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Inventário dos anos de chumbo

ISABEL GARDENAL

Os filmes sobre a ditadura militar no Brasil participaram de um duplo processo de seleção do passado. Foi o que concluiu a socióloga Caroline Gomes Leme na sua dissertação de mestrado, apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). Segundo a pesquisadora, ao mesmo tempo em que os filmes promovem recortes selecionando aspectos que se pretende ressaltar e elidindo outros – de modo a servir aos interesses da narrativa construída realizando a seleção do passado – esses filmes são selecionados pela sociedade, estando sujeitos a uma espécie de crivo social: alguns alcançam notoriedade e outros acabam relegados ao esquecimento.

O fato de os filmes fazerem parte duplamente desse processo relaciona-se ao conceito de tradição seletiva do autor referencial do materialismo cultural, Raymond Williams. A socióloga fez um levantamento de 74 filmes brasileiros sobre a ditadura militar, lançados de 1979 a 2009. O recorte inicial partiu de um momento em que já era possível ao cinema falar sobre a ditadura, após a Lei de Anistia e a revogação do Ato Institucional no 5, o AI-5, o mais autoritário de uma série de decretos emitidos pelo regime após o golpe de 1964.

Cinco obras foram analisadas mais detidamente por ela: Nunca fomos tão felizes, de Murilo Salles, de 1984; Corpo em delito, de Nuno Cesar Abreu, de 1990; Ação entre amigos, de Beto Brant, de 1998; A terceira morte de Joaquim Bolívar, de Flávio Cândido, de 2000; e Zuzu Angel, de Sérgio Rezende, de 2006.

A pesquisadora partiu desse marco porque filmes de períodos anteriores, do próprio Cinema Novo e do Cinema Marginal, já tinham tratado do regime militar, contudo foram produzidos sob a ditadura, não sobre a ditadura. Foram concebidos num contexto de impacto pós-golpe e repressão.

O trabalho envolveu um inventário, no qual foram buscados, assistidos e analisados os filmes. Orientada pelo professor do IFCH Marcelo Siqueira Ridenti, ela reuniu este material a partir de referências bibliográficas, jornais e fontes primárias, destrinchando as obras e a relação delas com o meio social em que se inserem.

Usando as metodologias de Raymond Williams e de Pierre Sorlin, autor francês que avaliou a relação entre cinema e sociedade, Caroline confirmou que os filmes trazem valores e significados socialmente construídos. “Não podia prescindir de uma análise geral. Para isso, o recorte tinha que captar não só os enunciados prevalentes, os hegemônicos, mas os alternativos e oposicionais.”

Os limites e pressões da censura também foram estudados pois, se de 1979 a 1985 eles decorriam do regime militar, depois, com o regime liberal-democrático, foram postos outros limites e pressões, como as condições socioeconômicas e a necessidade de financiamento via leis de incentivo.

O levantamento e análise levaram a uma divisão bipartite – uma panorâmica (análise geral dos filmes em associação); e outra em close (análise de filmes específicos). A estrutura foi dividida em subtemas do regime militar, entre os quais se destaca a tortura: como apareceu no cinema e quais as questões ligadas a ela (se é considerada política de Estado ou práticas paralelas); como os torturadores aparecem nos filmes?; se mudam as imagens da tortura nos anos de 1980, 1990 e 2000?; como é a sua representação em imagem e som?; e se há nos filmes prolongamentos da repressão no pós-ditadura.

A pesquisadora notou em alguns filmes dos anos 1980, como Pra frente Brasil e O bom burguês, uma certa invisibilidade dos militares em envolvimento com a tortura, ao passo que, nos menos conhecidos, ela aparece como política de Estado. É o caso de Paula – a história de uma subversiva, dirigido por Francisco Ramalho Jr., que antecede Pra frente Brasil, tido como pioneiro no tema da ditadura. Mas Caroline apontou, em sua lista, dois filmes anteriores a ele. Além de Paula, o filme E agora, José? Tortura do sexo. Este, classificado como pornopolítico, gênero peculiar produzido na Boca do Lixo paulistana, tem como diretor Ody Fraga.

Ao contrário do Pra frente Brasil, em E agora, José? e Paula, os torturadores têm vinculação com o aparato estatal. A socióloga lembra que, em alguns casos de invisibilidade dos militares, este tipo de referência é mais sutil, como num filme de 1983, A Freira e a tortura, produzido na Boca do Lixo. Nele, os carcereiros levam a foto do presidente Médici à delegacia. No filme Corpo em delito, de 1990, aparece vinculação análoga com as fotografias dos presidentes militares.

Produção
Pela admiração que tinha pela sociologia da cultura e pelo cinema, a pesquisadora sentiu-se desafiada a seguir este caminho desde a iniciação científica, após verificar um boom de obras sobre a ditadura nos anos 2000. Sua motivação foi responder o que tinha, ou não, destaque nesses filmes. Fez então o recorte em close para não perder o enfoque diverso propiciado pela análise panorâmica dessa filmografia. Decifrou os cinco filmes de contextos históricos distintos e em condições de produção cinematográfica também distintas.

Caroline relatou a história do cinema, de como ele foi produzido pela Embrafilme, na Boca do Lixo e via leis de incentivo. “Procurei ver como essas condições de produção interferiam. Mas não parti do exterior. Seguindo Sorlin, realizei uma análise interna como princípio norteador.”

A Embrafilme foi bastante atuante, avalia ela. Mas, no período investigado, já entrava em colapso. Corpo em delito foi produzido no auge da crise. Foi extinta em 1990 pelo presidente Collor, por falta de recursos, com agravos da imprensa.

Hoje, as obras da Globofilmes são as mais disputadas, com bilheterias altas e orçamentos vultosos para padrões brasileiros. Zuzu Angel, da Globofilmes em coprodução com a Warner Bros. Pictures, custou mais de R$ 6 milhões, contando com recursos das leis de incentivo. Opostamente, o filme A terceira morte de Joaquim Bolívar, financiado via leis de incentivo, custou cerca de R$ 700 mil.

Alguns filmes como Pra frente Brasil, O que é isso, companheiro? e Lamarca estão fortemente inscritos na tradição das obras sobre a ditadura. São os filmes indicados em trabalhos acadêmicos, reportagens e críticas cinematográficas. Têm características em comum, como uma determinada tendência à conciliação com o passado.

Os filmes, que começam e terminam nos anos de chumbo, de 1968 a 1974, passam uma ideia de página virada, de passado sepultado. Outras obras promovem uma ponte entre o passado e o presente, lançando um incômodo para o espectador. Em Ação entre amigos, mostram-se as sequelas da tortura como uma questão social não resolvida.

No filme A próxima vítima, de 1982, foram abordadas as eleições para o governo de SP. Paralelamente ao clima de esperança que permeava a “abertura política”, mostrou-se que a atuação policial continua buscando nas classes marginalizadas os culpados e agindo com truculência. Em Quase dois irmãos, recorda a socióloga, também é assinalado o prolongamento da violência no tempo presente.

Caroline sinaliza que não houve uma “evolução” da representação da tortura da forma implícita para a explícita ao longo dos anos em que se caminhou para o regime liberal-democrático. Os filmes adotaram diferentes estratégias a respeito. E agora, José? e Pra frente Brasil tinham cenas fortes de tortura. Já em O ano em que meus pais saíram de férias, obra que trabalha com o não visível, a tortura não era manifesta, apenas inferida.

Na dissertação, identificou-se ainda a presença do ideário de direita. Nos filmes da década de 1980, são mais notórios os elementos da sociedade civil vinculados com esse ideário, a base de apoio do regime militar. Recentemente, estas personagens vão deixando de existir. Fica como se a sociedade fosse sempre a vítima e a ditadura um poder opressor sem conexão com as contradições sociais.

Pra frente Brasil e O bom burguês retratam os setores da direita civil, e Corpo em delito é um dos únicos a ter um protagonista de direita. Trata-se de um médico que assessora nas câmaras de tortura e falsifica laudos necropsiais. Suas ações são fundamentadas ideologicamente. O filme constrói uma interlocução entre o ideário integralista de seu pai e a sua atuação como colaborador da ditadura.

Quanto aos opositores, Caroline assistiu a filmes em que aparecem esses personagens guerrilheiros como despreparados, sonhadores e aventureiros. De outra via, setores de oposição de diferentes modalidades aparecem em alguns filmes: a atuação da esquerda católica, do trabalho jornalístico e da militância do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

As classes populares pouco aparecem nos filmes, exceção feita ao Cabra marcado para morrer. Não são vistas ou apenas tangencialmente. O recorte dessa filmografia destaca os anos de chumbo, exibindo uma luta já combalida – o sofrimento e a derrota dessa oposição –, ao invés da utopia efervescente, da mobilização coletiva e das perspectivas de transformação.

Os filmes, em geral, não abordam o pré-1964 ou o imediato pós-golpe. As ações da guerrilha urbana, a emoção e o sofrimento para esse cinema clássico, de matriz hollywoodiana, são elementos ricos. Já A terceira morte de Joaquim Bolívar é um filme cuja perspectiva é mais alegórica, inspirando-se no Cinema Novo para revelar o regime militar de maneira diferente, abordando o golpe de 1964, a transição conciliada em 1979 e os anos atuais.

Em termos estéticos, cada filme exibe um diferente tratamento do tema. Ação entre amigos é um thriller policial, Corpo em delito uma narrativa fragmentária que entrelaça temporalidades, A terceira morte de Joaquim Bolívar é uma alegoria, Zuzu Angel é um cinema de matriz melodramática e Nunca fomos tão felizes trabalha muito com a imagem. Também em termos de conteúdo são diversos, observa Caroline. “É muito difícil realizar generalizações e homogeneizações. Foi isso que procurei evitar pois, às vezes, se são focalizados filmes específicos e promove-se generalizações, as diferenças deixam de ser vistas.”

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Publicação
Dissertação:
“Cinema e sociedade: sobre a ditadura militar no Brasil”
Autora: Caroline Gomes Leme
Orientador: Marcelo Siqueira Ridenti
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
Financiamento: CNPq e Fapesp
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