Os gráficos são imagens coloridas usadas
apenas para ilustrar algumas páginas dos livros didáticos.
Errado. Os gráficos fazem parte de um conteúdo que deve
ser integralmente transmitido ao aluno, portanto, é importante
que a escola trabalhe a formação desse leitor de gráficos.
E isso vai além da decodificação, da identificação pura
e simples de seus elementos básicos e da busca de informações,
na opinião do físico Edson Roberto de Souza. “Trata-se de
pensar a formação de um leitor crítico de gráficos, que
não se submeta à sua informação como se ela fosse uma verdade
absoluta, mas que o compreenda em seu contexto discursivo
de produção”, ressalta Souza. Um perfil de leitor de gráfico
subentendido pela escola pode ser encontrado nas características
de alguns gráficos que “ilustram” várias questões do Enem,
de acordo com pesquisa de mestrado desenvolvida pelo físico
Edson Roberto de Souza, no Instituto de Geociências (IG)
da Unicamp.
Várias questões sobre aquecimento global
analisadas pelo físico, inseridas nos exames de 1998 a 2008,
revelaram aspectos como falta de coerência entre gráfico
e texto verbal, não-consideração da importância da fonte
ou da legenda e alteração do gráfico em relação ao original
sugerido como fonte para determinada questão, o que induz
a opinião do candidato sobre a situação em questão. Além
disso, Souza observou um distanciamento entre os gráficos
e os próprios princípios que regem a criação do Enem, cuja
proposta é avaliar estudantes críticos e argumentativos,
capazes de tomar decisões com base em informações científicas.
A pesquisa argumenta que a tomada de decisão baseada em
gráficos vai necessariamente além da simples busca de informação.
Souza enfatiza que os gráficos estão presentes
em diferentes publicações com o intuito de aprimorar as
informações contidas nos textos, porém, a leitura dessas
imagens precisa ser desenvolvida na escola. Ele explica
que o estudo de gráficos integra o currículo de algumas
disciplinas, principalmente as dirigidas às ciências da
natureza e à matemática. Mesmo as que não dependem dos gráficos,
o utilizam para ajudar na descrição de eventos e fenômenos.
“Acreditamos que a pesquisa possa dar subsídios aos formuladores
de questões, organizadores e coordenadores do Enem e aos
próprios professores da educação básica e acadêmicos que
participam da sua formação”, explica. A pesquisa envolveu
uma análise discursiva das perguntas acompanhadas de gráficos,
fundamentada em textos dos analistas do discurso Michel
Pêcheux e Eni Orlandi, a fim de compreender de que maneira
o Enem poderia estar intervindo na constituição do leitor
de ciência, no que diz respeito à inserção de gráficos nas
provas.
Para o físico, a leitura e a construção
de gráficos são fundamentais na educação, até porque a escola,
em sua opinião, tem como objetivo amplo a formação global
do indivíduo, e para concretizar isso tem de procurar aumentar
sua capacidade de leitura do mundo, além de potencializar
sua participação na vida em sociedade. “Compreender uma
notícia de caráter político, participar de uma discussão
cujo assunto tem aspectos científicos, ler índices econômicos,
dados esportivos, entre outros, muitas vezes demandam atrelar
a compreensão de um texto verbal com a compreensão de dados
registrados no formato da linguagem dos gráficos. E as pessoas
que são capazes de realizar tais atividades com certa criticidade
estão em melhores condições de participar e interferir na
sociedade”, reforça.
Mas
Souza vai além da simples formação dos alunos, enfatizando
que a leitura de gráficos parece exigir não apenas a decodificação
de dados compilados, mas também requer um olhar direcionado
para além das evidências, capaz de perceber os gráficos
como construção humana, pois eles carregam versões sobre
fatos e, desta forma, sua produção e leitura estão implicadas
em ideologias e valores. “Perceber como se processa a formulação
de uma versão sobre um fenômeno a partir da escolha de determinada
opção dentre outras possibilidades, observar como é construída
uma argumentação que sustente tal escolha, sem perder de
vista que este processo, apesar de ser intencional, ocorre
de forma inconsciente, pode ser um exercício importante
para compreensão do papel da linguagem gráfica na significação
de discursos sobre determinado tema”, enfatiza.
O aquecimento global, tema escolhido para
análise do leitor inferido pela análise das questões do
Enem, é um dos assuntos discutidos nos diferentes veículos
de comunicação com a utilização da linguagem dos gráficos,
segundo Souza. Mas ele alerta para o fato de que o leitor
de artigos científicos tem um olhar já treinado para a interpretação
dos gráficos. O que nem sempre acontece com o diverso público
de veículos de comunicação nem mesmo com os escolares.
Outra preocupação do autor é que a realidade
atual é de uma escola que se molda à demanda de um Enem,
e não de um Enem que é desenvolvido a partir da escola.
Diante da constatação dessa interferência, o professor chama
atenção para a responsabilidade do Enem na maneira de elaborar
as questões das provas.
Souza ressalta que todos os fatores abordados
na tese tornaram as questões do Enem um material rico para
ser pesquisado, como objetivo de melhorar a compreensão
do papel dos gráficos para a significação de discursos sobre
o aquecimento global e ainda a compreensão dos leitores
virtuais de gráficos.
Uma das observações feitas por ele é que
algumas questões sobre aquecimento global foram elaboradas
com tendência de apontar vilões para a mudança ambiental
atualmente em debate não só no âmbito da academia, mas também
da mídia. As perguntas analisadas revelaram que para o Enem
o aluno ideal é aquele que consegue retirar informações
de um gráfico para resolver questões. Ele enfatiza que os
formuladores de questões não dão ao candidato a oportunidade
de fazer suas próprias reflexões sobre o tema.
Além disso, a maioria das perguntas, conforme
o pesquisador, está atrelada ao que é divulgado na mídia,
como se esta fosse a única fonte de informação sobre aquecimento
global ou poluição ambiental. “O problema é que para a mídia
o aquecimento global é fruto apenas da ação do homem por
meio da emissão de CO2. E do modo como essa ideia vem sendo
veiculada, ela reforça uma concepção de mudança ambiental
como resultado de um único fator, numa relação causa e efeito
simples, deixando de lado a concepção da Terra como um sistema
integrado, argumenta.
Uma das questões a chamarem sua atenção
é a número 48 do Enem 2002, que se refere à resistência
do então presidente dos Estados Unidos, George Bush, em
cumprir o Protocolo de Kyoto, que estabelece a redução da
emissão de CO2 até 2012. Para Souza, além de se pautar na
abordagem da mídia para a elaboração da questão, o gráfico
não condiz com a versão original citada como fonte, publicada
na edição de 18 de abril de 2001 da revista Veja.
Também não passou despercebida aos olhos
de Souza a questão 40 de 2005. No enunciado, eles informam
que a figura (gráfico) refere-se à emissão de monóxido de
carbono entre diferentes tipos de fontes energéticas, mas
a legenda informa que o gráfico é referente ao dióxido de
carbono. Também o gráfico da questão 29 do Enem 2006 não
aparece na edição do dia 22 de julho de 2004. Ao consultar
edições do jornal em acervo de São Paulo, Souza não encontrou
o gráfico na edição desta data.
Altos e baixos
Souza observa que o modo como as questões
veiculam as informações de que a Terra estaria, de fato,
passando por um aquecimento causado pela emissão do gás
carbônico, responsável pelo efeito estufa (CO2), deixando
de lado a concepção sistêmica de clima, vai de encontro
aos geólogos e geógrafos, que entendem que a Terra e seu
clima fazem parte de um sistema integrado, em que as alterações
são motivadas pela interação entre múltiplas variáveis.
Souza explica que ao olhar para a linha de evolução da Terra,
o observador percebe que o clima tem vários altos e baixos.
Assim, “seria importante divulgar na escola uma concepção
de natureza como algo com dinâmica mais complexa, com história
de transformações e mudanças que precisam ser compreendidas
em diferentes escalas de tempo para daí sim situar o homem
em seu papel de transformação”.
Para o físico, deve haver conscientização
e o comportamento humano é importante para a preservação
ambiental, mas a intervenção do homem precisa ser compreendida
como parte de um processo mais complexo, que tem uma história
que pode inclusive anteceder a história humana na Terra.
Ele acrescenta que, se o Enem pretende mesmo avaliar a capacidade
crítica e de reflexão dos alunos que saem do ensino médio,
deveria contribuir nesse aspecto, dada a complexidade dessa
temática.
A dissertação de Souza integrou uma pesquisa
mais ampla que contou com o apoio financeiro do Observatório
da Educação/Capes/Inep/MEC, intitulada “Processos avaliativos
nacionais como subsídios para a reflexão e o fazer pedagógico
no campo do ensino de ciências da natureza”. Segundo o pesquisador,
o objetivo foi analisar exames institucionalizados, principalmente
o Enem, no que diz respeito às provas em si, seus contextos
histórico-sociais de produção e seu funcionamento em situações
de ensino, que incluem a forma como o professor o insere
nas atividades escolares e como os alunos atribuem sentidos
a questões do Enem em situações concretas de sala de aula.
A pesquisa contou com a participação de
professores e alunos da Unicamp, da Universidade Federal
de São Carlos (UFSCar) e da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), além de docentes, pesquisadores, estudantes
de pós-graduação, estudantes de iniciação científica e professores
da educação básica, também contemplados com bolsas. Segundo
o físico, na Unicamp, a pesquisa, coordenada pelo professor
Henrique César da Silva, centrou-se no tema “mudanças climáticas”
e “aquecimento global”.
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Publicação
Dissertação: Leituras,
limites e possibilidades de gráficos do Enem no contexto
do aquecimento global e das mudanças climáticas
Autor: Edson Roberto de Souza
Orientador: Henrique César da Silva
Unidade: Instituto de Geociências (IG)