JU
– Um neologismo, Outrarte, dá nome ao centro de pesquisas
coordenado pela senhora. O que isso significa?
Nina
Leite – Não é irrelevante que o nome escolhido
para o centro de pesquisas que congrega estudos entre arte
e psicanálise seja um neologismo, uma vez que o ato de nomeação
não deixa desse modo de transmitir o objeto de nossas reflexões.
Se por um lado, a primeira referência que surge para o falante
do português evidencia uma condensação entre “outro” e “arte”,
há ainda uma outra indicação preciosa para os leitores de
Fernando Pessoa e seus heterônimos em que podemos colher
o termo transformado em verbo “outrar” e tomado aqui em
sua forma pronominal. O que isto pode significar reduz-se
de fato à possibilidade de “fazer-se outro”, ou até mesmo
de habitar o outro em si mesmo. Essas reflexões são relevantes
para todos os que se interessam pela produção artística.
JU – Quais são
os objetivos do Outrarte e qual o seu papel no âmbito das
pesquisas desenvolvidas na Universidade?
Nina Leite –
Outrarte configura-se como um centro interno de pesquisa
e foi criado no final de 2007 quando a congregação do Instituto
de Estudos da Linguagem (IEL) aprovou uma proposta de criação
de centros elaborada por vários pesquisadores e professores
que julgaram importante institucionalizar algumas iniciativas
que, embora timidamente, já aconteciam no meio acadêmico
do instituto, em constante interlocução com pesquisadores
de outras universidades e centros. Portanto, Outrarte é
mais do que um projeto e como centro acolhe diversos projetos
de pesquisa e grupos de estudo, atividades que se vinculam
a uma linha de pesquisa do programa de pós-graduação em
Lingüística: Linguagem e Psicanálise.
A proposta de criação de
um centro estabelece como condição que seu funcionamento
congregue pesquisadores de outras universidades e também
de outros departamentos do próprio instituto. Isto porque
os objetos de investigação necessariamente incluem diversas
perspectivas teóricas em sua abordagem. No caso específico
do Outrarte temos professores do departamento de Lingüística,
da Lingüística Aplicada e da Teoria Literária, que por diversos
caminhos chegam a tratar as questões da relação entre psicanálise
e arte.
Do ponto de vista de sua
presença na Universidade, embora seja de criação bastante
recente, posso afirmar que temos recebido alunos interessados
em nossas pesquisas oriundos de vários cursos, da Saúde
Mental, da Educação, da Sociologia, das Artes, da Antropologia,
da Filosofia..., além daqueles que freqüentam os cursos
do Instituto e dos que vêm de outras universidades. Talvez
se possa dizer que o interesse desses alunos e dos pesquisadores
que nos procuram tenha relação com a importância da psicanálise
na cena da produção intelectual e pelo fato de já existir
um percurso consistente de produção no Instituto.
JU – Qual é
a importância da IX Jornada?
Nina Leite –
O fato de estarmos realizando a IX Jornada por si só reveste
de importância o seu acontecimento, uma vez que configura
uma série e inscreve um percurso de trabalho. Estamos realizando
a IX Jornada Corpolinguagem – outro neologismo... – e o
II Encontro Outrarte. As jornadas nasceram muito antes da
criação do centro e por esta razão atualmente estamos conjugando
as duas iniciativas, pois de fato os membros do Outrarte
são os que iniciaram a proposta das jornadas em 2000.
JU – O que prevê
a programação?
Nina Leite – A programação
deste ano traz algumas inovações, tais como as oficinas
e o que estamos denominando entreato/ encontro marcado,
além de conferências, mesas-redondas e comunicações. E a
variedade também está presente nas diferentes manifestações
artísticas que serão abordadas: artes plásticas, literatura,
cinema, a partir de um olhar da psicanálise. Isso pode ser
conferido no site do evento, junto aos nomes de nossos convidados.
Para coordenar as oficinas
em grupos, convidamos pesquisadores, psicanalistas e professores
com percursos já consagrados, em diversos temas. Essas oficinas,
por serem com grupos pequenos, ampliarão sobremaneira a
possibilidade de troca entre os participantes. Por outro
lado, as mesas redondas, plenárias, já contemplam temas
que serão abordados de maneira mais específica por pesquisadores
e psicanalistas cujos trabalhos já trazem um percurso de
diálogo entre eles. A apresentação de trabalhos, selecionados
por uma comissão científica, será realizada através de um
dispositivo que propiciará a discussão com o público, reforçando
a importância da crítica inerente aos trabalhos nesses campos.
O que estou salientando é que a comissão organizadora, ciente
de que o modo de transmissão faz parte do que se transmite,
cuidou não apenas dos temas, mas principalmente da estrutura
do evento.
JU – Por que
uma reflexão agora sobre o ato poético e o ato analítico?
O que pode nos dizer sobre o tema do encontro? Há uma linha
de continuidade no que diz respeito aos encontros anteriores?
Nina Leite –
Quando iniciamos as Jornadas tínhamos como tema a discussão
e reflexão sobre a inclusão do corpo nos estudos da linguagem.
Essa era a vertente principal do projeto Semasoma – mais
um neologismo... –, fazendo circular uma concepção de corpo
que se estrutura a partir dos efeitos da linguagem sobre
o real do organismo. Na seqüência fomos elegendo temas que
desdobravam a dimensão pulsional do corpo tanto no que respeita
às formações do inconsciente quanto na teorização sobre
a entrada da criança na linguagem: os gestos e afetos, a
angústia.
Mas também não deixamos
de nos interrogar sobre a estética e a ética. No último
encontro que aconteceu em novembro do ano passado na UFMG,
dedicamo-nos ao tema da transmissão da psicanálise na clínica,
arte e instituição. Cada um dos temas dá nome para um dos
cinco livros já publicados, e nesse ano não será diferente.
Portanto, o tema deste ano vem como um resultado das escolhas
anteriores, embora muitas vezes não saibamos dizer por quais
caminhos esta escolha se deu...
JU – Qual é
a atualidade dessa escolha? A psicanálise faz fronteira
com muitos campos de saber, mas vocês escolheram a arte.
Por que a opção?=
Nina Leite
– Certamente encontramos uma articulação bastante estreita
com a arte, especialmente porque damos especial relevo ao
ensinamento freudiano no que respeita ao fato de o artista
estar sempre à frente com relação ao homem de ciências.
Isto significa que é a arte que pode ensinar algo para a
psicanálise e não o contrário, evidentemente. Mas, além
disto, há também nos diversos projetos desenvolvidos no
centro uma forte relação com a filosofia (por exemplo, através
de um grupo que iniciou suas atividades com o objetivo de
estudar cinema e psicanálise através dos trabalhos de Slavoj
Žižek) e com as ciências da linguagem. A ênfase que é posta
nos trabalhos de Jacques Lacan estabelece uma forte articulação
crítica com diversas disciplinas, da Lingüística aos Estudos
Literários.
JU – A teoria
é a psicanálise freudiana, o foco é a arte, e o local é
o IEL, um instituto de estudos da linguagem...
Nina Leite
– Sim, e o que de fato possibilita essa série que a pergunta
desdobra é o fato de trabalharmos com a obra de Jacques
Lacan, pois foi ele quem adiantou uma hipótese de leitura
da obra freudiana que sublinha nela os seus fundamentos
de linguagem.
JU – O que os
estudantes podem esperar desses encontros?
Nina Leite
– Penso que a programação contempla vários interesses, tanto
os dos estudantes que estão em um momento de aproximação
curiosa com relação à psicanálise – em suas articulações
com diversos campos do saber –, quanto os daqueles que já
trilharam um percurso de estudo, de reflexão e produção
na psicanálise.
Os estudantes certamente
terão a oportunidade de escutar, dialogar e refletir junto
com pesquisadores, psicanalistas e professores que sustentam
a tarefa de transmitir uma abordagem que anda na contramão
da produção do “saber universitário”, relevando a enunciação
como o fato discursivo fundamental em sua elaboração. Que
significa isso? Que em psicanálise operamos com noções de
sujeito e linguagem que determinam a abordagem de objetos
cotidianamente apagados, excluídos, tanto no discurso científico
como no discurso universitário.
Pela experiência que tivemos
em outras Jornadas este momento e espaço têm sido bastante
interessantes e profícuos em despertar o interesse pela
psicanálise, dada a fecundidade e alcance teórico de sua
abordagem nos mais variados campos.
JU – Em que
medida as discussões vão contemplar a contemporaneidade?
Nina
Leite – Uma psicanalista americana, Joan Copjec,
tem uma expressão bonita sobre isso, que a psicanálise é
a língua materna de nossa modernidade, o que quer dizer
que hoje é muito difícil articular os temas importantes
sem participação da psicanálise. Chega-se a falar que o
saber médico junto à indústria farmacêutica já estaria ultrapassando
a psicanálise... mas a verdade é que ainda não compreendemos
seus aportes mais revolucionários.
A psicanálise tem um ponto
muito forte na articulação que realiza entre o estrutural
e o histórico, isto é, entre algo irredutível, que não muda
e que nos define como seres de linguagem, e aquilo que se
transforma no campo da experiência – social, estética, na
relação com o saber... –, que sofre alterações, nunca fáceis
de captar em sua verdadeira natureza. Vejam os temas que
serão desenvolvidos nas oficinas: “estruturas clínicas”,
“memória e censura”, “ato de ensino”, “passagem ao ato na
adolescência”, “ato analítico, poesia e música”, “o cinema
na psicanálise”... Temos aí representados uma boa porção
de nossa modernidade!
Para saber mais:
http://www.iel.unicamp.br