MANUEL
ALVES FILHO
Jornal
da Unicamp – O livro é resultado de pesquisas que a senhora
vem desenvolvendo há algum tempo, não é?
Heloísa Bruhns – O livro teve como base três pesquisas que
eu desenvolvi para o CNPq, todas elas relacionadas com meio
ambiente, lazer e natureza. Outra participação importante
nessa trajetória foi minha atuação, desde 1994, junto ao
grupo de pesquisa “Turismo e meio ambiente” do Nepam [Núcleo
de Estudos e Pesquisas Ambientais, da Unicamp]. Essa participação
culminou com a organização de eventos e na publicação de
livros, cuja alavanca foi “Viagens à natureza”, que está
na 8ª edição. Parto do pressuposto de que o ambientalismo
enquanto movimento crítico-social – em negar suas contradições
e incoerências, bem como correntes às vezes conflituosas
– influenciou a busca atual pela natureza, a qual recebeu
conotações diferenciadas ao longo de seu percurso histórico
em diferentes contextos. Podemos pensar essas questões engatilhadas
a partir da década de 1960, nos movimentos contraculturais,
constituindo e desembocando em crises deflagradas no âmbito
das instituições – família, ensino, igreja dentre outras.
Surge aí uma noção de ambientalismo na qual está embutida
não apenas a preservação, de maneira isolada e estanque,
mas integrando uma infinidade de conteúdos.
JU – É um livro
voltado para a academia ou é acessível a todas as pessoas
que se interessam pelos temas nele contidos?
Heloísa Bruhns – Há um processo recente de diálogo
entre a academia e os técnicos especializados que gerenciam
as atividades na natureza. Participei em julho passado,
na Chapada Diamantina, do Congresso Brasileiro de Atividade
de Aventura. Achei interessante, porque a academia está
abrindo diálogo com esse segmento, visto que ela não consegue
dar conta sozinha do aspecto técnico. Algumas atividades
requerem o uso de equipamentos muito específicos e sofisticados.
Não é possível realizar, por exemplo, uma exploração de
cavernas no Petar [Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira,
localizado na faixa Sul do Estado de São Paulo] sem o acompanhamento
de um técnico ou sem o uso de equipamentos de segurança.
Ou seja, os técnicos possuem esse conhecimento.
A fusão do saber crítico
e do saber especializado é interessante e enriquecedor,
uma vez que estamos tratando de um assunto que envolve áreas
das mais diversas, como geografia, turismo, ciências sociais,
biologia, educação física etc. Nesse sentido, o livro realiza
uma discussão um pouco mais densa no primeiro capítulo,
no qual abordo questões do ambientalismo, do feminismo e
do ecofeminismo. Do segundo capítulo em diante o enfoque
é mais acessível aos não-acadêmicos. É quando enfoco a questão
da educação ambiental, das características das atividades
de turismo e aventura e do perfil do público que está demandando
essas atividades. Penso que o livro atinge públicos diferentes,
de áreas igualmente distintas.
JU – A senhora aponta o ambientalismo como um
importante movimento social. Há, todavia, quem ainda o veja
como um movimento permeado por ingenuidades. Por que isso
acontece?
Heloísa Bruhns – No início, o ambientalismo incluiu
entre suas propostas um tema que a meu ver foi equivocado.
Ingenuamente, o movimento negou o progresso conquistado
e defendeu o retorno ao campo. Uma utopia simplista manifestou-se
no movimento, relacionada à ruralização e à proposta de
volta às comunidades rurais, qual seja, o retorno aos modelos
de convívio dos pequenos povoados e vilas, negando o conforto,
que foi confundido com luxo, conquistado na sociedade ocidental.
Isso fez com que surgissem várias comunidades alternativas,
sendo que a grande maioria foi extinta. A proposta não teve
o alcance imaginado por um motivo simples: a sociedade em
geral não estava disposta a abrir mão de algumas conquistas
que ela tinha como legítimas. Ou seja, não se tratava propriamente
de retroceder, mas sim de contestar o que estava sendo feito,
de modo que as ações do progresso fossem menos agressivas,
tanto em relação ao planeta quanto em relação aos sujeitos.
Penso que esse equívoco
inicial fez com que alguns segmentos passassem a ver o ambientalismo
como um movimento com propostas ingênuas, mas hoje sabemos
que não se trata disso absolutamente. Embora o movimento
tenha se inspirando no princípio da não-violência, nem tudo
ocorre sempre assim, e grupos de ação direta como Greenpeace
e Earth First! às vezes correm o risco de aproximar os ambientalistas
de milícias defensoras da sobrevivência.
JU – No livro,
a senhora trata das conexões do ambientalismo com outros
movimentos sociais. Que movimentos são esses e como se deram
essas relações?
Heloísa Bruhns – No livro, eu tento fazer uma ponte
entre o feminismo, o ecofeminismo, o ambientalismo, os novos
valores e as novas sensibilidades, envolvidos na busca contemporânea
pela natureza. O ambientalismo carrega novas ideias e sensibilidades
– aproximando-se do feminismo e da vertente ecofeminista
–, configurando uma fase estética, gerando tanto uma atitude
ativa contemplativa sobre a natureza, como uma atitude ativa
destinada a expandir e integrar as relações da sociedade
com a natureza.
O feminismo insere-se nos
“novos movimentos sociais” emergidos durante a década de
1960 – as revoluções estudantis, os movimentos antiguerra
e da contracultura revolucionária , os movimentos pacifistas
e o ambientalismo. Ele veio contestar situações pontuadas
pela modernidade como categorias universais de sujeito masculino
e do conhecimento objetivo. Criticar totalidades e estereótipos
universais é uma opção teórica dos estudos feministas. Ora,
não existe sujeito universal, existem sujeitos particulares
em situações igualmente particulares; localidades particulares,
com interesses e necessidades muito diferentes entre si.
No início, direcionado para a contestação social feminina,
o feminismo expandiu-se, incluindo a formação de identidades
sexuais e de gênero, desafiando a noção de que homens e
mulheres eram parte da mesma identidade, ou seja, da mesma
“humanidade” Assim, politizou a subjetividade, a identidade
e o processo de identificação: homens/mulheres; mãe/pai;
filho/filha.
O feminismo propôs também
um olhar mais sensível em relação às questões que vinham
ocorrendo na sociedade em geral, tanto no mundo oriental
quanto ocidental, como a da agressividade em relação ao
planeta e aos sujeitos. Apontou a necessidade de incorporarmos
parâmetros não-racionais à nossa leitura da realidade e
de nos aproximarmos de valores como a sensibilidade, a fragilidade,
a tolerância, a solidariedade, entre outros, embora devamos
considerar que esses valores merecem receber tratamento
contextualizado, uma vez que suas construções históricas
requerem tal cuidado. A vertente do ecofeminismo procura
incorporar a visão das mulheres às discussões acerca da
problemática ambiental e tem orientado movimentos ambientalistas
e feministas em várias partes do mundo
JU – Como marco histórico, estamos falando das
décadas de 60 e 70, é isso?
Heloísa Bruhns – Algumas práticas de lazer tendo
como pano de fundo o ambientalismo enquanto movimento crítico-social
surgem ou despontam com outras características a partir
de 1960, muito próximas às peregrinações do movimento hippie
ou aos seus propósitos de volta ao campo, onde a busca pela
natureza representava uma contestação de valores em relação
à determinada produção e ao consumo.
Atualmente, a natureza pode
ser considerada como território da experiência, afastando-se
da contestação inicial. Porém, é importante lembrar que
experiência está associada a tentar, testar, arriscar, ou
seja, implica em aventurar-se. Podemos visualizar aí uma
espécie de protesto contra um ritmo de vida orientado unicamente
para a produção. As visitas à natureza traduzidas nas formas
de acampamento, caminhadas, exploração de cavernas e montanhismo
tornam-se cada vez mais frequentes, desencadeando uma série
de atividades como rafting, canyoning, bóia-cross, cascading,
tirolesa e outros.
JU – O que há de novo no movimento ambientalista?
Heloísa Bruhns – Atualmente, podemos adotar como
“ambientalista” uma variada gama de pessoas interessadas
nas questões ambientais. Muitas delas valorizam estilos
de vida rurais, caminhadas, práticas de acampamento e algumas
integram organizações ambientalistas como a WWF [World Wildlife
Fund], SOS Mata Atlântica e Projeto Tamar.
Observamos ações diversas, que provavelmente não seriam
realizadas há algumas décadas, como observar abutres na
Croácia ou baleias nas Ilhas Canárias. Essas pessoas são
denominadas “ecovoluntários”. Viajam para trabalhar, com
direito a hospedagem e refeição. Policiam, por exemplo,
o ecoturismo marinho e instruem a população sobre a importância
da preservação.
JU – Como o homem é visto dentro desse contexto
de preservação do planeta?
Heloísa Bruhns – Estamos vivendo um período de discussões
muito efervescente, principalmente por conta das consequências
do aquecimento global. A necessidade de repensarmos a nossa
relação com o planeta não pode ficar restrita apenas aos
fatores físico-bióticos. O ambientalismo mostrou que a questão
ambiental se relaciona também com a questão da qualidade
de vida do sujeito. E a qualidade de vida está intimamente
relacionada à necessidade fundamental de erradicação da
miséria e de melhor distribuição de renda. Ou seja, uma
vida digna pressupõe que problemas de saúde, educação, habitação
e alimentação estejam sanados.
JU – Voltando à questão da prática de atividades
de aventura, essas experiências estão vinculadas ao consumo
em alguma medida. Muitas são promovidas por agências de
turismo, que obviamente cobram pelo serviço. Alguma crítica
a essa relação?
Heloísa Bruhns – No Brasil, a questão comercial em
relação aos grupos organizados prevalece bastante, o que
não acontece tanto na Europa. Em 2007, eu desenvolvi uma
pesquisa como professora visitante na Nottigham Trent University.
Apenas em Nottingham, onde eu morava, cheguei a participar
de cinco grupos diferentes de caminhada. Nenhum deles estava
associado a agências de turismo. Para o europeu, essa prática
parece ser mais comum. O brasileiro, ao contrário, prefere
se associar a uma agência por conta de comodidade e segurança.
Ou seja, o lado comercial e mercadológico existe. Entretanto,
o mesmo ocorre em relação a grupos que se aventuram sozinhos,
pois seus membros compram equipamentos, muitos deles de
grife.
No livro tento mostrar que
essa questão exige a busca da complexidade envolvida no
tema. Enfoques sobre a invasão do consumo na nossa vida
cotidiana tornaram-se assunto comum na sociedade urbano-industrial
há algum tempo, conduzindo os sujeitos a acreditarem na
manipulação de nossos costumes e comportamentos. Nessa perspectiva,
o consumo representa a trapaça do mercado invadindo todos
os aspectos da vida.
“A qualidade de vida
está intimamente
relacionada à necessidade
fundamental de erradicação
da miséria
e de melhor
distribuição de renda” |
Essas abordagens tornam-se
simplistas, pois são verificadas manifestações de oposição
e aceitação em relação às mensagens veiculadas pela indústria
cultural, implicando numa dinâmica das relações de classes,
com um reposicionamento constante dos diversos grupos sociais.
A interpretação do consumo como mero fenômeno econômico
despreza os fenômenos expressivos que entram em tensão com
a racionalização ou com as pretensões de racionalizar a
vida social. Embora concorde que as garras do poder econômico
e a potência do mercado têm o poder de ditar normas e induzir
comportamentos, não posso olhar o homem como um ser simplesmente
consumidor, pois estaria realizando uma análise simplista,
ingênua e reducionista da questão, ao mesmo tempo em que
empobreceria a humanidade nas suas possibilidades de expressão
e manifestação.
JU – Normalmente, nós vemos mais ações das ONGs
do que dos entes públicos quando o assunto é meio ambiente.
O poder público continua participando timidamente dessa
questão?
Heloísa Bruhns – Ao contestar instrumentos sócio-culturais
e político-econômicos de organização das sociedades e ao
questionar teorias e práticas em torno da luta pelo poder,
o ambientalismo vem propor novas configurações do expressar
a política, de fazer reivindicações, de agir sobre os temas
de interesse coletivos e individuais.
O movimento defende o exercício
da política do cotidiano e da identidade na transformação
das relações fundamentais, mesmo que essa ação atinja somente
uma localidade específica. Considera essa forma de fazer
política mais efetiva quando comparada ao enfrentamento
dos jogos macro do poder instituído, pois não concorda com
suas regras. Portanto, acredita que a solução não vem da
mesma matriz danosa que se tenta evitar.
O ambientalismo propõe uma
mudança de perspectiva na tradicional concepção de política
e, consequentemente, novas formas de fazer política e se
relacionar com o poder. A política de identidade visualiza
virtudes na flexibilidade e mobilidade e se concentra em
questões particulares, reconhecendo a inevitabilidade da
diferença e da heterogeneidade, desconfiando dos discursos
políticos que giram em torno de imagens do universal e da
massa. Entre as décadas de 1960 e 1990, os movimentos e
as lutas políticas que mais se destacaram, tanto nos países
centrais como nos periféricos e semiperiféricos, foram protagonizados
por grupos sociais compostos por identidades não diretamente
classistas, como estudantes, mulheres, grupos étnicos e
religiosos, pacifistas, ecológicos.
As ONGs, embora não desvinculadas
totalmente do poder instituído, tentam garantir o mínimo
de autonomia e independência nas suas ações, criando regras
diferenciadas, tentando um afastamento dos entraves burocráticos.
Iniciativas particulares como participar de mutirões para
recolhimento do lixo das praias e trilhas, desenvolver projetos
voluntários para a erradicação do analfabetismo, criar grupos
para trabalhar com material reciclado etc demonstram possibilidades
mais independentes em relação ao poder público.
JU – Como é
o seu olhar sobre essas experiências contemporâneas relacionadas
à busca pela natureza?
Heloísa Bruhns – Essa busca pela natureza muitas
vezes traduzida como errância, incorporando o deslocamento,
o trânsito, manifesta uma insatisfação contra a estabilidade
positivista do mundo estabelecido relacionada a uma tentativa
– bem sucedida – de domesticação das massas, do assentamento
no trabalho e no destino à residência.
Essas pequenas, porém essenciais
aventuras errantes, sem muito propósito definido, reconciliam
desejos e sua materialização, por meio de uma experiência
grupal, na qual os sentidos e os sentimentos tornam-se a
base a partir da qual surgem comportamentos e ideias, criando
laços ou conflitos, concordâncias ou discordâncias, ambiguidades
e contradições.
“Surgiu uma noção
de ambientalismo
na qual está embutida
não apenas a preservação, de maneira isolada
e estanque, mas integrando uma
infinidade de conteúdos” |
Frente a uma ideologia econômica
que tenta direcionar a vida, testemunhamos a necessidade
do “vazio”, da perda, do que não pode ser contabilizado.
Enfim, pela necessidade do imaterial. Ao atentarmos para
o preço das coisas “sem preço”, saberemos dar sentido aos
fenômenos que não querem ter sentido. A questão dessa experiência
– ou aventura – não está em ganhar ou perder – nesse sentido
distancia-se da lógica tradicional e linear do “record”.
Trata-se somente de um fragmento da existência, ao lado
de tantos outros, o qual possui a força misteriosa de fazer-nos
sentir, por um momento, a vida inteira, como se não tivesse
outro objetivo senão sua realização.
O desafio contemporâneo
requer a busca de reinvenções, sobretudo no plano político,
de elos e mediações ou de novos meios de convívio e valores
diferenciados, em um confronto com as sempre mesmas injustiças
conhecidas. Estamos buscando algo indefinido, desconhecido,
compondo instabilidades em um quadro instaurado na reciclagem
de desejos, bem com na reciclagem da própria vida.
Talvez essa busca pela natureza
por meio de experimentações e novos comportamentos traduza
um pouco de tudo isso, pois nela percebemos a influência
mais surda, porém mais profunda, de um mundo em crise, inquietante
e instável, tomado por abalos brutais e animado por mudanças
rápidas; um universo social que se experimenta e do qual
nossos corpos carregam os traços.