JEVERSON BARBIERI
A
partir de relatórios financeiros de oito importantes montadoras
automobilísticas – Daimler, Fiat, Ford, General Motors,
Honda, Hyundai, Toyota e Volkswagen –, o economista Roberto
Alexandre Zanchetta Borghi pesquisou suas estruturas financeiras
na década de 2000 com o objetivo de encontrar semelhanças
e diferenças entre os grupos americanos, europeus e asiáticos.
Como o projeto foi concebido no início de 2009, Borghi conseguiu
observar como a crise econômica internacional impactou o
setor. Foi realizada uma análise do padrão de financiamento
da indústria automobilística em meio a um cenário caracterizado
por forte presença das finanças na lógica de atuação das
corporações. “Entre as principais conclusões da pesquisa
está a evidência do papel do crédito em toda a cadeia, desde
a produção até a comercialização”, garantiu o pesquisador.
O trabalho resultou na dissertação de mestrado de Borghi,
orientada pelo professor Fernando Sarti, do Instituto de
Economia (IE).
Objeto de estudo do economista desde
sua graduação, o tema da indústria automobilística ganhou
enfoque especial a partir do agravamento da crise financeira
ocorrido no final de 2008. Segundo ele, era muito importante
verificar qual a dinâmica financeira dessas corporações
e como ela se engajava na dinâmica produtiva. “Poucos estudos
abordam essas conexões”, assegurou. Diante da falta de dados,
utilizou como fontes de pesquisa, relatórios anuais, demonstrativos
de resultados e balanços patrimoniais para analisar como
foi o comportamento dessas empresas durante a década de
2000.
A partir da seleção das montadoras,
era fundamental verificar, através de indicadores como de
alavancagem, endividamento, rentabilidade e estrutura de
ativos e passivos, as principais características do padrão
de financiamento. Uma das constatações, de modo geral, foi
a forte presença financeira. Isso significa que grande parte
da riqueza das corporações e do resultado de suas operações
provinha de serviços dos segmentos financeiros. O que equivale
dizer, segundo Borghi, que dependia do banco das montadoras
ou de seu braço financeiro que ajuda no financiamento dos
veículos junto às revendedoras ou mesmo diretamente aos
consumidores finais, bem como atua em atividades financeiras
diversificadas.
Portanto, trata-se de uma estrutura,
em primeiro lugar, bastante alavancada dessas corporações,
refletindo um alto grau de endividamento no período. Segundo,
com presença cada vez mais importante do segmento financeiro
em sua dinâmica de atuação, sendo muitos prejuízos no segmento
produtivo, por exemplo, compensados pelos resultados financeiros
positivos. E, em terceiro lugar, exposta a um grau elevado
de fragilidade decorrente do forte comprometimento das receitas
com o pagamento de juros e dividendos, mais um aspecto dessa
lógica financeira.
De modo geral, isso foi observado
nas distintas corporações no período. No entanto, Borghi
salientou que existia uma diferença entre esses grupos de
empresas e que tais aspectos pareceram mais exacerbados
no caso das companhias americanas, em que foram observados
processos de maior dependência em relação ao segmento financeiro
e consequente maior fragilidade. Com a crise, isso se explicitou
de maneira mais contundente porque, embora todas as empresas,
de acordo com o economista, fossem pegas um pouco de surpresa
com a abrupta contração do crédito, as corporações americanas
apresentavam uma situação prévia de maior fragilidade.
Como
os braços financeiros das empresas captam dinheiro com a
emissão de dívidas (Estados Unidos e Europa, principalmente)
e nesses mercados houve extrema contração da liquidez, elas
também tiveram capacidade reduzida de repassar e conceder
crédito para o restante da cadeia. Com a incerteza generalizada
que acometeu os mercados financeiros, bancos comerciais
– que também atuam nesse processo – e braços financeiros
foram afetados pela crise e restringiram a oferta de crédito
no período.
Visto que a comercialização de veículos
é extremamente dependente do crédito, isso acabou gerando
uma forte diminuição das vendas e impactando, consequentemente,
a produção, os lucros, a capacidade de solvência das empresas
e os empregos na indústria.
General Motors, Chrysler e Ford foram as mais afetadas e
necessitaram de uma intervenção muito forte do Estado, com
apoio direto através de empréstimos para as matrizes (no
caso das duas primeiras companhias), além de envio de lucros
e dividendos de suas filiais. O Estado atuou também em outras
frentes, reduzindo as taxas de juros a níveis próximos de
zero e isso facilitou para que elas resgatassem as fontes
de captação e concedessem crédito. Promoveu, ainda, a concessão
de subsídios para os consumidores, para a troca de veículos
ou modernização de frotas. Aqui no Brasil, a diminuição
da alíquota do IPI ajudou a reanimar as vendas. “Foi um
processo de ajuste necessário para resgatar a capacidade
de produção e financiamento das montadoras e minimizar os
efeitos negativos sobre o restante da economia”, salientou
Borghi.
Pilares
Com relação às conclusões da pesquisa, o economista citou,
em primeiro lugar, a questão da estrutura financeira e da
presença da dinâmica financeira nas corporações do setor.
Em segundo lugar, as diferenças entre esses padrões, o que
denota a maior fragilidade das corporações americanas, observada
com o aprofundamento da crise. E, em terceiro lugar, o padrão
de financiamento pela ótica dos três pilares da indústria
(produção, investimento – incluindo inovação – e comercialização).
Em relação à produção, com a diminuição das barreiras à
circulação de bens e capitais, a integração do processo
produtivo em âmbito global e a maior participação dos fornecedores
nas linhas de montagem, os fornecedores passaram a ter maior
importância no financiamento da produção. Ainda que os dados
de balanço não tenham o reflexo mais apropriado possível,
isso se aproxima muito do que pode ser observado, avalia
Borghi.
No que diz respeito ao investimento, pode-se
verificar a existência de uma grande dependência da capacidade
interna de financiamento, via lucros retidos, ainda que
as fontes externas fossem complementares e importantes.
Quando existe uma redução das vendas e não se consegue obter
grandes resultados no setor produtivo, isso acaba impactando
a capacidade de ampliação e/ou reposição de capital fixo,
embora possa, em alguma medida, ser compensada por resultados
financeiros. A maior capacidade interna de financiamento
das empresas, sobretudo das japonesas, que apresentaram
lucros mais elevados no período, é decorrência de seu processo
de expansão produtivo e financeiro. Além disso, parte do
investimento foi financiada por uma combinação entre tomada
de empréstimos e emissão de títulos de dívida no mercado
de capitais, o que varia de acordo com as estratégias da
corporação e das condições nos locais em que os investimentos
são realizados.
O mercado acionário, segundo Borghi, acabou
tendo pouca importância no financiamento. Destaca-se que
na década de 2000 houve forte recompra de ações de muitas
montadoras, principalmente das japonesas. No caso das americanas,
diferentemente das demais corporações, despertou a atenção
um fluxo de gastos com depreciação muito maior do que os
fluxos anuais de investimentos. Ou seja, tais recursos,
que ficam em caixa, seriam mais que suficientes para cobrir
as despesas de investimento. Parte desses recursos líquidos
poderia, portanto, ser direcionada para outras atividades,
inclusive em âmbito financeiro, corroborando as conclusões
de uma presença marcante das finanças na dinâmica das corporações.
As empresas, sobretudo as americanas, foram
as que apresentaram maior diversificação financeira, atuando
não só no financiamento de veículos. Grande parte delas,
por exemplo, a GMAC – braço financeiro da GM até o final
de 2006 –, possuía desde 1985 atuação no mercado de hipotecas
imobiliárias. Também foi afetada pela crise. No final de
2006, 51% de seu capital foi vendido para o fundo Cerberus
Capital Management, o mesmo que em 2007 comprou a Chrysler,
após o fim da fusão DaimlerChrysler originada em 1998.
No que se refere à inovação, esta sempre
foi uma peça chave da dinâmica competitiva do setor, afirma
o estudioso. Por se tratar de uma indústria estratégica,
constantemente desempenhou em sua dinâmica um papel importante
o Estado, ainda mais agora com a questão da nova fronteira
tecnológica e do novo padrão que irá se estabelecer no setor,
em termos de combustíveis ou das formas alternativas de
propulsão. Chama a atenção na questão da inovação a formação
de alianças estratégicas entre montadoras e fornecedores
no desenvolvimento conjunto de tecnologias e componentes,
uma relevante modalidade de financiamento que reflete as
próprias mudanças na órbita produtiva.
Sobre a questão da comercialização, Borghi assinala que
a maior parte dos veículos é financiada, o que na verdade
difere de país para país e varia ao longo do tempo. Observa-se,
nesse processo, uma forte participação dos braços financeiros
das montadoras, sobretudo nas vendas no atacado que servem
para financiar os estoques das concessionárias, exercendo,
assim, grande importância na dinâmica da corporação e do
setor.
A respeito da contribuição de seu trabalho,
Borghi crê que existem vários pontos que podem ser explorados
em outras pesquisas. Segundo o economista, para quem tiver
interesse no tema, a dissertação servirá de base para uma
literatura mais condensada e diversas formas de exploração
dos dados. “É um material rico para quem quer seguir analisando,
seja a indústria automobilística em particular, seja o processo
mais geral da globalização financeira e produtiva e como
isso se evidencia nas corporações”, afirma. Isto também
permite examinar a própria forma de inserção dos países,
como agir diante de alguns movimentos que são da lógica
das corporações e como ocorre a movimentação de capital
entre matriz e filial. “O estudo faz pensar como que se
dá a dinâmica dessas corporações, o que se reflete também
em questões de políticas públicas a serem adotadas”, concluiu.
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Publicação
Dissertação: “Economia financeira e economia produtiva:
o padrão de financiamento da indústria automobilística”
Autor: Roberto Alexandre Zanchetta Borghi
Orientador: Fernando Sarti
Unidade: Instituto de Economia (IE)
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