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Dos dois lados da fronteira
Pesquisa do Nepo revela nuances da migração
de bolivianas para a cidade de Corumbá
ISABEL
GARDENAL
A
busca de novos horizontes tem movido milhões de pessoas a
migrarem, fenômeno que vem ganhando maior importância nos
últimos 20 anos, sobretudo nas regiões de fronteira entre
países, onde se articulam várias movimentos populacionais
ainda pouco conhecidos. A razão é quase sempre de ordem econômica.
Os homens predominam nesta decisão, mas hoje muitas mulheres
têm protagonizado este papel. É o caso das bolivianas na fronteira
de Corumbá (Mato Grosso do Sul). O fenômeno foi tema de estudo
de uma tese de doutorado defendida recentemente no Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) pela socióloga Roberta
Guimarães Peres, com bolsa CNPq.
Pesquisadora do Núcleo de
Estudos da População (Nepo), ela – que no mestrado investigou
os diferenciais por sexo no retorno migratório, abordando
o fluxo Criciúma - Estados Unidos - Criciúma – concluiu no
doutorado que as mulheres bolivianas têm estratégias próprias
para migrar e inserção diferenciada no lugar de destino, em
geral se estabelecendo nos grandes núcleos urbanos e se dedicando
quase que exclusivamente às atividades comerciais.
Para chegar a essas constatações,
além de ter feito um amplo estudo bibliográfico, Roberta fez
uma pesquisa de campo com o único objetivo de estudar o fluxo
migratório, orientada pela professora Rosana Baeninger, do
Nepo. Entende-se por fluxo migratório uma referência genérica
ao movimento de entrada e saída de pessoas que se deslocam
do seu lugar de moradia por um período de tempo. Ao longo
desses anos, o assunto vinha sendo analisado sob a perspectiva
dos migrantes do sexo masculino. Em diversos relatos, observou-se
que as mulheres apenas os acompanhavam, ora como filhas, ora
como esposas. O migrante era definido como homem sem que sequer
fosse questionada a presença das mulheres nos fluxos.
Roberta comenta que as mulheres
sempre migraram e que, com o movimento feminista, houve um
esforço concentrado para levar em consideração a questão da
migração feminina nos estudos de migração internacional principalmente.
A partir dessa presença, porém, os estudiosos passaram a pensar
quais seriam os diferenciais e impactos causados por elas
ao circular em espaços migratórios que eram traduzidos, a
princípio, como papeis masculinos. Segundo a pesquisadora,
a questão da migração feminina é muito recente. “Somente agora
estão levando em conta a participação da mulher como agente
de equidade”, expõe a socióloga.
Ela ainda esclarece que, em
migração, para cada fluxo percorrido, corresponde uma perspectiva
teórica diferente. Se a ideia é estudar migração interna do
Nordeste para São Paulo, a mulher migrante tem um traço característico.
E a cada contexto isso muda. Há, por exemplo, fluxos migratórios
em que a mulher carrega um viés libertador ‘das amarras culturais’.
“No caso das bolivianas, normalmente não é assim. Elas levam
uma vida na Bolívia que é mantida por intermédio dos traços
culturais em Corumbá, mas a mudança entre os dois cenários
sem dúvida provoca transformações nos papeis de gênero que
elas exercem frente ao marido e aos filhos. Mudam rapidamente
de posição, de status e também ganham maior autonomia para
negociar dentro da família.”
Detalhando
a importância social de um fluxo migratório, Roberta explica
que ele não se dá exclusivamente pelo número de pessoas que
se movimentam e sim pelo impacto que provocam nos lugares
onde elas chegam. “Especificamente no caso de Corumbá, não
dá para não ver as mulheres bolivianas, pois dominam a atividade
comercial. Porém a questão feminina no fluxo de bolivianos
para Corumbá, segundo a socióloga, é uma especificidade, já
que de todos os fluxos de estrangeiros para Corumbá – seja
de argentinos, seja de paraguaios e outros latinos – somente
entre os bolivianos é que as mulheres aparecem na mesma proporção
que os homens e, em alguns períodos, são maioria.
Chegando ao Brasil, as bolivianas
assimilam apenas em termos a cultura local, já que prosseguem
não abrindo mão de que os filhos estudem do outro lado da
fronteira e continuam a utilizar serviços médicos do seu país
de origem. Talvez neste ponto a motivação para migrar seja
a mesma entre homens e mulheres: ambos atravessam a fronteira
pensando em encontrar melhores condições de trabalho. Então
neste particular sobressai uma certa vantagem para as mulheres,
que acabam encontrando este cenário culturalmente diferente
mas que muito lhes favorece na renegociação com base nos papeis
de gênero.
Resultados
O trabalho de campo de Roberta foi antecedido pela sua estadia,
por três meses, na França, com outra bolsa de doutorado, vinda
do Institut de Recherche pour le Développement (IRD). Lá teve
a oportunidade de vasculhar a mais destacada produção que
existe sobre migração feminina do mundo – a maioria dos trabalhos
disponíveis está publicada em língua francesa. Naquele país,
o assunto é recorrente principalmente por conta dos relatos
de um intenso fluxo de tráfico de mulheres na Europa, na maioria
das vezes africanas. “Como no Brasil não tínhamos praticamente
nenhuma base de dados, o tráfico de mulheres na Europa acabou
se constituindo uma referência interessante para começar o
nosso estudo”, realça.
Um dos achados foi a observação
de uma proeminente rede social feminina de ajuda, um conceito
próprio dos estudos de migração que liga lugares de origem
e destino. Reconstituindo um pouco da trajetória das bolivianas,
Roberta conta que elas saem de suas casas na Bolívia com mulheres
– normalmente irmãs, tias, mães e madrinhas, figuras muito
importantes no fluxo para Corumbá. “Verificamos que este parentesco
ritual é muito comum.” As mulheres elaboram os caminhos a
serem percorridos e suas estratégias migratórias, todos em
companhia de outras mulheres. Trabalham com mulheres e, quando
chegam a Corumbá, trazem mais mulheres para a fronteira. Trata-se
de uma rede de apoio para o primeiro emprego, com ajuda em
caso de hospedagem e financiamento da viagem feminina. Se
um filho, por exemplo, for estudar no lado boliviano da fronteira,
deve estudar em Santa Cruz e certamente irá se hospedar na
casa de uma mulher da família.
Outra curiosidade do estudo,
que também é específico da migração feminina e boliviana em
Corumbá, é o planejamento do ciclo de vida em função das etapas
migratórias já percorridas. Na prática, as mulheres decidem
quando se casarão, quando terão filhos e o mesmo deverá ocorrer
em todas as etapas do seu ciclo de vida. A cada lugar que
passarem, elas farão uma trajetória migratória longa até chegar
a Corumbá. “Então se locomovem dentro da Bolívia até atravessarem
a fronteira e, nesta movimentação, passam por diferentes espaços
e etapas migratórias, utilizando recursos dos lugares e das
pessoas que prestam auxílio naquele momento.”
Em outros fluxos migratórios
femininos internacionais, o ciclo de vida difere: é planejado
em função da chegada ao destino. Quando as mulheres chegam
lá, então se casam ou têm filhos, porque o destino tem uma
perspectiva melhor na concepção delas. “Enquanto as brasileiras
nos EUA querem ter filhos americanos, as bolivianas querem
que os seus filhos sejam bolivianos. Inclusive não migram
enquanto isso não acontece.” O pensamento comum é que, tendo
atravessado a fronteira, a mulher volte à etapa migratória
anterior para ter seu filho ali.
São milhares de pessoas chegando
a Corumbá diariamente. “A fronteira tem o seu impacto por
causa disso. Dependendo do volume de pessoas, é muito difícil
identificar as migrantes, posto que ali muitas mulheres enfrentam
problemas com documentação. Para conseguir 20 entrevistas
com as bolivianas, Roberta exemplifica que permaneceu uma
semana em Corumbá. Adotou como conduta não perguntar o nome
das entrevistadas e onde elas moravam. As perguntas tiveram
que ser mais indiretas. Como muitas delas estão vivendo ilegalmente
no país e circulam entre a fronteira, por ser mais permeável,
então torna-se praticamente impossível dizer com precisão
o volume exato de bolivianas, o que não deixa de ter um impacto
evidente no local.
Contribuições
A questão metodológica da investigação acabou por conjugar
fontes de dados bastante distintas. Foram elas todos os Censos
Demográficos realizados no Brasil desde 1872 até o ano 2000;
a Encuesta Corumbá, que é uma pesquisa de campo específica
sobre migração, feita dentro do projeto “Migrações internacionais
e a questão ambiental no Mercosul”; e uma pesquisa qualitativa
sobre Corumbá. “Procuramos explorar todas as fontes até o
limite e buscar superá-lo com uma fonte cada vez mais específica,
até chegar à entrevista com as mulheres bolivianas em Corumbá.”
Associar as três fontes foi
um desafio para Roberta, exigindo um debate metodológico com
sua orientadora a fim de estruturar a tese como um todo e
usar como uma fonte de dados a Encuesta Corumbá, uma contribuição
que julgou “importantíssima” para o andamento da pesquisa.
Outra contribuição do trabalho foi teórica. A pesquisa procurou
discutir a migração feminina e a inserção das mulheres na
perspectiva de análise da migração internacional, fato que
é uma novidade, pois há poucos trabalhos produzidos neste
sentido.
Roberta acredita que as maiores
dificuldades encontradas pela migrante boliviana são ainda
chegar a Corumbá sem o apoio de outras conterrâneas, sem ter
passado por outras etapas migratórias ou sem ter os recursos
necessários para se manter naqueles primeiros momentos. “As
dificuldades também estão relacionadas ao idioma e ao clima,
pois as bolivianas vêm dos Andes, da neve, para viver em um
dos lugares mais quentes do Brasil. Então a adaptação física
junto com a cultural são muito complicadas para elas”, reporta.
Apesar de o comércio ser reservado às mulheres e ser uma atividade
desvalorizada na Bolívia, quando elas adentram a fronteira
brasileira, encontram um cenário totalmente promissor.
Banco de dados do Nepo é referência
A socióloga explana
que a Encuesta Corumbá, pesquisa exclusiva sobre migração
realizada na fronteira por pesquisadores da Unicamp,
resultou num banco de dados muito importante para a
comunidade científica que pretende estudar migração,
ainda que o objeto de estudo nada tenha a ver com Corumbá
ou com a fronteira. “É muito raro existir esse tipo
de pesquisa pelo seu alto custo e pelo tempo que demanda
para preparação e tabulação dos dados”, diz.
Este banco de dados,
sediado no Nepo, já está pronto e possui 364 dados bolivianos
e duas mil pessoas entrevistadas. Envolve um questionário
longo, com informações não somente sobre migrantes mas
também sobre famílias inteiras e os domicílios onde
estão inseridos. As informações foram processadas tendo
como critério de seleção um domicílio com um chefe boliviano
(da família ou do domicílio). Detectado este chefe,
há informações sobre todos os membros do domicílio e
sobre parentes, amigos e componentes da família que
vivem fora.
Para apurar esses dados
sobre migração feminina, foi então realizada uma segunda
pesquisa de campo (a de Roberta), com entrevistas qualitativas
com mulheres bolivianas, em busca de suas especificidades
ao longo das trajetórias migratórias. Essas entrevistas,
associadas aos dados resultantes da Encuesta Corumbá,
permitiram um aprofundamento neste fluxo migratório,
contribuindo para os estudos atuais por meio da incorporação
das mulheres a este fenômeno. |
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