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Entre o lucro, a balança e o alarmismo
Tese de doutorado analisa implicações
da medicalização da obesidade
MARIA
ALICE DA CRUZ
A
partir do final da década de 1970, a obesidade tornou-se assunto
para os profissionais da área médica, sendo interpretada como
uma doença epidêmica a partir dos anos 1990. Este processo,
chamado pelos sociólogos de medicalização, com o tempo foi
envolvendo muitos atores sociais além dos médicos, entre os
quais representantes de governo, das indústrias farmacêutica
e alimentícia e até mesmo a imprensa, segundo a jornalista
Simone Pallone de Figueiredo, do Laboratório de Estudos Avançados
em Jornalismo (Labjor) da Unicamp. Um estudo da medicalização
da obesidade realizado para sua tese de doutorado mostra,
a partir de textos jornalísticos e da literatura sobre diversos
campos da ciência – sociologia, antropologia, medicina e comunicação
–, que o processo favoreceu a construção de um estigma que
não está relacionado apenas à questão da saúde, mas também
à busca de um padrão de beleza estabelecido, que leva um grande
número de pessoas, em especial as mulheres, às práticas embelezadoras
que vão de exercícios físicos e dietas a cirurgias plásticas,
podendo acarretar distúrbios alimentares.
A análise de 305 matérias
publicadas em um jornal paulistano, no período de 1998 a 2008,
levou à constatação de que a imprensa teve papel determinante
no processo de medicalização, diante da numerosa publicação
de novidades sobre tratamentos, descobertas, lançamento de
novas drogas e até mesmo dietas de estrelas. Simone salienta
que 72% do total dos textos analisados enfocam a obesidade
como doença ou epidemia, relacionando o mal a outras doenças,
destacando os riscos, os custos individuais e para os sistemas
de saúde público e privado. Embora o jornal tenha apresentado
em algumas matérias uma conotação crítica à medicalização
e todo o arcabouço que caracteriza esse processo, esses textos
foram minoria na amostra analisada no estudo, de acordo com
a jornalista.
Ao final do trabalho, desenvolvido
no Departamento de Política Científica e Tecnológica, do Instituto
de Geociências (IG) da Unicamp sob orientação da professora
Léa Velho, a jornalista pôde concluir que a imprensa representa
um importante papel na construção da epidemia da obesidade,
apoiada principalmente no discurso médico, autoridade científica
que legitima o processo da medicalização, com o suporte dos
laboratórios farmacêuticos e o poder público na disseminação
da idéia da doença e de possível cura, mesmo que não se esteja
perto dela. A visibilidade dada ao tema, segundo a jornalista,
provocou um acirramento no discurso de epidemia da obesidade
por parte de médicos e autoridades de saúde em todo o mundo.
Assuntos ligados à saúde
atraem naturalmente o público, seja em veículos impressos
ou na TV. Para Simone, o poder de influência da imprensa
sobre seu público se intensifica quando se trata de conteúdo
de saúde. Uma pesquisa de percepção pública da ciência
realizada em 2008 mostrou que 35% do público se interessa
por esses assuntos no Estado de São Paulo. Outra pesquisa
do mesmo gênero, em nível nacional, revelou que o tema medicina
e saúde interessa a 60% do público. Além do leitor leigo,
os próprios cientistas se informam e se atualizam por meio
da imprensa. Segundo Simone, os textos priorizam o discurso
médico, ao ter como entrevistados, em sua maioria, profissionais
da medicina. “Mas o cenário é dividido com outros atores
sociais, inclusive pacientes”, acrescenta.
Temas como aconselhamento de tratamentos à base de medicamentos
ou apenas dietas e exercícios físicos estiveram presentes
nas matérias analisadas pela jornalista. Segundo ela, pesquisas
que associam a obesidade a outras doenças mereceram divulgação
ampla, assim como estudos voltados à descoberta das causas
da obesidade.
O mito da cura e o risco de
automedicação podem ser refletidos com a publicação, em 2007,
de matérias sobre o lançamento e a suspensão, no mesmo ano,
do medicamento rimonabanto – nome comercial, Acomplia –, mais
uma promessa de tratamento revolucionário, destinado ao combate
da obesidade, do diabetes e de aumento de gorduras no sangue
(dislipedemias). Ao contrário do que era prometido, o remédio
oferecia riscos de depressão e ansiedade.
Estigma
A corrida rumo ao corpo perfeito, que alimenta a indústria
farmacêutica e o setor de alimentos da linha diet e light,
bem como as clínicas de estética e as academias, começa exatamente
quando há grande repercussão do tema na mídia, de acordo com
o estudo. “A repercussão, principalmente nas revistas femininas,
e a quase celebração aos tratamentos que modelos e atrizes
realizam para afinar seus corpos levam a um medo irracional
do excesso de gordura e a uma corrida desenfreada por academias
de ginástica, consumo de remédios para emagrecer (inibidores
de apetite são os mais comuns), cirurgias plásticas e outros
tratamentos estéticos”, explica Simone. Individualmente, os
procedimentos podem dar algum resultado, mas na população
como um todo não tem surtido efeito, já que a epidemia no
Brasil ainda é crescente.
“Não bastasse o discurso da
saúde para empurrar as pessoas para o processo de medicalização,
as imagens publicitárias, novelas, programas de TV, reportagens
em revistas e jornais também estimulam os indivíduos a participarem
desse processo, ao não se identificarem com esses corpos perfeitos”,
reflete Simone. O padrão de beleza adotado nas sociedades
ocidentais contemporâneas é o corpo magro, esbelto e, preferencialmente,
firme. “O que esses veículos vendem são ilusões de que esses
corpos de modelos e atrizes são possíveis, quando raras vezes
o são”, questiona.
Os corpos esculturais e atividade
física na orla da praia que compõem os cartões-postais do
Rio de Janeiro, por exemplo, são contrastantes aos números
acerca do sobrepeso. Dados antropométricos fornecidos pela
pesquisa Vigitel (Vigilância de fatores de risco e proteção
para doenças crônicas por inquérito telefônico), realizada
pelo Ministério da Saúde em 2006, 2007 e 2008, mostram que
a cidade apresentou, em 2006, o maior número de excesso de
peso no Brasil: 48,8% (homens e mulheres). Os dados da pesquisa,
que foi realizada em todas as capitais e no Distrito Federal,
anunciavam que a prevalência, além de alta, é crescente, fato
observado também em países europeus.
Quanto à obesidade, a capital
que apresentou a maior prevalência foi João Pessoa (13,9%).
Segundo Simone, essas médias já se assemelhavam às da Europa
em 2006, quando algumas medidas já vinham sendo tomadas.
Em 2007 e 2008, a prevalência
do sobrepeso e da obesidade continuou crescendo no Brasil.
Os homens apresentaram índices mais altos de sobrepeso que
as mulheres, mas o aumento médio desses índices para o sexo
feminino foi de 3,5 pontos percentuais, no período entre um
ano e outro. Em relação à obesidade, as mulheres não só ultrapassaram
os homens no valor total, atingindo 13,3% de prevalência de
obesidade, contra 12,9% da média para os homens, como o aumento
representou 1,6 ponto percentual.
De acordo com a jornalista,
nem as políticas para a prevenção da obesidade, implementadas
desde 2003 no Brasil, conseguem conter as taxas de sobrepeso
e obesidade. O discurso de profissionais da saúde reforçando
práticas voltadas para a contenção e tratamento da obesidade
também não tem sido suficiente.
Simone acrescenta que a cirurgia
de redução de estômago é o único procedimento especificamente
voltado para o controle da obesidade no âmbito do Sistema
Único de Saúde (SUS), mas o Ministério da Saúde e outros ministérios
têm outras políticas de prevenção, como a distribuição de
cartilhas de alimentação para crianças e adultos e o incentivo
à produção e distribuição de frutas e hortaliças. “Alguns
hospitais públicos e mesmo convênios privados de saúde também
promovem algumas ações, como programas de caminhadas em grupo
e orientações nutricionais para que a pessoa não tenha problemas
mais sérios”, relata.
Reflexões
À luz da sociologia da ciência, Simone constata que a imprensa,
ou o jornalismo, compactua com o processo de medicalização
ao divulgar o discurso médico e priorizar o tom fatalista
de epidemia. A publicação de matérias que exaltam a magreza
reforça o estigma da obesidade, pois tratam de dietas e outros
procedimentos para emagrecer com resultados promissores alcançados
por algumas pessoas. Quem não consegue alcançar os resultados
divulgados sente-se fracassado, com a auto-estima baixa, de
acordo com a jornalista. “Não há, na mesma medida em que se
luta contra a obesidade, uma campanha que incentive a pessoa
a se aceitar para combater a ditadura da magreza”, reflete.
No campo da sociologia, até existem correntes que se opõem
à medicalização, mas eles são menos ouvidos. “E eles não defendem
que a pessoa não deva se cuidar ou engordar, mas aceitar o
próprio corpo, porque muitas vezes não são casos de obesidade
ou nos quais a saúde esteja em risco”, reflete.
O termo medicalização vem
sendo estudado pela sociologia da ciência em vários aspectos,
entre os quais distúrbios alimentares. Trata-se de um processo
construído, que se dá no momento em que algumas questões sociais
passam a ser chamadas de doença. “Isso acontece porque a sociedade
encara desta forma, simplesmente porque se estabelece que
esteja fora da normalidade. Então todos começam a se preocupar,
gerando interesse de vários setores da sociedade. E assim
surgem as dietas e os problemas de saúde, inclusive a inapetência,
que pode levar à anorexia. Tudo em função da estética.” Para
Simone, até mesmo os pais começam a restringir a alimentação
dos filhos. “Muitos casos não se enquadram em tratamento,
mas por questões estéticas, a pessoa passa a achar que se
todo mundo tem de ser magro, ela também tem de ser”, conclui.
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