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Quando o poético dialoga com o analítico

SUELY AIRES
J. GUILLERMO MILÁN-RAMOS
FLÁVIA TRÓCOLIL

Especial para o JU

O centro de pesquisas Outrarte, sediado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, vai promover, entre os próximos dias 4 e 6, a IX Jornada Corpolinguagem e o II Encontro Outrarte, que reunirão psicanalistas, artistas, pesquisadores e docentes no Auditório do IEL. Na pauta, dentre os pontos dos respectivos temários, estão previstos debates sobre a relação entre o ato poético e o ato analítico. Na entrevista que segue, a professora Nina Leite, coordenadora do Outrarte, fala sobre as pesquisas do centro e dos eventos por ele promovidos.

 

Reprodução de As meninas, obra do pintor espanhol Velázquez: cruzamento de olhares (Fotos:Reprodução)JU – Um neologismo, Outrarte, dá nome ao centro de pesquisas coordenado pela senhora. O que isso significa?

Nina Leite – Não é irrelevante que o nome escolhido para o centro de pesquisas que congrega estudos entre arte e psicanálise seja um neologismo, uma vez que o ato de nomeação não deixa desse modo de transmitir o objeto de nossas reflexões. Se por um lado, a primeira referência que surge para o falante do português evidencia uma condensação entre “outro” e “arte”, há ainda uma outra indicação preciosa para os leitores de Fernando Pessoa e seus heterônimos em que podemos colher o termo transformado em verbo “outrar” e tomado aqui em sua forma pronominal. O que isto pode significar reduz-se de fato à possibilidade de “fazer-se outro”, ou até mesmo de habitar o outro em si mesmo. Essas reflexões são relevantes para todos os que se interessam pela produção artística.

JU – Quais são os objetivos do Outrarte e qual o seu papel no âmbito das pesquisas desenvolvidas na Universidade?

Nina Leite – Outrarte configura-se como um centro interno de pesquisa e foi criado no final de 2007 quando a congregação do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) aprovou uma proposta de criação de centros elaborada por vários pesquisadores e professores que julgaram importante institucionalizar algumas iniciativas que, embora timidamente, já aconteciam no meio acadêmico do instituto, em constante interlocução com pesquisadores de outras universidades e centros. Portanto, Outrarte é mais do que um projeto e como centro acolhe diversos projetos de pesquisa e grupos de estudo, atividades que se vinculam a uma linha de pesquisa do programa de pós-graduação em Lingüística: Linguagem e Psicanálise.

A proposta de criação de um centro estabelece como condição que seu funcionamento congregue pesquisadores de outras universidades e também de outros departamentos do próprio instituto. Isto porque os objetos de investigação necessariamente incluem diversas perspectivas teóricas em sua abordagem. No caso específico do Outrarte temos professores do departamento de Lingüística, da Lingüística Aplicada e da Teoria Literária, que por diversos caminhos chegam a tratar as questões da relação entre psicanálise e arte.

Do ponto de vista de sua presença na Universidade, embora seja de criação bastante recente, posso afirmar que temos recebido alunos interessados em nossas pesquisas oriundos de vários cursos, da Saúde Mental, da Educação, da Sociologia, das Artes, da Antropologia, da Filosofia..., além daqueles que freqüentam os cursos do Ins­tituto e dos que vêm de outras universidades. Talvez se possa dizer que o interesse desses alunos e dos pesquisadores que nos procuram tenha relação com a importância da psicanálise na cena da produção intelectual e pelo fato de já existir um percurso consistente de produção no Instituto.

JU – Qual é a importância da IX Jornada?

Nina Leite – O fato de estarmos realizando a IX Jornada por si só reveste de importância o seu acontecimento, uma vez que configura uma série e inscreve um percurso de trabalho. Estamos realizando a IX Jornada Corpolinguagem – outro neologismo... – e o II Encontro Outrarte. As jornadas nasceram muito antes da criação do centro e por esta razão atualmente estamos conjugando as duas iniciativas, pois de fato os membros do Outrarte são os que iniciaram a proposta das jornadas em 2000.

JU – O que prevê a programação?

Nina Leite – A programação deste ano traz algumas inovações, tais como as oficinas e o que estamos denominando entreato/ encontro marcado, além de conferências, mesas-redondas e comunicações. E a variedade também está presente nas diferentes manifestações artísticas que serão abordadas: artes plásticas, literatura, cinema, a partir de um olhar da psicanálise. Isso pode ser conferido no site do evento, junto aos nomes de nossos convidados.

Para coordenar as oficinas em grupos, convidamos pesquisadores, psicanalistas e professores com percursos já consagrados, em diversos temas. Essas oficinas, por serem com grupos pequenos, ampliarão sobremaneira a possibilidade de troca entre os participantes. Por outro lado, as mesas redondas, plenárias, já contemplam temas que serão abordados de maneira mais específica por pesquisadores e psicanalistas cujos trabalhos já trazem um percurso de diálogo entre eles. A apresentação de trabalhos, selecionados por uma comissão científica, será realizada através de um dispositivo que propiciará a discussão com o público, reforçando a importância da crítica inerente aos trabalhos nesses campos. O que estou salientando é que a comissão organizadora, ciente de que o modo de transmissão faz parte do que se transmite, cuidou não apenas dos temas, mas principalmente da estrutura do evento.

JU – Por que uma reflexão agora sobre o ato poético e o ato analítico? O que pode nos dizer sobre o tema do encontro? Há uma linha de continuidade no que diz respeito aos encontros anteriores?

Nina Leite – Quando iniciamos as Jornadas tínhamos como tema a discussão e reflexão sobre a inclusão do corpo nos estudos da linguagem. Essa era a vertente principal do projeto Semasoma – mais um neologismo... –, fazendo circular uma concepção de corpo que se estrutura a partir dos efeitos da linguagem sobre o real do organismo. Na seqüência fomos elegendo temas que desdobravam a dimensão pulsional do corpo tanto no que respeita às formações do inconsciente quanto na teorização sobre a entrada da criança na linguagem: os gestos e afetos, a angústia.

Mas também não deixamos de nos interrogar sobre a estética e a ética. No último encontro que aconteceu em novembro do ano passado na UFMG, dedicamo-nos ao tema da transmissão da psicanálise na clínica, arte e instituição. Cada um dos temas dá nome para um dos cinco livros já publicados, e nesse ano não será diferente. Portanto, o tema deste ano vem como um resultado das escolhas anteriores, embora muitas vezes não saibamos dizer por quais caminhos esta escolha se deu...

JU – Qual é a atualidade dessa escolha? A psicanálise faz fronteira com muitos campos de saber, mas vocês escolheram a arte. Por que a opção?=

Nina Leite – Certamente encontramos uma articulação bastante estreita com a arte, especialmente porque damos especial relevo ao ensinamento freudiano no que respeita ao fato de o artista estar sempre à frente com relação ao homem de ciências. Isto significa que é a arte que pode ensinar algo para a psicanálise e não o contrário, evidentemente. Mas, além disto, há também nos diversos projetos desenvolvidos no centro uma forte relação com a filosofia (por exemplo, através de um grupo que iniciou suas atividades com o objetivo de estudar cinema e psicanálise através dos trabalhos de Slavoj Žižek) e com as ciências da linguagem. A ênfase que é posta nos trabalhos de Jacques Lacan estabelece uma forte articulação crítica com diversas disciplinas, da Lingüística aos Estudos Literários.

JU – A teoria é a psicanálise freudiana, o foco é a arte, e o local é o IEL, um instituto de estudos da linguagem...

Nina Leite – Sim, e o que de fato possibilita essa série que a pergunta desdobra é o fato de trabalharmos com a obra de Jacques Lacan, pois foi ele quem adiantou uma hipótese de leitura da obra freudiana que sublinha nela os seus fundamentos de linguagem.

JU – O que os estudantes podem esperar desses encontros?

Nina Leite – Penso que a programação contempla vários interesses, tanto os dos estudantes que estão em um momento de aproximação curiosa com relação à psicanálise – em suas articulações com diversos campos do saber –, quanto os daqueles que já trilharam um percurso de estudo, de reflexão e produção na psicanálise.

Os estudantes certamente terão a oportunidade de escutar, dialogar e refletir junto com pesquisadores, psicanalistas e professores que sustentam a tarefa de transmitir uma abordagem que anda na contramão da produção do “saber universitário”, relevando a enunciação como o fato discursivo fundamental em sua elaboração. Que significa isso? Que em psicanálise operamos com noções de sujeito e linguagem que determinam a abordagem de objetos cotidianamente apagados, excluídos, tanto no discurso científico como no discurso universitário.

Pela experiência que tivemos em outras Jornadas este momento e espaço têm sido bastante interessantes e profícuos em despertar o interesse pela psicanálise, dada a fecundidade e alcance teórico de sua abordagem nos mais variados campos.

JU – Em que medida as discussões vão contemplar a contemporaneidade?

Nina Leite – Uma psicanalista americana, Joan Copjec, tem uma expressão bonita sobre isso, que a psicanálise é a língua materna de nossa modernidade, o que quer dizer que hoje é muito difícil articular os temas importantes sem participação da psicanálise. Chega-se a falar que o saber médico junto à indústria farmacêutica já estaria ultrapassando a psicanálise... mas a verdade é que ainda não compreendemos seus aportes mais revolucionários.

A psicanálise tem um ponto muito forte na articulação que realiza entre o estrutural e o histórico, isto é, entre algo irredutível, que não muda e que nos define como seres de linguagem, e aquilo que se transforma no campo da experiência – social, estética, na relação com o saber... –, que sofre alterações, nunca fáceis de captar em sua verdadeira natureza. Vejam os temas que serão desenvolvidos nas oficinas: “estruturas clínicas”, “memória e censura”, “ato de ensino”, “passagem ao ato na adolescência”, “ato analítico, poesia e música”, “o cinema na psicanálise”... Temos aí representados uma boa porção de nossa modernidade!

Para saber mais:

http://www.iel.unicamp.br

 

 
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