Para além da escrita
ÁLVARO
KASSAB
Uma
caixa de 32 cm de altura por 18 cm de largura abriga mais
que os seis volumes resultantes da tese Fotobiografia –
Por uma Metodologia da Estética em Antropologia, de autoria
da jornalista e pesquisadora Fabiana Bruno. Seu conteúdo,
composto de seis quilos de matéria bruta, guarda tesouros
imagéticos amealhados por cinco idosos ao longo de suas
vidas. Para além do impressionante relicário de afinidades
eletivas reunido em um não menos impressionante esforço
de manufatura, a pesquisa ganha contornos inéditos no campo
da antropologia da imagem ao apostar em uma metodologia
que subverte a velha ordem: prioriza o visual – embora
a escrita ganhe considerável espaço, tanto ancorada na
fundamentação teórica como na transcrição de depoimentos
dos cinco personagens. “Trata-se de um trabalho muito
novo. Fabiana soube dar confiança às imagens”, atesta
o professor e antropólogo Etienne Samain, orientador da
tese, recém-defendida no Instituto de Artes (IA) e que
contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo. Em parecer emitido recentemente,
a agência de fomento sugere a publicação da tese, ressaltando
a originalidade da pesquisa.
Fabiana
vem se dedicando ao tema há oito anos, quando iniciou o
mestrado, sempre com os mesmos informantes, à época todos
octogenários e de alguma maneira vinculados à fotografia,
fosse profissional ou afetivamente. Depois de abertos os
baús de lembranças de Olga Rebellato Bruno, Manoel Rodrigues
Seixas, Moacir Malachias, Celeste Pires da Costa Ferrari
e Maria Teresa de Arruda, estas últimas já falecidas,
a pesquisa não teve mais volta. Na dissertação, a jornalista
dedicou-se ao trabalho de campo, experiência que pavimentaria
posteriormente o recorte mais analítico da tese de mestrado.
No campo antropológico,
emergiram reflexões acerca da velhice, da memória e da família.
Na esfera da imagem – e seus aportes verbais –, as investigações
resultaram no que Fabiana chama de “pequenos filmes de vida”
que podem ser “montados, desmontados e remontados”. Das
milhares de imagens revolvidas, Fabiana buscou a síntese
trabalhando com conjuntos de 20, 10 e 3 fotografias, em
escolha que passou pelo crivo dos informantes. Ali, naquelas
pranchas, o roteiro foi escrito pela vida de seus protagonistas
e reproduzido nas páginas da tese.
Os guardados
Para chegar à metodologia e à confecção de cinco fotobiografias,
relembra Fabiana, o percurso foi longo e todo construído
no trabalho de campo. A pesquisadora revela que a motivação
inicial de sua proposta, entre outras, era tentar dimensionar
o que significava, do ponto de vista afetivo, as fotos mantidas
pelos idosos em seus baús, partindo do pressuposto de que,
em razão da idade avançada, eram muitos os guardados. “Queria
saber como essas pessoas interagiam com suas memórias no
momento de escolherem as fotografias, já que eu tinha intenção
de trabalhar com conjuntos de imagens. Obviamente, estaríamos
falando de histórias de vida”, afirma a pesquisadora, ressaltando
que optou, para poder seguir uma trilha original, por não
predeterminar uma temática ou uma cronologia de vida.
Essa busca pelo novo a partir
das fotografias, reforça a pesquisadora, priorizava o estudo
visual, sem o descarte da fala – todas as entrevistas, por
exemplo, foram gravadas, transcritas e utilizadas no transcorrer
do trabalho de campo. Um ponto, entretanto, sempre a incomodou:
o fato de a maioria dos trabalhos que se debruçam sobre
histórias de vida, invariavelmente, usarem num primeiro
momento a fotografia como algo que desperta a lembrança,
para, depois de concluída essa tarefa, excluí-la do conjunto
da investigação. A partir da constatação, surgiram as indagações.
“Queríamos descobrir como dialogar e lidar com a fotografia
numa pesquisa acadêmica, dando a ela o devido valor”.
A
opinião de Fabiana é corroborada pelo professor Etienne,
que coordena, no Departamento de Cinema do IA, o Grupo de
Reflexão Imagem e Pensamento (Grip). Para o orientador
da pesquisa, teria sido mais cômodo render-se ao modus
operandi corriqueiro, por meio do qual, a partir de um leque
de fotografias, procede-se o recolhe de memórias. Segundo
o docente, trata-se do típico registro de história de
vida. “A gente vai transcrevendo e depois deixa as fotos
de lado. Elas acabam voltando para a gaveta”, critica
o professor, para quem o trabalho de sua orientanda é totalmente
novo por seguir na contramão dessa tendência.
“Ela tomou a sério as imagens
para fazer não apenas uma história de vida verbal, mas também
uma fotobiografia visual”, afirma Etienne, ressaltando que,
embora não houvesse um método preconcebido, ele e Fabiana
ficaram muito atentos aos passos que tanto os entrevistados
como o próprio trabalho proporcionavam. “Se a gente perguntar
hoje qual o método adotado, podemos oferecer uma cortina
de elementos que nos parecem realmente novos. Outros poderão
até ser eliminados. Mas a novidade é ter cinco álbuns, nos
quais você diz tudo da vida das fontes – e o que elas escolheram”.
Dar valor ao que se vê não
é caminho dos mais fáceis, reconhece Etienne. Na opinião
do docente, as pessoas não são alfabetizadas para ver –
e entender – o mundo por meio da imagem. O antropólogo ressalta
que não se trata de desprezar a escrita, mas argumenta que
o verbal também é uma dupla imagem. “Vamos imaginar uma
folha de papel branca sobre a qual escrevo ou faço um retrato.
Esse retrato, ou esse texto escrito, só vem à tona se contar
com o suporte dessa página branca. Se isto é uma figura,
o texto escrito é uma dupla figura, já que ele não pode
emergir sem o suporte, essa tela de fundo – outra imagem.
Ignoramos isso e reduzimos a escrita apenas à transcrição
codificada de um alfabeto. É preciso repensá-la. Não descartamos
a escrita, mas sempre damos o devido relevo, em cada etapa,
às imagens”.
Embora esse tipo de reflexão
seja recorrente no Grip, no qual ele conta atualmente com
9 orientandos, Etienne afirma que a pesquisa de Fabiana
é um exemplo emblemático de como a imagem “pode ser portadora
de pensamento” e de como as pessoas podem se sensibilizar
com elas. “Entre elas, ou ao se associarem, essas imagens
têm vida própria, independentemente de nós”, afirma o docente,
que no momento organiza um livro, de cerca de 350 páginas,
cujo título é O que (como) pensam as imagens?
O orientador da pesquisa
enfileira as razões para inserir a investigação de Fabiana
na categoria de seminal. Segundo ele, trata-se, antes de
mais nada, de um trabalho generoso. Ademais, lembra o docente,
a metodologia cresceu no transcorrer do trabalho. “Não partimos
de uma teoria e muito menos tivemos a pretensão de fazer
semiologia, semiótica etc. Tivemos, sim, a audácia de apostar
no escuro, sem saber aonde o trabalho iria desembocar. Fomos
redescobrindo a teoria a partir da prática, daquilo que
se fazia”.
Etienne
revela que, apesar de já ter orientado cerca de 35 trabalhos,
este foi o primeiro que o envolveu desde o começo, além
de ter sido o que despertou um número relevante de questões
as quais nunca teria pensado, chegando ao ponto de rever
seus conceitos acerca da antropologia, em razão de sua
diversidade. “A pesquisa suscitou, em razão de seus aportes
comuns, uma espécie de dubiedade que carecia de aprofundamento”,
admite, elencando alguns desses pontos, entre os quais as
questões da forma, do tempo e da memória da imagem. O
esforço foi compensador. “Estamos notadamente fornecendo
uma bibliografia enorme para quem vai se arriscar”.
Um desses conceitos aos
quais Etienne se refere lhe é particularmente caro, e com
frequência norteia suas incursões no campo da reflexão antropológica.
Trata-se da definição feita pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss,
belga como o docente do IA, acerca da diferenciação do pensamento
do chamado homem selvagem e do nosso, escrito antes da tetralogia
Mitológicas. Na obra, Lévi-Strauss opõe o modo como ambos
fazem ciência. Enquanto, segundo ele, o selvagem é sensível,
concreto e ligado à natureza, o outro é mais racional e
abstrato. Há, entretanto, um liame na intersecção dos dois
pensamentos e ao qual Etienne se apega e reverencia a sua
maneira: a arte.
O
trabalho de Fabiana, na opinião de seu orientador, é um
bom exemplo dessa interação. “É, ao mesmo tempo, ponto
de partida e, talvez, o final de minha longa caminhada pessoal.
O homem não é apenas um cego, um louco. Se quisermos reencontrar
o ser humano, temos que pensar que a fusão das duas vertentes
da realidade humana terá que ser muito melhor inserida
no discurso antropológico. Os antropólogos que ainda não
entenderam isto estão condenados ao formol”, opina o
docente, para complementar. “Só faremos uma boa antropologia
quando nela introduzirmos a arte”.
Essa dimensão artística,
no caso da tese de Fabiana Bruno, dá-se em vários níveis
e suportes, transcendendo a parte teórica, também densa
– de Bateson a Godard. Uma revisão crítica ocupa os primeiros
capítulos do trabalho. A própria confecção artesanal das
fotobiografias é um exemplo da fusão entre os campos poético
e estético, espécie de antídoto ao “analfabetismo visual”.
Sobreposições e transparências permeiam todo o trabalho,
criando um diálogo inusitado entre a imagem e a narrativa.
A opção não foi aleatória. “Há sempre um recorte inicial
e, em algumas fotografias, há uma transparência. Minha ideia
é associá-la às camadas das memórias das pessoas, já que
essas fotos foram escolhidas diversas vezes. Trata-se, em
última instância, de uma metáfora”, revela Fabiana. As transcrições
das narrativas, por sua vez, inovam na forma – de espiral
à labiríntica – e não ignoram o som, o silêncio e as pausas.
Esse
trabalho de “desconstrução” de álbuns de família
tem o condão de permitir, observa Fabiana, uma nova leitura
de suportes quase centenários, embora até se chegar a
ela a autora da pesquisa enfrentasse dilemas inerentes a
sua concepção. “Poderíamos ter feito tudo em formato
multimídia. Isso resolveria todos os problemas, menos um,
que era justamente relacionar imagem e escrita. A intenção
era trabalhar com a dimensão do papel. Isso fazia parte
do conceito”
Desnecessário dizer que
a empreitada foi bem-sucedida. Os “filmes de vida” de cinco
pessoas nascidas há quase um século podem ser vistos, “com
autonomia”, segundo Fabiana, por qualquer interessado, inclusive
por aqueles nascidos neste século. Resta saber como os álbuns
de família serão configurados daqui para a frente, diante
da avalanche multimídia. Isto para não falar da própria
família. Bons temas para novas descobertas foram colocados
na berlinda. Fabiana e Etienne estão atentos.
A
síntese, por Fabiana Bruno
“A tese se configurou
como um estudo verbo-visual, a partir das imagens
(numa primeira instância, a fotográfica) e da memória
representada pelas narrativas de histórias de vida
de pessoas idosas. A conjugação do que chamamos verbo-visual
se deu pela intersecção das operações de escolha,
montagem e remontagem de fotografias guardadas por
cinco pessoas idosas ao longo de suas vidas e dos
relatos orais elaborados espontaneamente durante o
percurso da pesquisa (entenda-se: três momentos de
trabalho de campo e entrevistas, separados por um
intervalo de tempo, que originaram a escolha e a montagem
de conjuntos de 20, 10 e 3 fotografias). Desta maneira,
a metodologia se deu essencialmente pela dinâmica
do próprio trabalho de campo.
O propósito metodológico
buscou desenvolver um modelo de pesquisa para utilização
efetiva e de maneira sistematizada da imagem na composição
de histórias de vida de pessoas idosas. Valorizando
também as palavras/a verbalidade dos informantes,
a tese priorizou as imagens e a montagem dessas imagens
(reunião de fotografias distintas numa composição
alusiva a um filme de vida), oferecidas pelas pessoas
durante a pesquisa, como modo de conhecimento da própria
história de vida e da configuração da memória. Este
modo de conhecimento foi se dando a partir do estudo
de como um conjunto de fotografias ordenadas por idosos
poderia, quando associadas, serem capazes de dialogar,
produzir pensamento e serem também ‘formas que pensam’
(Godard). Desta forma, considerando as histórias de
vida pertencentes à Antropologia nos arriscamos a
pensar este modelo, no campo antropológico, incorporando
a dimensão visual-estética”.
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Esta
caixa contém:
Dimensões:
32 cm (altura)
x18 cm (largura) x 23,5 cm (profundidade)
Peso: 6 kg
1 volume – livro tese
5 volumes – Fotobiografias
5 cadernos de arranjos visuais
1 DVD com audiovisual dos informantes
150 fotografias relacionadas a histórias
de vida
40 horas de entrevistas
738 páginas