadeia produtiva, na produção primária do leite.”
Desde o estabelecimento da
Instrução Normativa 51/2002 do Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento (Mapa), que passou a vigorar em 2005,
o leite cru tem sido sistematicamente avaliado em todo o território
nacional, através de vários laboratórios de referência espalhados
pelo Brasil. O país figura como o sexto produtor de leite
do mundo e, de acordo com Mirna, ele está cuidando da sua
qualidade. O Brasil está inserido no seleto grupo de dez países
que produz 50% do leite mundial.
Laboratório presta serviços
Na Unicamp, o Laboratório
de Leite e Derivados da FEA fornece consultorias e atende
empresas que enfrentam problemas como os da gelificação.
Essa tarefa é realizada de rotina há mais de dez anos, existindo
inclusive uma área de prestação de serviços aberta pela
Fundação de Desenvolvimento da Unicamp (Funcamp). Sempre
que aparece esta demanda, os pesquisadores do Laboratório
a atende. Houve época, recorda Mirna, que se avaliou muito
o leite pasteurizado. A demanda atual é o leite UHT.
Esse Laboratório está situado
no Departamento de Tecnologia de Alimentos e se destina
a atividades de pesquisas, ensino e extensão na área de
leite e produtos lácteos em geral. Docentes e alunos de
iniciação científica, mestrado e doutorado desenvolvem investigações
relacionadas à qualidade físico-química e microbiológica
do leite cru e processado, produtos lácteos fermentados
e queijos, otimização de processos da indústria láctea,
tecnologia de membranas e funcionalidade de produtos lácteos.
O Laboratório atende ainda empresas privadas para elaboração
de projetos, realização de análises físico-químicas e microbiológicas,
bem como para fabricação de diferentes produtos lácteos.
Publicação:
Tese de doutorado “Adição de dióxido de carbono ao leite
cru: efeito sobre a qualidade e vida de prateleira do
leite UHT”
Autora: Priscila Cristina Bizam Vianna
Orientadora: Mirna Gigante
Unidade: Faculdade de Engenharia de
Alimentos (FEA)
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