MANUEL
ALVES FILHO
Tese
de doutoramento de Júlio de Souza Valle Neto, defendida
no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, faz
uma abordagem original da obra do memorialista Pedro Nava,
situando-a no universo do Modernismo. O trabalho, que foi
orientado pelo professor Antonio Arnoni Prado, também procurou
compreender a situação tardia da produção de Nava, tanto
no que se refere ao seu surgimento historicamente temporão
quanto no contexto do conceito denominado “estilo tardio”,
formulado pelo crítico literário palestino Edward Said.
O tralho foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (Fapesp).
O interesse de Júlio Valle sobre a obra
de Pedro Nava remonta ao seu trabalho de mestrado. Na oportunidade,
ele estabeleceu uma comparação entre as Memórias produzidas
pelo autor (ao todo, são seis volumes completos e um incompleto)
e o romance O Ateneu, escrito por Raul Pompéia. “Como a
dissertação, pela sua própria natureza, pede uma abordagem
mais pontual, na ocasião eu delimitei dois dos volumes da
obra de Nava, nos quais ele fala da sua experiência no internato.
Foi esse universo escolar, embora não exclusivamente, que
me permitiu traçar um paralelo com o livro do Raul Pompéia”,
explica o pesquisador.
Já no doutorado, Júlio Valle foi mais longe
e ampliou o escopo da pesquisa em vários sentidos. “Primeiro,
eu comecei a trabalhar sistematicamente com os seis volumes
e meio que compõem as Memórias. Não satisfeito com isso,
propus uma relação dessa produção com o Modernismo, tendo
Mário de Andrade à frente. Claro que também me vali de outros
autores que participaram do movimento, como Carlos Drummond
de Andrade e Oswald de Andrade, este último de forma menos
contundente”, diz. Até então, ressalta o pesquisador, a
crítica havia registrado apenas algumas notações sobre a
presença do Modernismo na formação de Nava. “Em geral, as
remissões eram biográficas e laterais”, acrescenta.
Dito
de outro modo, Júlio Valle alçou a participação do memorialista
no movimento modernista à condição de chave interpretativa
da obra produzida por ele, Nava. Nesse processo, privilegiou
os anos 20, decisivos na formação do memorialista: nos anos
80, ele diz escrever ainda bastante inspirado pelo primeiro
Modernismo. No decorrer do trabalho, o pesquisador chegou
a conclusões importantes. A tese procura mostrar, por exemplo,
que algumas das contradições encontradas na produção de
Mário de Andrade também podem ser percebidas nos textos
de Nava, concebidos cinco décadas depois da Semana Arte
Moderna. Nos anos 20, Mário de Andrade registrou no “Prefácio
Interessantíssimo”, de Paulicéia Desvairada, e em A escrava
que não é Isaura, que o realismo era uma concepção literária
ultrapassada e que deveria dar lugar a algo novo. Todavia,
ao escrever sobre Os Sertões, de Euclides da Cunha, o mesmo
Mário de Andrade acusa a obra de abusar da mistificação
e cobra maior realismo do autor.
No entender de Júlio Valle, existe algo
do gênero em Nava. “Se considerarmos trechos nos quais ele
fala sobre a sua concepção de memorialismo, Nava começa
dando a impressão de que, como modernista que é, está completamente
desvestido da ambição realista. No final do mesmo trecho,
porém, ele dá uma volta de 180 graus e faz uma profissão
de fé, contraditória que seja, na possibilidade de recuperar
realisticamente o passado”, detalha o autor da tese. Além
disso, prossegue o pesquisador, a obsessão de Mário de Andrade
com o “nacional” também está presente nas Memórias. “O meu
trabalho defende que a incorporação do nacional 50 ou 60
anos depois na obra de Nava tem a ver com a ascendência
de Mário. Todavia, essa ascendência aparece filtrada por
Drummond, com quem Nava conviveu nos anos 20 em Minas Gerais”.
O poeta mineiro trava, na metade daquela década, uma discussão
sobre o assunto com o líder paulista do movimento – algo
que, acredita, inspirou em parte a obra tardia de Nava.
Júlio Valle revela que, numa fase já bem avançada da sua
pesquisa, tomou conhecimento do livro Estilo Tardio, de
Edward Said. “A incorporação à tese de questões importantes
formuladas por Said acabou conferindo uma relevância maior
ao trabalho”, avalia. O pesquisador esclarece que quando
Davi Arrigucci Júnior [ex-professor de teoria literária
da USP] chama as Memórias de um fruto tardio do Modernismo,
ele está fazendo principalmente uma localização histórica
do surgimento da obra. “Na tese, eu procurei ampliar essa
dimensão de localização para uma dimensão expressiva. Ou
seja, busquei compreender as Memórias também como um estilo
tardio e não somente como uma erupção tardia”, esclarece
Júlio Valle.
No caso da obra de Nava, segue o pesquisador,
há dois pontos importantes que permitem situar a produção
nessa esfera. “Como disse [Theodor, um dos expoentes da
Escola de Frankfurt] Adorno, o estilo tardio tem a ver com
a presença da morte, mesmo que seja por refração. Nas obras
analisadas por Said, percebe-se expressivamente – e não
apenas tematicamente – certa ameaça da finitude. Isso perpassa
vários autores de diferentes artes e períodos, como Mozart
e Jean Genet. A morte também é uma obsessão nos escritos
de Nava, desde o primeiro momento. O que eu tentei fazer
na tese é usar esse estilo tardio, expresso por meio da
presença da morte por refração, como elemento para a compreensão
das Memórias”.
Um
segundo ponto, que não está completamente apartado do anterior,
conforme Júlio Valle, é a própria concepção de tempo. Nas
obras comentadas por Said, o crítico literário percebe certa
atração dos autores analisados pelo extemporâneo. “Socorrendo-se
de Nietzsche, Said fala de uma atração paradoxal por parte
desses autores, que fazem parte do presente, mas que tentam
dele se afastar, extemporaneamente. Tento mostrar que Nava
tem uma concepção de tempo que pode ser aproximada dessa
ambição extemporânea. Se há algo que pode sintetizar a ameaça
de morte é a passagem do tempo. Na prosa das Memórias, é
perceptível a preocupação do autor em fazer com que o tempo
seja mitigado. Nesse sentido, eu proponho que Nava sente
uma atração muito forte por aquilo que ele chama de “antigo.
Esse antigo, no universo da produção de Nava, é aquilo que
permanece. Ou seja, aquilo que por alguma razão se mostra
infenso à passagem do tempo e, portanto, à ideia de morte”,
pormenoriza o pesquisador. Para alguém saído de um movimento
compromissado com o novo, diz, isto adquire maior relevância.
Um exemplo disso, pontua Júlio Valle, vem
de um trecho do quinto volume das Memórias, no qual Nava
faz uma tocante descrição da sua sala de visitas. “Trata-se
de um cenário do presente, mas que é apresentado como um
museu. No ambiente há objetos antigos que remetem a parentes
e amigos. A poltrona, por exemplo, não está lá à toa. Ela
tem um significado museológico”, afirma o autor da tese.
Ainda segundo Júlio Valle, há uma anedota sobre Nava, talvez
não confiável, mas que se apresenta como verossímil, segundo
a qual o memorialista teria aparafusado os móveis da sala
no chão, para que ninguém os removesse. “Faz sentido. Afinal,
o maior sintoma da passagem do tempo é o movimento. A estaticidade,
no caso, seria a indicação, evidentemente ilusória, de que
o tempo não está fluindo”, analisa o pesquisador.
Seguindo nessa linha de interpretação,
Júlio Valle enfatiza, ainda, que o ritmo da prosa das Memórias
parece ser uma sistemática tentativa de fazer com que o
tempo não passe. Trata-se, de acordo com ele, de uma prosa
derramada, extremamente lenta. “De alguma forma, o ritmo
da obra parece ser uma proteção do texto contra a inexorabilidade
do tempo”, afirma o pesquisador, que usou como fontes do
estudo não somente as Memórias de Nava, como também as cartas
que ele trocou com personagens importantes, sobretudo Drummond
e Mário de Andrade. “Uma tese com o propósito de situar
as Memórias no universo do Modernismo tem uma contraparte.
Não se trata apenas de identificar afinidades, mas também
possíveis distanciamentos. Se há um modernista que não aparece
de forma muito clara na obra de Nava é Oswald de Andrade.
Não se trata de menosprezo. Nava foi amigo e médico particular
de Oswald. O arejamento vocabular e o uso de palavrões,
presentes nos textos de Oswald, também estão nas Memórias.
Ocorre, porém, que existe uma grande defasagem entre as
referências de Mário e Drummond e as de Oswald no trabalho
de Nava”, considera Júlio Valle. Para ele, o alcance da
ruptura privilegiada pelo poeta paulista, já criticado por
Drummond nos anos 20, pouco inspira uma obra marcada, em
vários níveis, pelo anseio de permanência.
Pedro da Silva Nava nasceu em Juiz de Fora,
Minas Gerais, em 1903. Formou-se em Medicina e especializou-se
em reumatologia. Teve uma participação importante nessa
carreira. Até 1972, havia publicado apenas alguns poemas
esparsos. Naquele ano, editou o primeiro volume de suas
memórias, Baú de Ossos. A este se seguiram mais cinco volumes.
O sétimo, que estava sendo produzido, foi interrompido na
noite do dia 13 de maio de 1984, um domingo. Por volta de
20h, depois de ter recebido um telefonema, o escritor deixou
seu apartamento na rua da Glória, no Rio de Janeiro, sem
dar maiores explicações à mulher, Antonieta. Após peregrinar
por ruas próximas, sentou-se num banco de praça e deu fim
à própria vida, com um tiro na cabeça
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Publicação
Tese: “O modernista no
antiquário: Pedro Nava, as Memórias e o Modernismo”
Autor: Júlio de Souza Valle Neto
Orientador: Antonio Arnoni Prado
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL)
Financiamento: Fapesp