MANUEL
ALVES FILHO
Promover
o diálogo entre as ciências sociais e a literatura e, a
partir dessa aproximação, obter elementos para compreender
e interpretar aspectos não tão perceptíveis da sociedade
contemporânea foram os objetivos que nortearam a tese de
doutorado da cientista social Cristina Maria da Silva, defendida
recentemente no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH) da Unicamp. Intitulado Rastros das socialidades –
Conversações com João Gilberto Noll e Luiz Rufatto, o trabalho
procurou pensar a realidade atual, permeada por conflitos
e embates, a partir das narrativas contidas nas obras dos
dois autores brasileiros. A orientadora do estudo foi a
professora Suely Kofes, do Departamento de Ciências Sociais
do IFCH.
De acordo com Cristina, a tese apresenta
uma crítica ao conceito de sociedade, tão caro a alguns
estudiosos, segundo o qual seria possível estabelecer definições
totalitárias para entender o que ocorre na vida social.
Na opinião da pesquisadora, porém, a sociedade não deve
ser vista como um domínio constituído apenas por regras
e funções, no qual as experiências individuais possam ser
unificadas. “As ciências sociais tendem a eleger categorias
e conceitos para tentar se aproximar da vida social, como
o de sociedade ou cultura. Ocorre que a sociedade também
se configura por meio de conflitos, embates e encontros
de alteridades. Se a sociabilidade deu conta de trabalhar
a questão dos indivíduos inseridos na vida social, a partir
de regras e funções, a socialidade, conceito que emprego
no trabalho, surge como contraponto a ela, para dar conta
das altercações, que a meu ver singularizam a nossa realidade
atual”, explica.
Parte dos estudos que deram sustentação
à tese foram desenvolvidos na França, mais especificamente
no Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano, Paris
V, unidade da Sorbonne, sob orientação do professor Michel
Maffesoli. “Essa experiência me ajudou a compreender melhor
as ciências sociais contemporâneas e me deu subsídios para
analisar as narrativas literárias”, afirma Cristina. Ela
conta que inicialmente pensou em trabalhar com outros autores,
mas elegeu entre eles somente Noll e Rufatto. Depois de
analisar mais detidamente as obras de ambos, concluiu que
os escritos deles traziam os rastros das socialidades que
pretendia decifrar. “Procurei estabelecer um diálogo entre
as ciências sociais e esses dois escritores, que chamei
de conversações. A ideia não foi tomar conceitos das ciências
sociais e colar na literatura, o que poderia ser chamado
de uma sociologia da literatura. O que eu fiz foi pensar
se era possível construir uma possível etnografia ficcional,
de modo a enxergar a literatura não como um reflexo da sociedade,
mas como o avesso dela”, explicita.
O ponto que aproxima as obras de Noll e
Rufatto, conforme Cristina, é justamente o fato de ambos
não registrarem em seus livros somente o que está nos signos
da vida social, da forma como normalmente são dados, mas
de maneira deslocada. “Eles se valem daquilo que está na
sociedade, mas contam de outra forma, mostrando que os signos
são contingentes e que não existe uma verdade imutável.
A meu juízo, a literatura não está aí para dizer como as
coisas devem ser ou acontecer. Antes, ela serve para falar
daquilo que não está posto, do que ficou de fora da construção
da sociedade e da cultura”, analisa a autora da tese. Ela
acrescenta que outra característica marcante nas obras de
Noll e Rufatto é a provisoriedade.
Ou seja, eles falam com freqüência de situações
que são provisórias, efêmeras. “Essa é também uma das características
da sociedade contemporânea. Frequentemente, as pessoas se
pegam achando que algo está se esvaindo, que está escorrendo
por entre os seus dedos”. No caso de Rufatto, prossegue
a cientista social, o escritor trata com frequência do resgate
da memória, principalmente dos imigrantes italianos que
vivem em Minas Gerais e de seus descendentes que migram,
sobretudo para São Paulo. Ele narra o cotidiano desses e
de outros personagens nas mais diversas situações. “Rufatto
se vale de fragmentos da cidade para construir a sua narrativa.
Nela, aparece desde um diálogo dentro de um táxi até detalhes
em torno de uma oração de Santo Expedito, inscrita nesses
panfletos que encontramos na calçada ou nos bancos das igrejas.
Para mim, esses elementos que aparecem fragmentados na literatura
são manifestações das socialidades presentes no cotidiano
de centros urbanos como São Paulo”, compara Cristina.
Os personagens de Noll, destaca a pesquisadora,
não são propriamente migrantes, mas nômades ou desmemoriados.
São pessoas que vivem nas ruas, ex-atores atormentados,
ex-escritores em conflito. “São personagens que sempre estão
em trânsito, vagando pelas vias, rodoviárias e becos de
cidades como Rio de Janeiro, Florianópolis, Porto Alegre
ou Londres. Na minha interpretação, os percursos cumpridos
por essas pessoas constituem formas de rasurar a vida social.
Elas estão o tempo todo se batendo com aquilo que é colocado
na vida social. Ou seja, o escritor trabalha com figurações
que nos permitem pensar aspectos da realidade atual”, analisa
a autora da tese.
Para a elaboração do trabalho acadêmico,
Cristina entrevistou os dois escritores. De acordo com ela,
foram contatos extremamente interessantes e enriquecedores.
“Na verdade, foram bate-papos. Eu não defini um roteiro
ou gravei os diálogos, porque considerei que isso não faria
muito sentido dentro da proposta da tese. Eu não estava
com eles para saber se o que escrevem é tal qual como vivem.
Meu interesse era saber quem eram aquelas duas pessoas”,
diz. Nesses contatos, a cientista social obteve depoimentos
valiosos. Rufatto, por exemplo, falou sobre aspectos relacionados
ao seu processo de criação. “Ele me contou que, quando escreve,
tenta contar uma história do mesmo modo como a gente tenta
se lembrar de algo que aconteceu. Ou seja, a gente não consegue
se recordar de todos os detalhes, mas mesmo assim consegue
descrever o que ocorreu”.
Segundo Cristina, a sua tese está inserida
numa linha de pesquisa que vem sendo desenvolvida no IFHC
sob a coordenação da professora Suely Kofes. Os estudos,
informa, trabalham com questões das trajetórias, narrativas
e biografias dentro das ciências sociais. “Por meio dessa
abordagem, o grupo tem proposto um questionamento aos métodos
tradicionais empregados pelas ciências sociais para analisar
a vida social. Nós procuramos compreender a sociedade contemporânea
por meio dos diálogos e relações entre os indivíduos, que
são normalmente pontuados por conflitos”.
A
pesquisadora entende que a principal contribuição do seu
trabalho acadêmico está justamente no uso do diálogo entre
as ciências sociais e a literatura para suavizar as teorizações
áridas tão presentes nas abordagens das ciências sociais.
“Ou seja, busquei pensar o ‘objeto de estudo’ de uma maneira
mais poética”, finaliza Cristina, que contou, no Brasil,
com bolsa concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) e bolsa no exterior fornecida
pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes), órgãos vinculados, respectivamente, aos
ministérios da Ciência e Tecnologia e Educação.
Os autores
João Gilberto Noll e Luiz Rufatto estão entre os mais importantes
escritores da atualidade no Brasil. O primeiro nasceu em
1946, em Porto Alegre. Tem 13 livros publicados, entre romances
e contos. Ganhou diversos prêmios literários, entre eles
o Jabuti, em cinco ocasiões: 1981, 1994, 1997, 2004 e 2005.
Sua obra mais recente, Acenos e Afagos, é de 2008. O segundo
nasceu em 1961, em Cataguases, Minas Gerais. Seu primeiro
livro, Histórias de Remorsos e Rancores, uma coletânea de
contos, foi publicado em 1998. Em 2005, iniciou a série
Inferno Provisório, projetada para cinco volumes, com os
livros Mamma, son tanto felice e O Mundo inimigo. Na sequência,
escreveu Vista parcial da noite e O livro das impossibilidades.