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Quando contar histórias é uma arte
Dissertação aborda uso de recursos cênicos na sala de aula

MARIA ALICE DA CRUZ

Ainda na barriga, Lucas já deve estar atento às diferentes entonações da voz da mãe, Lívia Pinheiro, que ora parece alegre, ora calma, ora muito impostada, ora pianissimo. Daqui a alguns anos, quando fizer parte do universo escolar, talvez Lucas identifique essas oscilações da voz ao ser ensinado por um professor contador de histórias, assim como Lívia faz com seus alunos na rede estadual de ensino. A busca desse mestre capaz de envolver uma turma toda com o conteúdo expresso de forma prazerosa em sala de aula foi a motivação do trabalho de conclusão de curso (TCC) e também do mestrado de Lívia na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp. A dissertação “Palavra, corpo e presença: a arte do professor contador de histórias” é um presente a pequenos escolares, que de uma vez por todas querem entender o que o professor procura transmitir nas aulas de história, matemática, literatura, arte, entre outras. Nela, Lívia buscou compreender qual a contribuição da arte de contar histórias no processo de formação continuada de professores de ensino fundamental da rede estadual de ensino.

Há muito anos, mas bem depois do tempo em que os animais falavam, era uma vez uma jovem estudante de pedagogia da Unicamp, que, encantada pela magia dos contos, muitos deles contados por ela mesma na escola ou no grupo Manauê, de Campinas, decidiu saber o que a história tem de bom a ponto de mudar a relação professor e aluno em sala de aula. Dentro das condições que tinha, passou a usar seu próprio carro para transportar um grupo de oito professoras da escola onde trabalhavam, em Campinas, para o Laborarte, da Faculdade de Educação da Unicamp. O convite feito às amigas para participar de uma oficina de formação em narração de histórias teve como objetivo, em oito encontros, levar as professoras a refletirem sobre as possibilidades dessa arte em sua rotina na sala de aula. Mas o que Lívia queria mesmo era sensibilizá-las a utilizar recursos cênicos para trabalhar a expressão corporal, a refletir sobre as obras literárias e a pensar uma proposta própria para trabalhar com os contos populares em sala de aula.

Mas a realidade quase minou a dedicação de Lívia. Algumas professoras, por precisar trabalhar em mais de uma escola para defender seu salário ou por problemas de saúde, foram desistindo das atividades por falta de tempo. Outras manifestavam a dificuldade de se soltar para interpretar diante dos alunos. Tais declarações fizeram com que Lívia desanimasse, mas “quando pensei que estava tudo perdido alguém veio e me resgatou”. Esse alguém é o conto O Príncipe Adil e os leões. O encontro das professoras com o conto deu nova vida às oficinas, e Lívia pôde concluir seu trabalho. E com melhores resultados, de acordo com declarações suas.

As reminiscências da infância, memórias compartilhadas pelo grupo, também ajudaram a consolidar o trabalho. As mais diversas lembranças, desde o cheiro de pão até o ambiente da casa da avó foram colocadas na roda e aproximaram ainda mais o grupo, que percebeu o quanto a imagem de si mesmo pode potencializar a capacidade de recriar uma história. “É muito importante para o professor-contador revisitar essas lembranças, pois esse baú de sentimentos e sensações que acessamos no momento em que contamos as histórias é que dá vida às palavras. É desta forma que a história toca e transforma, tanto aquele que ouve, como principalmente, aquele que conta”, acrescenta a contadora.

Satisfeitas, como demonstraram em seus depoimentos ao final da pesquisa, as professoras expressaram o quanto a oficina fez com que lançassem um olhar diferente para seus alunos. Ouvir que a dissertação aprimorou a relação professor-aluno soou como uma bela história para Lívia, cuja prática como professora-contadora sempre surtiu momentos de afeto com seus alunos. Ao observar as professoras interagindo, explorando a expressão corporal, subindo em mesa para representar, chegou a imaginar se elas seriam capazes de ser assim com seus alunos. A resposta veio quando uma delas revelou que a maneira de narrar uma aula da disciplina de história como contadora encantou não só os alunos mas a si mesma.

Sempre à espera de uma proposta diferente de aula, pequenos aprendizes se aproximaram mais de uma das professoras da oficina por causa de sua forma de contar histórias, segundo seu depoimento. Ao relatar o valor da formação continuada em seu trabalho diário, esta mesma professora declarou a Lívia o quanto é importante para o professor saber das coisas e poder levar o conteúdo apreendido para o dia a dia. “Saber que uma forma, um agrado ou a frase ‘Nossa, gente, essa aqui é a história mais linda do mundo’ aproxima a criança a meu favor”, relata em seu depoimento a professora. Ela ainda afirma, segundo Lívia, que ler e estudar tudo o que foi proposto a ajudou a realizar com dignidade seu trabalho, “fazer bonito e fazer bem feito. Isso ainda não é perfeito, mas da sala que eu tinha... Nossa, está tão bom”, relata a mesma professora.

Atento ao movimento da professora em sala de aula, e encantado com sua maneira de narrar os textos, um aluno de ensino fundamental é motivado a escrever histórias. Esse foi um dos motivos que fizeram uma das participantes da pesquisa declarar que valeu a pena, segundo Lívia. “Professora, você lê para a classe?”, disse o aluno, que, tímido, queria ouvir seu texto “O menino e o lobisomen” sendo lido para os colegas de sala.

Depois do trabalho de Lívia, as mudanças foram evidentes não somente na produção de textos, mas também no aproveitamento geral do aluno, que envolve todas as disciplinas do ensino fundamental, segundo as professoras. A partir desse depoimento, Lívia percebeu que a prática da leitura diária apreciada pelas crianças e pelo professor pode trazer importantes benefícios para a aprendizagem.

“Não foi a prática da professora que mudou. E sim a forma como passou a enxergar próprio trabalho com as histórias e o significado dessa prática para o seu dia a dia em sala de aula”, acredita a jovem pesquisadora, que, como mãe, espera ver João Vitor e Lucas, que esta por vir, em uma sala comandada por quem saiba mandar o recado com a eficiência que a arte de contar histórias proporciona, como ficou comprovado em sua trajetória.

A forma de apresentar sua dissertação diante da banca examinadora, de amigos e da família não poderia ser outra senão a arte de contar história. O roteiro, em que o imaginário traduziu a realidade, foi criado a partir de sua própria trajetória. Surpresa com a forma escolhida por Lívia, a orientadora Márcia Strazzacappa, diretora associada da FE, conta que o momento mais emocionante da defesa foi quando Lívia narrou a resistência inicial e a desistência de algumas professoras no meio do projeto e também o momento em que recobrou as força para prosseguir: “Estava quase me afogando, quando alguém me puxou”, disse a autora diante da banca. Para Márcia, a dinâmica adotada pela orientanda quebrou um tabu criado não somente no processo de ensino na sala de aula, mas também no ambiente acadêmico, mais precisamente, da sala de tese. “A Lívia levou a artista para o ambiente da defesa”, reforça Márcia.

O final da defesa também foi surpreendente, segundo a orientadora, pois relatou, no formato de um cinema mudo, o que viria a ser o resultado da pesquisa, com a resposta que Lívia tanto desejou: as professoras dançando e interpretando, sem qualquer tabu, os personagens do conto O príncipe Adil e os leões. Mostrando o quanto um conto pode modificar uma história real. E mudar a realidade da educação a ser recebida por Lucas, João Victor, José, Joaquim, Carol, Ana Laura, Sofia, Beatriz... E o professor que quiser que conte outras.

 

MinC seleciona projeto

A arte de contar histórias motiva outras pesquisas. Uma delas transformou-se num grande projeto chamado “Era uma vez uma história contada outra vez”, único da região sudeste a ser selecionado pela primeira edição do Pró-Cultura, em uma parceria do Ministério da Cultura (MinC) e do Ministério da Educação (MEC) em 2009. O título do projeto deve-se à missão de buscar , dentro do patrimônio nacional, histórias tradicionais que ajudem a abordar temas presentes no universo escolar das crianças, entre eles bulling, perda de pessoas queridas, medo, tolerância, diferenças, preconceito racial, entre outros. “Elencamos as mais fortes questões vividas na escola hoje”, afirma Márcia Strazzacappa, uma das coordenadoras do projeto.

O projeto, coordenado ao lado das professoras Valéria Figueiredo, da Universidade Federal de Goiás, e Karenine Porpino, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, envolve pesquisa acadêmica e produção artística, por meio da criação e divulgação de mídias como CD, DVD, libreto e oficinas de formação continuada de narração de histórias a serem oferecidas no último ano do projeto. Para isso, a execução deverá contar com profissionais da área de educação e também de arte. De acordo com Márcia, o projeto está em fase de pesquisa acadêmica.

Para Márcia, o projeto é mais uma motivação para que o conto seja explorado em sala de aula e, dessa forma, a expressão artística. Professora da disciplina Educação, Corpo e Arte, ela explica que as atividades de expressão corporal têm tido impacto no trabalho de professores formados pelo curso de pedagogia. A disciplina que iniciou como eletiva, hoje é exigida no currículo do curso. Um episódio relatado por ela durante a entrevista ilustra a importância da matéria na formação dos profissionais que têm como missão dar as primeiras orientações para futuros trabalhadores. Conta Márcia que uma aluna acometida por um AVC decidiu dar continuidade ao curso, mas esbarrou no fato de a disciplina, além de obrigatória, não permitir exercícios domiciliares, exigindo aulas presenciais. No primeiro dia, a aluna questionou o fato de ter que ser levada pela filha à faculdade. Na segunda aula, a filha estava na porta da sala e, na terceira, já pedia para acompanhar as atividades. “Tamanho é o envolvimento com as atividades”, afirma Márcia.

No final do semestre, depois da apresentação de conclusão da disciplina, em que figurou como um dos personagens principais, a aluna relatou o quanto a disciplina teria tornado suas quintas-feiras mais importantes, pois senão seria mais um dia da semana dentro de sua casa, impossibilitada de sair. As frases finais da aluna são replicadas por Márcia: “Talvez eu não consiga fazer tudo o que vocês me ensinaram aqui, mas nunca mais olharei da mesma maneira para meus alunos”.

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Publicação
Tese:
“Palavra, corpo e presença: a arte do professor contador de histórias”
Autora: Lívia Pinheiro
Orientadora: Márcia Strazzacappa
Unidade: Faculdade de Educação (FE)
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