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Dos dois lados da fronteira

Pesquisa do Nepo revela nuances da migração
de bolivianas para a cidade de Corumbá

ISABEL GARDENAL

Apresentação de grupo folclórico em São Paulo, cidade que abriga grande contingente de migrantes bolivianos: papel, rotina e atuação das mulheres em Corumbá são diferentes” (Foto: Antonio Scarpinetti) A busca de novos horizontes tem movido milhões de pessoas a migrarem, fenômeno que vem ganhando maior importância nos últimos 20 anos, sobretudo nas regiões de fronteira entre países, onde se articulam várias movimentos populacionais ainda pouco conhecidos. A razão é quase sempre de ordem econômica. Os homens predominam nesta decisão, mas hoje muitas mulheres têm protagonizado este papel. É o caso das bolivianas na fronteira de Corumbá (Mato Grosso do Sul). O fenômeno foi tema de estudo de uma tese de doutorado defendida recentemente no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) pela socióloga Roberta Guimarães Peres, com bolsa CNPq.

Pesquisadora do Núcleo de Estudos da População (Nepo), ela – que no mestrado investigou os diferenciais por sexo no retorno migratório, abordando o fluxo Criciúma - Estados Unidos - Criciúma – concluiu no doutorado que as mulheres bolivianas têm estratégias próprias para migrar e inserção diferenciada no lugar de destino, em geral se estabelecendo nos grandes núcleos urbanos e se dedicando quase que exclusivamente às atividades comerciais.

Para chegar a essas constatações, além de ter feito um amplo estudo bibliográfico, Roberta fez uma pesquisa de campo com o único objetivo de estudar o fluxo migratório, orientada pela professora Rosana Baeninger, do Nepo. Entende-se por fluxo migratório uma referência genérica ao movimento de entrada e saída de pessoas que se deslocam do seu lugar de moradia por um período de tempo. Ao longo desses anos, o assunto vinha sendo analisado sob a perspectiva dos migrantes do sexo masculino. Em diversos relatos, observou-se que as mulheres apenas os acompanhavam, ora como filhas, ora como esposas. O migrante era definido como homem sem que sequer fosse questionada a presença das mulheres nos fluxos.

Roberta comenta que as mulheres sempre migraram e que, com o movimento feminista, houve um esforço concentrado para levar em consideração a questão da migração feminina nos estudos de migração internacional principalmente. A partir dessa presença, porém, os estudiosos passaram a pensar quais seriam os diferenciais e impactos causados por elas ao circular em espaços migratórios que eram traduzidos, a princípio, como papeis masculinos. Segundo a pesquisadora, a questão da migração feminina é muito recente. “Somente agora estão levando em conta a participação da mulher como agente de equidade”, expõe a socióloga.

Ela ainda esclarece que, em migração, para cada fluxo percorrido, corresponde uma perspectiva teórica diferente. Se a ideia é estudar migração interna do Nordeste para São Paulo, a mulher migrante tem um traço característico. E a cada contexto isso muda. Há, por exemplo, fluxos migratórios em que a mulher carrega um viés libertador ‘das amarras culturais’. “No caso das bolivianas, normalmente não é assim. Elas levam uma vida na Bolívia que é mantida por intermédio dos traços culturais em Corumbá, mas a mudança entre os dois cenários sem dúvida provoca transformações nos papeis de gênero que elas exercem frente ao marido e aos filhos. Mudam rapidamente de posição, de status e também ganham maior autonomia para negociar dentro da família.”

A socióloga Roberta Guimarães Peres, cuja tese foi defendida no IFCH: “Mudança entre os dois cenários provoca transformações nos papeis de gênero” (Foto: Antoninho Perri) Detalhando a importância social de um fluxo migratório, Roberta explica que ele não se dá exclusivamente pelo número de pessoas que se movimentam e sim pelo impacto que provocam nos lugares onde elas chegam. “Especificamente no caso de Corumbá, não dá para não ver as mulheres bolivianas, pois dominam a atividade comercial. Porém a questão feminina no fluxo de bolivianos para Corumbá, segundo a socióloga, é uma especificidade, já que de todos os fluxos de estrangeiros para Corumbá – seja de argentinos, seja de paraguaios e outros latinos – somente entre os bolivianos é que as mulheres aparecem na mesma proporção que os homens e, em alguns períodos, são maioria.

Chegando ao Brasil, as bolivianas assimilam apenas em termos a cultura local, já que prosseguem não abrindo mão de que os filhos estudem do outro lado da fronteira e continuam a utilizar serviços médicos do seu país de origem. Talvez neste ponto a motivação para migrar seja a mesma entre homens e mulheres: ambos atravessam a fronteira pensando em encontrar melhores condições de trabalho. Então neste particular sobressai uma certa vantagem para as mulheres, que acabam encontrando este cenário culturalmente diferente mas que muito lhes favorece na renegociação com base nos papeis de gênero.

Resultados
O trabalho de campo de Roberta foi antecedido pela sua estadia, por três meses, na França, com outra bolsa de doutorado, vinda do Institut de Recherche pour le Développement (IRD). Lá teve a oportunidade de vasculhar a mais destacada produção que existe sobre migração feminina do mundo – a maioria dos trabalhos disponíveis está publicada em língua francesa. Naquele país, o assunto é recorrente principalmente por conta dos relatos de um intenso fluxo de tráfico de mulheres na Europa, na maioria das vezes africanas. “Como no Brasil não tínhamos praticamente nenhuma base de dados, o tráfico de mulheres na Europa acabou se constituindo uma referência interessante para começar o nosso estudo”, realça.

Um dos achados foi a observação de uma proeminente rede social feminina de ajuda, um conceito próprio dos estudos de migração que liga lugares de origem e destino. Reconstituindo um pouco da trajetória das bolivianas, Roberta conta que elas saem de suas casas na Bolívia com mulheres – normalmente irmãs, tias, mães e madrinhas, figuras muito importantes no fluxo para Corumbá. “Verificamos que este parentesco ritual é muito comum.” As mulheres elaboram os caminhos a serem percorridos e suas estratégias migratórias, todos em companhia de outras mulheres. Trabalham com mulheres e, quando chegam a Corumbá, trazem mais mulheres para a fronteira. Trata-se de uma rede de apoio para o primeiro emprego, com ajuda em caso de hospedagem e financiamento da viagem feminina. Se um filho, por exemplo, for estudar no lado boliviano da fronteira, deve estudar em Santa Cruz e certamente irá se hospedar na casa de uma mulher da família.

Outra curiosidade do estudo, que também é específico da migração feminina e boliviana em Corumbá, é o planejamento do ciclo de vida em função das etapas migratórias já percorridas. Na prática, as mulheres decidem quando se casarão, quando terão filhos e o mesmo deverá ocorrer em todas as etapas do seu ciclo de vida. A cada lugar que passarem, elas farão uma trajetória migratória longa até chegar a Corumbá. “Então se locomovem dentro da Bolívia até atravessarem a fronteira e, nesta movimentação, passam por diferentes espaços e etapas migratórias, utilizando recursos dos lugares e das pessoas que prestam auxílio naquele momento.”

Em outros fluxos migratórios femininos internacionais, o ciclo de vida difere: é planejado em função da chegada ao destino. Quando as mulheres chegam lá, então se casam ou têm filhos, porque o destino tem uma perspectiva melhor na concepção delas. “Enquanto as brasileiras nos EUA querem ter filhos americanos, as bolivianas querem que os seus filhos sejam bolivianos. Inclusive não migram enquanto isso não acontece.” O pensamento comum é que, tendo atravessado a fronteira, a mulher volte à etapa migratória anterior para ter seu filho ali.

São milhares de pessoas chegando a Corumbá diariamente. “A fronteira tem o seu impacto por causa disso. Dependendo do volume de pessoas, é muito difícil identificar as migrantes, posto que ali muitas mulheres enfrentam problemas com documentação. Para conseguir 20 entrevistas com as bolivianas, Roberta exemplifica que permaneceu uma semana em Corumbá. Adotou como conduta não perguntar o nome das entrevistadas e onde elas moravam. As perguntas tiveram que ser mais indiretas. Como muitas delas estão vivendo ilegalmente no país e circulam entre a fronteira, por ser mais permeável, então torna-se praticamente impossível dizer com precisão o volume exato de bolivianas, o que não deixa de ter um impacto evidente no local.

Contribuições
A questão metodológica da investigação acabou por conjugar fontes de dados bastante distintas. Foram elas todos os Censos Demográficos realizados no Brasil desde 1872 até o ano 2000; a Encuesta Corumbá, que é uma pesquisa de campo específica sobre migração, feita dentro do projeto “Migrações internacionais e a questão ambiental no Mercosul”; e uma pesquisa qualitativa sobre Corumbá. “Procuramos explorar todas as fontes até o limite e buscar superá-lo com uma fonte cada vez mais específica, até chegar à entrevista com as mulheres bolivianas em Corumbá.”

Associar as três fontes foi um desafio para Roberta, exigindo um debate metodológico com sua orientadora a fim de estruturar a tese como um todo e usar como uma fonte de dados a Encuesta Corumbá, uma contribuição que julgou “importantíssima” para o andamento da pesquisa. Outra contribuição do trabalho foi teórica. A pesquisa procurou discutir a migração feminina e a inserção das mulheres na perspectiva de análise da migração internacional, fato que é uma novidade, pois há poucos trabalhos produzidos neste sentido.

Roberta acredita que as maiores dificuldades encontradas pela migrante boliviana são ainda chegar a Corumbá sem o apoio de outras conterrâneas, sem ter passado por outras etapas migratórias ou sem ter os recursos necessários para se manter naqueles primeiros momentos. “As dificuldades também estão relacionadas ao idioma e ao clima, pois as bolivianas vêm dos Andes, da neve, para viver em um dos lugares mais quentes do Brasil. Então a adaptação física junto com a cultural são muito complicadas para elas”, reporta. Apesar de o comércio ser reservado às mulheres e ser uma atividade desvalorizada na Bolívia, quando elas adentram a fronteira brasileira, encontram um cenário totalmente promissor.


Banco de dados do Nepo é referência

A socióloga explana que a Encuesta Corumbá, pesquisa exclusiva sobre migração realizada na fronteira por pesquisadores da Unicamp, resultou num banco de dados muito importante para a comunidade científica que pretende estudar migração, ainda que o objeto de estudo nada tenha a ver com Corumbá ou com a fronteira. “É muito raro existir esse tipo de pesquisa pelo seu alto custo e pelo tempo que demanda para preparação e tabulação dos dados”, diz.

Este banco de dados, sediado no Nepo, já está pronto e possui 364 dados bolivianos e duas mil pessoas entrevistadas. Envolve um questionário longo, com informações não somente sobre migrantes mas também sobre famílias inteiras e os domicílios onde estão inseridos. As informações foram processadas tendo como critério de seleção um domicílio com um chefe boliviano (da família ou do domicílio). Detectado este chefe, há informações sobre todos os membros do domicílio e sobre parentes, amigos e componentes da família que vivem fora.

Para apurar esses dados sobre migração feminina, foi então realizada uma segunda pesquisa de campo (a de Roberta), com entrevistas qualitativas com mulheres bolivianas, em busca de suas especificidades ao longo das trajetórias migratórias. Essas entrevistas, associadas aos dados resultantes da Encuesta Corumbá, permitiram um aprofundamento neste fluxo migratório, contribuindo para os estudos atuais por meio da incorporação das mulheres a este fenômeno.

 

 

 

 
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