Nobel de Economia: continuidade ou sinal dos tempos?
José Maria da Silveira
O
fato de o Prêmio Nobel de Economia ser atribuído a dois
cidadãos estadunidenses, Elinor Ostrom (cientista política)
e Oliver Williamson (economista), não permite de início
deduzir que se trata do “Efeito Obama” ou “Efeito
Crise”. Defendo desde logo que ao contrário de um dos
aspectos que determinaram a premiação em 2008 do economista
Paul Krugman, crítico do conservadorismo extremo da era
Bush, esta premiação tem menos a ver com conjuntura e
mais com a própria transformação sofrida pela teoria
econômica nos últimos 20 anos. Ao contrário, dá continuidade
e aprofunda a tendência das últimas premiações que são
dadas para quem busca entender economia como um sistema
complexo de relações sociais que não podem ser reduzidas
aos mecanismos das trocas e à impessoalidade de mercado.
Teoria dos Jogos, o tratamento da assimetria de informação,
a crítica de Lucas aos grandes modelões macroeconométricos,
a ênfase na capacidade de transmitir mensagem, e com isto
induzir comportamentos, têm dado a tônica do Nobel de
Economia.
Não são premiados economistas que não usam matemática
nem prescindem da ideia de modelos. Todavia, o prêmio reflete
a necessidade de romper com a camisa de força dada pela
ideia de equilíbrio de mercado, de mercados eficientes
e da impessoalidade da economia de decisões descentralizadas.
Certamente avançou-se em
2009, uma vez que os dois laureados não são economistas
convencionais. A primeira, cientista política, milita em
áreas de interesse da economia ecológica. Oliver Williamson
mantém fortes vínculos com a ciência do direito, como
aponta o pesquisador brasileiro mais próximo a ele, Décio
Zylbertajn, da Universidade de São Paulo. Mais que isto,
procuraram dar respostas criativas para questões que foram
negligenciadas ou maltratadas pela chamada ciência econômica
convencional.
É claro que é mais fácil falar de Oliver Williamson,
por ser mais conhecido e seu trabalho mais influente. Na
Graduação do Instituto de Economia da Unicamp há um bloco
inteiro no curso de Microeconomia III que trata da Nova
Economia Institucional ou Economia dos Custos de Transação.
Termos como Mecanismos de Governança, Economia de Contratos
e Análise Discreta de escolhas difundiram-se rapidamente,
dando não só mais consistência à análise econômica,
mas ressaltando o que chamo de caráter processual da economia.
Decisões racionais são tomadas ao longo de processos,
trajetórias, condicionadas a certos contextos e conjunturas.
A melhor alternativa é comparada às outras alternativas
possíveis.
A imprensa tem confundido
exageradamente criador e criatura. Ronald Coase já havia
ganhado o prêmio Nobel em 1991 tratando da natureza da firma
(da empresa, na linguagem popular), mas certamente Williamson
desenvolve o tema apontando para o diálogo com a ciência
do direito, como foi mencionado e para a perspectiva evolucionista,
no sentido em que a criação de alternativas é também resultado
de decisões ex-ante, ou seja, tomadas em antecipação por
agentes que buscam eficiência das estruturas e não apenas
de sua própria firma. Ciência é diálogo e o professor da
Universidade da Califórnia em Berkeley abriu imensas avenidas
para o debate entre várias correntes da economia, ciência
política e direito.
Relações bilaterais
De fato, a compreensão do
que seja o mercado muda a partir do olhar de uma teoria
que enfatiza a importância das relações bilaterais. Contratos,
acordos e acertos são parte legítima e desejável da vida
econômica. Sua existência garante eficiência ao sistema
que o mercado puro, de trocas impessoais, não pode garantir.
Firmas não são caixas-pretas. São nexos de contratos, sim,
mas sob algum grau de hierarquia (e certamente de poder
de agenciamento). A forma de organização das firmas, a estrutura
de governança que comanda as relações dentro das firmas
e entre firmas não pode ser reduzida ao mercado e às interfaces
determinadas pela tecnologia.
Em exemplo, por que produtos
hortícolas no Brasil são produzidos em cinturões verdes,
por famílias e nos EUA por empresas que contratam trabalhadores
temporários, normalmente oriundos da América Central? Faria
sentido dizer que um é melhor que o outro a partir do estudo
da tecnologia de produção da horticultura? Ou das diferenças
entre o consumidor brasileiro e americano? A Nova Economia
Institucional nos alertaria para um conjunto adicional de
questões relevantes, como os condicionantes institucionais
e o desempenho da rede de distribuição de alimentos. Alertaria,
portanto, para a possível não convergência de padrões de
organização da produção. Portanto, para a insuficiência
da análise baseada no conceito de “mercado”, da análise
da oferta e da demanda.
A ideia de que basta cuidar
de seu próprio interesse para contribuir para o interesse
geral (a ideia de bem-estar) é poderosa inclusive por simplificar
a aplicação de métodos em economia. Os economistas matemáticos
dedicam grande parte de seu esforço e inventividade para
mostrar que decisão tomada em ambientes marcados pela interação
pode ser decomposta em pares cujo resultado final é muito
semelhante ao de um agente decidindo de forma racional o
que irá fazer. Até quando a decisão implica em escolher
o melhor par (exemplo, uma determinada formação profissional
com o emprego mais adequado) seria possível agir como se
a decisão correspondesse a uma decisão mercantil, de troca,
impessoal e não sujeita aos constrangimentos e restrições
institucionais.
Meu argumento é que o prêmio
dado a Elinor Ostrom é coerente com o incômodo crescente
com este tipo de economia e com esses economistas. A pesquisadora
pode ser inserir em uma linha teórica que tem continuidade
em ações coletivas e na formulação de políticas. Como o
economista de origem marxista Samuel Bowles – a meu ver
o economista mais importante da atualidade – a professora
do meio Oeste dos EUA procura desvendar os mecanismos e
as origens do comportamento associativo.
Em um mundo dominado pelas
grandes corporações – que a postura ingênua de uma certa
esquerda faz cheirar enxofre – teria lugar o esforço teórico
que parte da evolução e seleção de comportamentos convencionais?
Se alguém franqueia a passagem para outrem isto induz um
comportamento mais civilizado de uma certa comunidade? Os
pares são capazes de se vigiar mutuamente e com isto reduzir
níveis de inadimplência, viabilizando esquemas de financiamento
com menos custos e mais acessíveis às comunidades carentes?
Comunidades organizadas aprenderiam a utilizar recursos
comuns sem que uma instituição restritiva impusesse algum
tipo de atribuição de direitos de propriedade? Todos esses
temas de pesquisa sucumbiriam em face às decisões avassaladoras
de algum G8, G20? Ou pelo conservadorismo de bancos centrais
dependentes da manutenção de processos de valorização de
ativos com enorme impacto sobre a vida das pessoas e de
seus empreendimentos?
Meio ambiente
A questão ambiental fornece
o melhor exemplo da relevância da investigação da professora
Elinor Ostrom. Como aponta seu principal discípulo no Brasil,
o professor Ricardo Abramovay, da FEA-USP, a ideia de o
processo de criação de mercado deva ser atribuído às empresas
em concorrência é cada vez mais mediado pela ação ativa
de “envolvidos no processo”, que não são consumidores passivos
e marcados pela busca de diferenciação social. Soluções
locais para reciclo e destinação do lixo, criação de sistemas
de trocas de energias geradas em domicílios, reativação
de mercados agrícolas locais (via fortalecimento de circuitos
da pequena produção), esquemas de certificação de produtos
com base na ideia de comércio justo e de menor impacto ambiental
formam uma agenda clara e progressiva.
Todavia, há pedras no caminho.
Alguns exemplos: uma caça à raposa é organizada. Cavaleiros
formam pelotões para atingir o objetivo. O que menos se
espera é que alguém desvie para caçar coelhos, bem mais
fáceis de atingir; se plantar algodão precoce evita a praga
do bicudo, como se induz um grupo de agricultores a fazê-lo
se há o risco de ter sua lavoura devorada por lagartas ávidas
de plantas novas e fresquinhas depois de meses sem plantação?
Comunidades podem resolver
de forma associativa problemas que muitas vezes o Estado
e mais ainda as empresas têm dificuldade ou são profundamente
ineficientes. Comunidades podem inclusive inovar, como é
o caso ocorrido com o plantio direto de grãos no Brasil.
Descentralizar decisões pode aumentar o interesse daqueles
grupos que mais se beneficiam com os processos envolvidos.
Elinor Ostrom não é uma
pensadora do processo econômico em seu sentido amplo. Isto
reduz a importância de seu trabalho? Ao investigar teoricamente
e de forma empírica a complexidade dos processos de utilização
dos recursos comuns e o potencial do esforço comunitário
para o crescimento econômico – alguém seria capaz de discordar
que mesmo no capitalismo selvagem brasileiro há qualidade
diferenciada na implementação de políticas em função da
dimensão participativa dos interessados – a pesquisadora
reforça o que há de melhor na evolução recente da disciplina
econômica: a ênfase na complexidade e a recusa da aceitação
de modelos que generalizam comportamentos e resultados.
Se a macroeconomia tem importância crucial em nossas vidas
– até por cuidar do curto prazo, contribuindo para o controle
da inflação – está claro que os processos que são engendrados
na imensa teia de relações econômicas não podem ser entendidos
e reduzidos a esses modelos. Sustentando a agregação de
variáveis há mais que simples procedimentos racionais maximizadores.
Há interações complexas, há ações deliberadas em prol de
objetivos comuns, há questões de fronteira – como a ambiental
– que não são solucionadas apenas por investimentos em tecnologia
ou em infraestrutura. A autora é conservadora, no sentido
de que não faz críticas ao capitalismo predatório? Certamente,
sob este prisma é. Mas há cada vez mais pessoas que preferem
direcionar a construção de mecanismos coletivos para a transformação
gradativa e permanente da sociedade. Elinor Ostrom representa
este grupo de pessoas que merecem todo nosso respeito.
José Maria da Silveira
é
professor do Instituto
de Economia (IE)