Os
anos 1990, apenas, não dão conta de toda a complexidade
que envolve a questão da internacionalização da economia
brasileira. Estudo de doutorado apresentado no Instituto
de Economia (IE) da Unicamp, envolvendo o período de 1951
a 1992, mostra como o investimento direto estrangeiro (IDE),
a despeito de ter contribuído para o Brasil avançar na industrialização,
inclusive para a formação de uma cadeia produtiva complexa,
trouxe um aumento gradativo da nossa dependência. “Daí o
título da tese, A Arte da Conquista, pois se trata de fato
de um processo engenhoso de conquista, em articulação com
as burguesias internas e o Estado”, diz o economista e professor
Fábio Antonio de Campos, autor do trabalho.
Na tese, que foi orientada
pelo professor Plínio Soares de Arruda Sampaio Jr., Campos
cunhou o termo “complexo multinacional” para se referir
a esta articulação que possui antecedentes no segundo governo
Vargas e vem até o início do período neoliberal. “Ainda
que sejam evidentes os problemas que hoje enfrentamos por
conta da chamada globalização (desnacionalização de setores
da economia, privatizações e regressão produtiva), procuro
analisar a internacionalização brasileira como um processo
de longo prazo, com idas e vindas, e que não nasce nos anos
90”.
O economista lembra que,
a partir dos 50, a industrialização foi vista como um projeto
de desenvolvimento nacional e emancipação econômica. “Não
é por acaso que os livros se referem no título a ‘formação
econômica do Brasil’ ou ‘revolução brasileira’. O complexo
multinacional se processou para permitir um avanço na industrialização,
mas com uma dinâmica ditada pela valorização externa. É
esta lógica externa que nos acompanha desde sempre e que
não necessariamente se expressa em termos de um desenvolvimento
nacional em sentido lato – e sim um desenvolvimento capitalista
orientado por um variado arco de negócios das burguesias
internas associadas ao capital internacional. A indústria
é mais um negócio”.
Segundo
Fábio Campos, foi Florestan Fernandes quem atentou para
a dupla articulação do capital internacional com a burguesia
local e o Estado. “As burguesias internas podem ser frágeis
no âmbito externo, mas são fortes internamente e dominam
o aparelho político, o que Florestan chamou de ‘politização
do espaço nacional’. Ela é muito eficiente inclusive para
garantir a rentabilidade dos associados, calibrando e controlando
o nível de modernidade a ser internalizada. Obviamente,
há empresários brasileiros que não comungam disso e abordo
tais conflitos de interesse na tese. Entretanto, apesar
das contradições e dos conflitos, a internacionalização
se aprofundou”.
O autor divide sua tese
de doutorado em três grandes capítulos, nos quais explana
sobre os condicionantes externos, os condicionantes internos
e a relação do Estado na internacionalização da economia
brasileira ao longo das décadas enfocadas. “Tento mostrar
que existiram diferentes padrões de acumulação capitalista
e que isso se desdobrou para a periferia (como a América
Latina) com diferentes etapas de desenvolvimento, conforme
os interesses do capital internacional. Isso não ocorreu
de forma reflexa, mas a partir de dentro e em aliança à
particularidade e ao tempo histórico da economia brasileira”.
Momentos históricos
Fábio Campos recorda que o padrão de desenvolvimento varguista
– antecedendo à internacionalização do mercado interno –
procurava impor um certo controle sobre o investimento estrangeiro,
a exemplo do que ocorria com o capital privado nacional.
“Vargas tinha uma visão vertical do processo de desenvolvimento.
Ele não era contra o capital internacional – tanto que convidou
empresas multinacionais a entrarem no país – mas queria
sua submissão ao Estado. O projeto varguista fracassou porque
os condicionantes externos não eram propícios em época de
pós-guerra e recuperação européia, e também por contradições
internas”.
É no governo Juscelino Kubitschek,
como acrescenta o pesquisador, que o Brasil efetivamente
progrediu “50 anos em 5” em termos de industrialização,
crescimento econômico e urbanização, ao tempo em que, nos
centros capitalistas recuperados da guerra, tinha início
a descentralização produtiva das multinacionais, que viam
surgir aqui um mercado promissor. “O ingresso do IDE, com
todo o apoio do Estado, foi determinante para a implantação
da indústria pesada e um nível de desenvolvimento capitalista
compatível com a internacionalização produtiva”.
Contudo,
Fábio Campos observa uma inflexão em relação ao projeto
de desenvolvimento pregado por Vargas. “Embora definisse
tarefas e organizasse o processo de industrialização pesada,
JK optou por uma visão horizontal, compondo com o capital
internacional e os interesses privados sem impor uma disciplina
institucional mais incisiva. O problema é que o capital
internacional veio atrás do filé mignon da economia, que
é o mercado interno. Este grupo, que denomino como parte
estratégica do complexo multinacional, se fortaleceu a ponto
de exigir um aprofundamento da internacionalização, o que
acabou ocorrendo durante o regime militar por meio de facilidades
às filiais estrangeiras, dentre as quais, a captação de
empréstimos externos”.
O pesquisador destaca na
tese a crise da industrialização (1974-80), fase em que
o IDE voltado ao mercado interno continuou a ingressar no
país. No entanto, a crise mundial que elevou os preços dos
recursos naturais e das matérias-primas, atraiu um novo
IDE, que buscava na periferia a oferta destes bens a custos
favoráveis para comerciá-los globalmente. “Este novo IDE,
a pretexto do elevado risco de ter que mobilizar grandes
somas, também queria garantias e facilidades institucionais.
Os interesses privados do complexo multinacional continuaram
a se sobrepor ao interesse público”.
O
autor atenta que, justamente na explosão da crise, o governo
Geisel lançou o II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento),
no intuito de completar os setores pesados da economia,
consolidando a “revolução industrial” para entrar no rol
das grandes potências. “Era um plano para fortalecer a perna
fraca do tripé, o capital nacional, mas esta e uma segunda
perna foram quebradas: dos empresários brasileiros, que
não conseguiram desenvolver tecnologia autônoma, e do Estado,
em situação complicada diante de um padrão de financiamento
dependente dos empréstimos externos”.
Limiar da liberalização
De acordo com Fábio Campos, o neoliberalismo começa nesta
crise da dívida, período que Celso Furtado definiu como
da “construção interrompida”. “Na fase de internacionalização
do mercado, quando é possível aliar o padrão de acumulação
capitalista definido logo após a Segunda Guerra ao desenvolvimento
do mercado interno por meio da industrialização pesada,
o país progride”.
Por
outro lado, atenta o pesquisador, quando muda o padrão de
acumulação do sistema como um todo, os interesses internos
se articulam de outra forma externamente, não mais por rígidas
fronteiras nacionais (com medidas como protecionismo, política
industrial, avanço no encadeamento inter-setorial e seleção
de importações). “Todo o aparelho desenvolvimentista se
mostra inadequado aos novos tempos de financeirização, em
que o capital exige maior mobilidade e permeabilidade entre
os espaços nacionais”.
O autor aponta o início
da década de 80 como do limiar da liberalização, quando
o Estado abre mão da industrialização nos moldes desenvolvimentistas
e acaba cedendo a uma maior hierarquia do complexo multinacional.
É uma fase em que as filiais estrangeiras recuam nos investimentos
e realizam altas remessas para as matrizes, enquanto o Estado
se submete ao drástico ajuste estrutural para renegociar
a dívida sob tutela do FMI.
“Nos anos 90, vêm as privatizações,
desnacionalizações e abertura do mercado. É o momento de
desmontar o aparelho desenvolvimentista do Estado e fazer
prevalecer a lógica dos negócios, não havendo mais prioridade
na industrialização por complexos encadeamentos produtivos.
O processo de conquista está armado, o que é resultado de
uma arte”, finaliza Fábio Campos.