Pesquisadores da Faculdade de Odontologia de Piracicaba
(FOP) inauguraram recente- mente um novo tipo de abordagem
aos seus pacientes, levando a “clínica” até eles. Trata-se
de um programa de busca ativa de lesões bucais com vistas
à detecção do câncer de boca, usando a mesma estrutura da
campanha anual de vacinação da gripe nas Unidades Básicas
de Saúde (UBS), onde atua a Unidade de Saúde da Família
(USF). A iniciativa, incentivada pelo Ministério da Saúde,
coloca a FOP no front das ações preventivas do câncer de
boca em Piracicaba. O projeto piloto está sendo desenvolvido
em quatro USF localizadas nos bairros de Itapuã 2, Paineiras,
Santa Rosa e Vila Industrial – intervenção resultante do
estudo de mestrado do dentista Marco Aurélio Carvalho de
Andrade, orientado pelo docente Márcio Lopes, especialista
em Diagnóstico Bucal.
O
orientador da dissertação percebeu, ao longo de uma década,
que a detecção do câncer de boca em Piracicaba era feita
de maneira deficitária, em razão de um desencontro entre
quem é atendido (geralmente mulheres idosas sem fatores
de risco para câncer de boca) e quem deveria ser atendido
(adultos acima de 40 anos que fumam e consomem bebidas alcoólicas).
“Então, ao invés de esperar esses pacientes procurarem a
campanha de prevenção do câncer de boca junto com a campanha
de vacinação da gripe, fomos até os postos de saúde próximos
de onde os pacientes residiam e, através de agendamentos
prévios dos pacientes das USF, programamos exames rotineiros”,
informa.
A população que vive nas regiões do projeto piloto, dimensiona
Márcio Lopes, corresponde a um contingente de 12 mil habitantes,
sendo que, no cadastro, 800 deles preencheram os critérios
de inclusão para o estudo de Andrade. Eram pacientes com
idade acima de 40 anos, que fumam ou fumavam e que ingerem
ou ingeriam bebidas alcoólicas no decorrer de sua vida.
O trabalho aconteceu e está sendo expandido para outras
USF e UBS da cidade, objetivando contemplar ao redor de
35 postos de saúde do município.
O objetivo era atender o total dos pacientes mas, por uma
série de pro blemas, principalmente pela falta de comprometimento,
apenas 125 estão em acompanhamento na FOP, o que é muito
frustrante, na opinião do dentista. “Hoje estamos indo até
a residência do paciente junto com os agentes de saúde
para tentarmos convencê-lo a permitir que realizemos o exame
de boca”, revela Márcio Lopes.
Dos 125 pacientes em seguimento, garante o dentista, quase
a metade apresentou alguma lesão de boca, número expressivo
de acordo com o especialista. As mucosites – inflamações
em geral associadas a próteses antigas, sem a devida higienização
– foram o principal tipo de lesão encontrada. “É que muitos
têm o hábito de dormir com as próteses, ocasionando inflamações
na mucosa da boca.” Outras lesões decorreram de trauma de
prótese e de tumores.
Se a estratégia da FOP fosse somente se concentrar em tumores,
a porcentagem de atendimentos seria muito reduzida. Daí
a importância de avaliar todas as lesões. Entretanto, dos
125 pacientes atendidos, quatro foram diagnosticados com
tumor, o que dá uma porcentagem de 3,2%. “É alta quando
comparada a outras campanhas, que em geral fica em torno
de 0,05%. Numa campanha de curto período de tempo, identificar
3,2% é uma porcentagem significativa”, aponta o dentista.
Para implantar o programa, lembra ele, foi adotada a mão
de obra dos alunos de pós-graduação, envolvidos no treinamento
dos dentistas dos postos de saúde. Isso tudo ocorreu vinculado
à dissertação de mestrado de Andrade, iniciada em 2008,
com levantamento de pacientes nas quatro UBS e busca ativa
das lesões. Já se estuda a mudança do nome da campanha.
Ao invés de Campanha de Prevenção de Câncer de Boca, o foco
será na detecção de lesões, a fim de promover a saúde bucal
do paciente.
Problemática
O câncer de boca incide em cerca de 14 mil casos novos
por ano no Brasil e de 400 mil no mundo todo. Ele começa,
realça o dentista, com uma ferida clássica que no início
é assintomática. Esta, aliás, é a lesão principal para a
qual o paciente deve estar atento, alerta. No entanto, outras
formas também podem se manifestar, como manchas brancas
e vermelhas, que indicam que se trata de casos ini- ciais
de câncer. As aftas, ao contrário, são lesões comuns que
nada têm a ver com o câncer. “Na realidade, alguns pacientes
com câncer de boca vão ao consultório pensando que têm afta.”
Um fator preditivo de câncer, ensina Márcio Lopes, reside
em empregar o tempo de evolução da lesão para chegar ao
diagnóstico. A afta dura no máximo uma semana. Se demorar
mais tempo para sumir, ao redor de duas semanas, provavelmente
deve ser outra lesão. Esta é uma informação importante,
distingue o especialista.
Caminhando
já para o tratamento do câncer de boca, ele vai depender
de alguns aspectos, pontua o orientador do trabalho. Os
mais importantes são estadiamento clínico (o tamanho do
tumor, se é localizado ou se espalhou para outros órgãos,
sobretudo linfonodos e pulmões), localização (se ele ocorre
numa região de lábio inferior ou de língua) e as condições
clínicas do paciente. Agora, normalmente, o tratamento é
cirúrgico em casos iniciais, e cirúrgico mais radioterápico
em casos mais avançados. No câncer de boca, a quimioterapia
tem uso mais restrito, principalmente quando a cirurgia
não é indicada.
No que tange à sobrevida, para pacientes com lesões precoces
menores que 2 cm, tratados adequadamente, as chances de
recuperação batem à casa dos 95% em cinco anos. “Por isso
o valor dessa campanha em detectar o câncer mais precocemente,
já que a maior parte dos pacientes do nosso serviço vêm
em estágio avançado da doença. As cirurgias, nesse caso,
são mutilantes e causam mais sequelas, maior custo e menor
sobrevida”, contextualiza Márcio Lopes.
O paciente com câncer de boca vivencia vários problemas,
mormente a dificuldade de assumir fatores de risco. É sabido
que, para câncer de boca, fumo e bebidas alcoólicas, a maioria
das vezes destiladas, são deletérias para este tipo de câncer.
E o pior é que aqueles que desenvolvem esta doença têm grande
resistência em parar de fumar ou de beber, o que faz com
que apresentem possibilidades aumentadas de ter outros tumores.
Outra problemática envolve aceitar o tratamento em estágios
avançados, quando são requeridas cirurgias mais extensas,
que poderão afetar a fala e a deglutição.
O procedimento cirúrgico para câncer de boca, refere Márcio
Lopes, é efetuado pelo médico especialista em Cirurgia de
Cabeça e Pescoço. A atuação do dentista é mais anterior,
na fase do diagnóstico, e posterior, para o controle dos
efeitos do tratamento em boca e reabilitação do paciente,
a priori quando há colocação de próteses.
Os resultados deste programa da FOP são ainda preliminares,
ressalva o dentista. “Contudo, gostaríamos que essa iniciativa
se difundisse no serviço público da cidade e, consequentemente,
os dentistas, os agentes de saúde e os médicos envolvidos
nas USF motivassem outros pacientes.”
Segundo o especialista, são raros os relatos de câncer
de boca em crianças. Isso porque, quando se fala do câncer
de boca, o que está sendo considerado é o carcinoma espinocelular,
um tipo específico causado pelo alcoolismo e pelo tabagismo,
ou seja, tem íntima rela- ção com a exposição a esses fatores
de risco, ditos epidemiológicos.
Na FOP, uma linha de pesquisa, também coordenada pelo
professor Márcio Lopes, avalia o câncer de boca em pacientes
jovens, abaixo de 40 anos. A propósito, um estudo de doutorado
recente correlacionou esse grupo de pacientes com pacientes convencionais com câncer de boca, acima de 40 anos,
que fumam e bebem. “Identificamos que pacientes jovens
com câncer de boca têm outro perfil. Geralmente não fumam
e não bebem, são mulheres e o tumor é localizado na língua”,
sinaliza.
Outra tese de doutorado, defen- dida no ano passado, trabalhou
com pacientes com lesões pré-malignas que tinham risco de
se transformar em câncer. Em andamento, uma tese de mestrado
compara o resultado da busca ativa com os resultados já
obtidos ao longo dos dez anos em que é feita com a campanha
de vacinação da gripe. Outras ainda estão sendo produzidas
nos centros de oncologia para avaliar os efeitos colaterais
da radioterapia em pacientes com câncer de boca, todas orientadas
por Márcio Lopes.
O especialista relata que hoje também especulam-se alguns
alimentos que têm íntima relação com o câncer de boca. O
chimarrão parece ter efeitos prejudiciais à saúde bucal,
com risco de desenvolvimento desta doença. Só que tal risco
é mínimo tendo em vista os fatores tradicionais. Igualmente
o consumo contínuo de carne vermelha, feita em churrasco,
parece aumentar esse risco.
De outra via, algumas pesquisas mostram os benefícios das
frutas vermelhas e amarelas, pela ação do betacaroteno,
e do tomate, em razão do licopeno, que são fatores que protegem contra este tipo de câncer. “Eli- minar fatores de
risco principalmente cigarro e bebidas alcoólicas, junto
ao consumo de uma dieta equilibrada, rica em frutas, legumes
e verduras, é isso que chamo de minimizar risco para câncer
bucal”, define o dentista.
A expectativa é que a implantação do programa de busca
ativa integre as ações dos postos de saúde e que os exames
sejam feitos de maneira mais contínua pois, no prazo de
um ano, situa o orientador, o paciente tem totais condições
de desenvolver um tumor maligno, ação que ajudaria a identificar
as lesões iniciais. Deste modo, os dentistas e os agentes
de saúde estariam treinados para atender e a FOP continuaria
como referência para confirmação do diagnóstico. “Atuaria
como uma malha distribuída na cidade, nos postos de saúde.”
Os pacientes seriam atendidos nesses postos e lesões suspeitas
seriam encaminhadas para o serviço da FOP, onde o diagnóstico
seria realizado. “A gente daria sequência analisando os
efeitos colaterais à reabilitação do paciente”, comenta
Márcio Lopes. O diagnóstico do câncer de boca é feito mediante
exame clínico, identificando-se as lesões suspeitas, confirmadas
por biópsia, em que parte do fragmento da lesão é removido
e analisado.
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■ Publicação
Dissertação: “Busca ativa de lesões malignas e
desordens potencialmente malignas da cavidade bucal em quatro
unidades de saúde da família (USF) na cidade de Piracicaba”
Autor: Marco Aurélio Carvalho de Andrade
Orientador: Márcio Lopes
Unidade: Faculdade de Odontologia
de Piracicaba (FOP)