Nas trilhas da ‘boa vizinhança’
Tese revela papel de antropólogos
no âmbito
de pesquisas sociais na área da saúde
ISABEL
GARDENAL
Os
cientistas sociais Donald Pierson (1900-1995) e Kalervo
Oberg (1901-1973) inscreveram, em meados do século XX,
um novo capítulo na história da Antropologia no Brasil,
até então pouco estudado, e que teve forte impacto nas
pesquisas sociais em saúde. A atuação de ambos coincidiu
com o engajamento de antropólogos norte-americanos em programas
de assistência técnica na América Latina. Uma pesquisa
de doutorado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH) da Unicamp permitiu recuperar o assunto e revelou
que esses cientistas, junto a antropólogos brasileiros
e mexicanos, arregimentados por agências governamentais
ou de caráter cooperativo, acabaram se associando a sanitaristas,
administradores e educadores em torno de uma agenda comum
de ações médico-sanitárias e projetos para desenvolver
comunidades mais remotas e atrasadas.
A investigação integra o
conteúdo da tese “Histórias de uma antropologia de boa vizinhança:
um estudo sobre o papel dos antropólogos nos programas interamericanos
de assistência técnica e saúde no Brasil e no México”, de
Regina Érika Domingos de Figueiredo. O trabalho foi orientado
pela professora Marisa Corrêa e teve financiamento da Fundação
de Amparo ao Ensino e à Pesquisa do Estado de São Paulo
(Fapesp) e Smithsonian Institution.
Érika
era aluna da Unicamp desde a graduação e nunca escondeu
sua predileção pela Antropologia. Fez mestrado na área,
investigando Charles Wagley, antropólogo norte-americano
que esteve em terras brasileiras na década de 30, e prosseguiu
estudos para obter nova titulação. Sem planejar, sua tese
de doutorado, defendida recentemente, constituiu um marco
no IFCH, por ser a primeira do recém-criado Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social.
Comentando o mestrado, ela
informou que ter estudado Charles Wagley e o seu trabalho
no Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp) a inspirou a
conhecer a atuação de outros antropólogos no campo da saúde
pública por volta da mesma época. O Sesp era um serviço
cooperativo criado pelo Instituto de Assuntos Interamericanos,
em 1942, dentro do espírito da “boa vizinhança”, como parte
dos esforços de guerra, e que atuou como uma agência bilateral
até 1960, quando foi transformado em fundação.
A política da “boa vizinhança”
foi apresentada pelo governo dos EUA, presidido por Roosevelt,
na Conferência Panamericana de Montevidéu. Refere-se a um
período (1933 a 1945) em que os EUA buscaram estreitar relações
políticas e econômicas com as nações latino-americanas.
Sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial, patrocinou investimentos
e venda de tecnologia, em troca do apoio aos aliados. Esta
política, no entanto, era mais ampla e promoveu o estreitamento
de relações culturais.
Dentro deste espírito de
investir nas relações culturais e de cooperação entre
vizinhos foi estabelecido, em 1943, o Instituto de Antropologia
Social como parte da Smithsonian Institution. O Instituto
tornou-se responsável pelo envio de cientistas sociais
norte-americanos para atuar em ensino e pesquisa em instituições
da América Latina.
Mudanças
A
pesquisadora avaliou cartas pessoais, documentos e a literatura,
refazendo o percurso dos pesquisadores que trabalhavam para
a Smithsonian e assim pôde estimar a parcela de contribuição
da antropologia para a política da “boa vizinhança” e dos
programas de cooperação.
A tarefa de Érika não foi
das mais fáceis. Trabalhou com pesquisa documental e pôs-se
a pesquisar arquivos de referência dos National Anthropological
Archives (NAA – Washington), dos National Archives and Records
Administration (Nara – Washington), do Arquivo Histórico
da Secretaria de Salud (AHSS – Cidade do México), do Departamento
de Arquivo e Documentação da Fiocruz ( Rio de Janeiro) e
do Arquivo Edgar Leuenroth (AEL- Unicamp).
A pós-graduanda estudou
a origem do Instituto de Antropologia da Smithsonian a fim
de chegar às atuações do americano Pierson e do canadense
Oberg. Pierson teve um papel central na institucionalização
das ciências sociais no Brasil, criou o Departamento de
Pós-Graduação da Escola Livre de Sociologia Política de
São Paulo (ELSP) e ali lecionou Sociologia e Antropologia
Social entre 1939 e 1957, formando uma safra de cientistas
sociais brasileiros.
A atuação de Oberg é menos
conhecida. Ele também foi professor da Escola Livre e trabalhou
com comunidades na região do Vale do Rio Doce, nos estados
de Espírito Santo e Minas Gerais. Pesquisou sociedades indígenas
do Mato Grosso e teve um papel significativo no campo da
Antropologia Aplicada, que então emergia. Pela experiência
de atuação em programas do governo americano, o Brasil foi
solicitado a dar sua contribuição à política de cooperação
interamericana vigente em saúde.
Chamou a atenção da doutoranda
que, a partir de 1949, com a gestação do programa do Ponto
IV – de cooperação técnica norte-americana durante a gestão
Truman –, ocorreu uma reorientação da política externa e
as relações culturais e técnicas cederam lugar às políticas
de desenvolvimento do Terceiro Mundo. Com isso, a Smithsonian
precisou adequar o seu programa para investir em ciências
sociais nas áreas de saúde, agricultura, desenvolvimento
rural e de comunidade. Foi neste momento que os antropólogos
da instituição, encorajados a fornecer subsídios aos programas
de bem-estar e desenvolvimento, acabaram se engajando no
campo da saúde pública.
Tais programas de mudança
social tinham em vista a modernização nas pequenas e remotas
comunidades rurais do país. Estenderam-se também à saúde
dos sistemas médico-sanitários tradicionais, favorecendo
a introdução da medicina científica. Com o pós-guerra, ocorreram
as políticas de interiorização dos serviços de saúde, até
então desassistidos pelo poder público. A intenção era educar
a população para aderir a tecnologias mais modernas. Apesar
de a população continuar adotando a medicina popular, passou
a recorrer aos fármacos, ao atendimento médico nos postos
de saúde e às campanhas para ter filhos nos hospitais, entre
outras ações.
Estudos de comunidade
Pierson organizou um projeto de estudos de comunidade, ou
estudos de caso, no Vale do São Francisco. Conseguiu convencer
o governo que estes estudos podiam oferecer base empírica
para intervenções em políticas de saúde e educação
sanitária. Já Oberg fez estudos de comunidade para o Sesp,
e a receptividade a estes trabalhos trouxe incrementos à
seção de pesquisa social, mais focada na investigação
socioantropológica para uso das políticas de saúde.
Os estudos de comunidade
corresponderam a um modelo de investigação empírica inspirado
no método etnográfico, que buscava conhecer a realidade
sociocultural de pequenas localidades rurais ou semiurbanizadas,
por meio de uma abordagem microssociológica.
Algumas conclusões ficaram
evidentes para Érika: que a antropologia no pós-guerra
não se restringiu ao campo acadêmico-universitário, mas
sua contribuição diz respeito a uma agenda de intervenção,
aos programas de assistência técnica e de saúde pública;
que além do seu papel no desenvolvimento da pesquisa social,
os estudos de comunidades tiveram importância prática
e política; que, se por um lado, a colaboração entre
cientistas sociais dos Estados Unidos e jovens pesquisadores
latino-americanos contribuiu para o desenvolvimento das
ciências sociais em países como o Brasil, por outro a
rede de cooperação formada por antropólogos, sanitaristas
e administradores foi decisiva para a produção de experiências
pioneiras em Antropologia Aplicada.
México
Assim como o Brasil, a escolha
do México como estudo de caso foi motivada pela presença
de pesquisadores da Smithsonian naquele país e também pelo
papel que o país desempenhou no programa interamericano
de saúde. De outra via, o caso mexicano oferecia um contraponto
ao brasileiro uma vez que se tratou de uma tradição antropológica
que se desenvolveu em forte associação com o Estado. É bem
conhecida, segundo a pós-graduanda, a atuação dos antropólogos
mexicanos no campo das políticas públicas, com destaque
para a política indigenista e para as campanhas de educação
e saúde entre populações indígenas e camponesas. “Entre
nós, os anos 50 assistiram às primeiras iniciativas destacadas
de arregimentação pela administração pública de antropólogos
e cientistas sociais”, alude-se Érika.
AEL
guarda arquivo pessoal de Pierson
Pierson doou
seus documentos pessoais em vida para o Arquivo Edgard
Leuenroth (AEL) da Unicamp. Eles agora integram o
projeto História da Antropologia no Brasil, coordenado
pela professora do IFCH Marisa Corrêa, que resultou
num livro que leva o mesmo nome e que contém um relato
de Pierson sobre suas atividades. A documentação data
de 1939 e passou a integrar o Fundo Donald Pierson,
que constitui fonte de pesquisa para a recuperação
histórica da disciplina de Antropologia no país.
Pierson nasceu
em Indianápolis, EUA, em 1900. Foi Ph.D pela Universidade
de Chicago. Entre 1943 e 1957 coordenou o curso de
graduação da instituição e constituiu a coleção de
Ciências Sociais na biblioteca a partir de doações
do American Library Association, do American Council
of Learned Societies. Editou a revista Sociologia
e organizou a série Biblioteca de Ciências Sociais.
Morreu em 1995, aos 95 anos.
Atualmente,
a Smithsonian compreende um complexo de museus (19),
zoológico (1) e centros de pesquisa (9), sediado em
Washington, nas áreas de História, Ciências Naturais,
Arqueologia e Antropologia. O seu Museu de História
Natural é um dos mais renomados do mundo. A instituição
foi fundada em 1846, com recursos deixados pelo milionário
inglês James Smithson, para que os EUA criassem uma
organização de difusão do conhecimento. |