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Entre árias e o cancioneiro popular

Pesquisa de professora do IFCH investiga
inserção da música na TV nos anos 50

MARIA ALICE DA CRUZ

A professora Rita de Cássia Lahoz Morelli: “A música dessa década tem sido preterida em favor de outros objetos de interesse” (Foto: Antoninho Perri)A música erudita e a popular dividiam espaço na TV brasileira da década de 1950. Enquanto a TV Tupi, de propriedade de Assis Chateaubriand, investia numa programação marcada por árias de óperas, operetas e balé, a TV Record apostava num repertório nacional e popular, com participação de músicos como Ary Barroso, Inezita Barroso, Dorival Caymmi, Elizeth Cardoso, Ataulfo Alves, Jacob do Bandolim, Aracy de Almeida, Mestre Durva e suas Pastoras, entre outros. Essas informações constam do trabalho intitulado “Música na Televisão de São Paulo: distinção, identidade e performance na década de 1950”, apresentado pela professora Rita de Cássia Lahoz Morelli, do Departamento de Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), na 33ª Reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), realizada na semana passada na cidade mineira de Caxambu. O trabalho é parte da pesquisa “Músicas e músicos na TV de São Paulo: trabalho, distinção e identidade”, financiada pela Fapesp, que terá continuidade com a análise da década de 1960 e das emissoras Bandeirantes e Cultura, segundo Rita.

A pesquisa, amparada em textos de conteúdo jornalístico disponíveis no Arquivo do Estado de São Paulo, na capital paulista, e no Arquivo Edgard Leuenroth da Unicamp (AEL), publicados nos jornais O Dia, de São Paulo, e nas revistas O Cruzeiro e Revista do Rádio, revela que, apesar da adesão à chamada linha verde-amarela, implantada já na Rádio Record antes do advento da TV, a música popular “selecionada” para a programação da TV Record, com exceção dos programas de música dita “folclórica”, recebia tratamento orquestral que, desde os anos anteriores, indicava a aplicação de critérios eruditos de julgamento da qualidade da música popular. “As grandes orquestras das tevês Tupi, Record e, no caso da Paulista, a da Rádio Nacional de São Paulo, acompanhavam os artistas mais populares mesmo na época em que os programas eram ao vivo”, afirma a professora.

Em meio a um vasto material composto de mais de mil recortes de textos, fotos de programas da época e uma infinidade de fichas de pesquisa, manuscritas minuciosamente, a pesquisadora desvenda aspectos de uma década preterida pelos estudiosos de antropologia musical. Um período em que a TV Tupi surgia, anunciando suas operetas diretamente pelo nome. Entre maio e julho de 1954, foram mencionadas no jornal O Dia as peças “Alvorada de Amor”, de Victor Schertzinger, “Scunizza”, “Amores de Príncipe”, “A Jurity”, de Viriatto Correia, e “Última Valsa”.

De acordo com textos da coluna do compositor Denis Brean, no jornal O Dia, a emissora tinha um “cast especializado”, liderado por Pedro Celestino, irmão de Vicente Celestino, do qual ele cita Tânia Amaral, Tercina Sarraceni, João Monteiro, Arnaldo Pescuma, Romeu Feres, Nancy Louzã Miranda, Vera Helena, Amadeu Celestino, Aida Mar e Maria da Glória.
Da estreia, em junho de 1954, até novembro do mesmo ano, a TV Tupi anunciou, para o programa “Grandes Momentos Líricos”, as árias mais famosas de grandes óperas como “Madame Buterfly”, “La Traviata”, “Cavaleria Rusticana”, “La Bohéme” e “Lúcia de Lammermoor”. Do elenco, são citados Nancy Louzã Miranda, Nino Valsanni, Geraldo Castelar e José Parisi, além das cantoras Egle Bittencout, em “Cavaleria Rusticana”, e Clélia Simone e Tereza Vieira, em “La Bohéme”.

As transcrições de Rita mencionam também o programa “Música e Fantasia”, da Tupi, exibido quinzenalmente, com um repertório de música clássica e balé, ora regido pelo maestro Rafael Pugliesi, ora por Souza Lima. Entre os programas populares da emissora, estavam “Clube dos Artistas”, “Palhinha na TV” e “Feira de Amostras”. No primeiro, apresentavam-se os “cantores do Sumaré”, ou os “intérpretes populares” da TV Tupi.

A pesquisadora explica que, no final da década de 1950, a música perde seu protagonismo na tela da Tupi, enquanto a TV Record, que continua investindo muito em conteúdo musical, passa a apresentar uma característica que será notável na década seguinte: a diversidade de expressões musicais, tanto nacionais como estrangeiras, dada a guinada internacionalista iniciada em 1957 com os primeiros programas de rock e com o patrocínio para a vinda de grandes astros da música norte-americana ao país.

No horário nobre
As programações diárias completas das TVs Tupi, Record e Paulista publicadas nas edições do Diário Popular de setembro a outubro de 1954, transcritas pela professora, revelam-se uniformes por apostar em programas voltados para o público feminino ou infantil nas primeiras horas, esporte logo em seguida, telejornalismo e humorismo na sequência, cabendo aos programas teatrais e aos musicais os horários nobres da grade. A maior parte dos programas musicais, segundo Rita, já tinha nome, como “Astros e ritmos” e “Astros e estrelas”, que as TVs Paulista e Record exibiam, respectivamente, no mesmo horário das 21 horas. Outras atrações eram divulgadas apenas pelo conteúdo como “Recitais”, “Solistas” e “Coral e quarteto”, exibidos pela TV Paulista. Alguns programas recebiam o nome do próprio artista, entre os quais “Conjunto Hawai” e “André Penazzi”, na Paulista, “Luis Vieira”, “Inezita Barroso” e “Tia Amélia”, na Record.

Também em 1954, segundo Rita, a TV Record divulgava comercialmente uma programação especial no jornal O Estado de S.Paulo, na qual dava destaque a algumas atrações. A impressão de que a música tinha importância, tanto qualitativa quanto quantitativa, foi reforçada ao longo da leitura da coluna “Vendo e Ouvindo”, do jornal O Dia, que, segundo Rita, se transformou em pura transcrição de informativos enviados pelas emissoras, em 1959. “Os programas musicais eram divulgados com mais frequência que os outros”, acrescenta.

No interregno
O fato de a década de 1950 ter transcorrido inteiramente no chamado interregno (intervalo entre dois governos) democrático, ocorrido entre o fim do Estado Novo e o golpe militar, estimulou o interesse de Rita por possíveis investimentos identitários na música divulgada nesse período. “Quando o Estado reflui em termos de investimentos identitários nacionais em música é que podem surgir outros investimentos. Procuro esses ‘outros’ investimentos”, diz.

Ela afirma que alguns indícios de investimento estatutário (por status) na Tupi, considerada elitista, são encontrados em reportagens nas quais Chico Vizzoni comenta para O Cruzeiro os programas “Música e Fantasia” e “Antarctica no mundo dos sons”. “Mas não é possível afirmar”, reforça. Já no caso da Record, esse investimento parece ter ocorrido do lado de fora da emissora, já que Rádio e TV Record foram palco para a atuação de músicos da chamada Velha Guarda que, liderados por Almirante, iniciavam, naquele momento, a atuação que redundaria, em longo prazo, no que o historiador Marcos Napolitano chamou de a “institucionalização da MPB”.

Naquele período, anunciantes e produtores pareciam não fazer distinção entre os cantores, pois era permitido aos anunciantes incluir suas marcas nos próprios nomes dos programas que patrocinavam, por mais valorizados que fossem os artistas que neles se apresentassem. Ângela Maria, em 1956, na TV Paulista, e Maysa, em 1959, na TV Record, por exemplo, tiveram seus respectivos programas exclusivos intitulados simplesmente de “Espetáculos Piraquê”.

Pelo material analisado, Rita observa a operação de alguns mecanismos sutis de hierarquização dos artistas, no modo como o colunista Newton Mendonça, de O Dia, se referia a eles. Já a TV Record, na opinião da pesquisadora, procurava valorizar seu “cast” como um todo, em vez de insinuar que uns eram melhores que os outros.
A autora propõe uma investigação mais aprofundada da opção anterior da Rádio Record na linha verde-amarela, mas afirma que também não há, no material coletado, discursos que permitam fazer conjecturas sobre investimentos identitários nacionais em música por parte das emissoras.

‘Teenagers’ e ‘coloureds’
Das operetas napolitanas ao rock, passando pelas guarânias de origem paraguaia, pelo fado, pelo samba, pelo tango argentino e pelo carnaval, as emissoras de TV performatizavam uma nação realisticamente heterogênea, que apresentava uma diversidade musical enorme, revela a pesquisa.

Essa performatização também foi investigada nos documentos sob o ponto de vista dos investimentos de identidade étnica, etária e também de gênero. Uma das coisas que chamaram a atenção de Rita para isso foi o adjetivo “coloured”, utilizado em apenas três momentos sugestivos, dois deles para agregar valor a artistas norte-americanos em temporada na TV Record e, num terceiro momento, como se o colunista tivesse emprestado a expressão dos releases norte-americanos para valorizar uma artista carioca negra numa temporada carnavalesca na TV Record.

Outra expressão – “teenagers” – chamou a atenção da pesquisadora ao ver a possibilidade do investimento na programação diferenciada por idade. A expressão teria sido utilizada para agregar valor ao rock, um tipo de música então recém-chegado dos Estados Unidos. “Essas referências por idade e gênero parecem ter sido importantes na construção das grades de programação das emissoras desde o início, por causa do número de programas infantis e femininos”, pontua Rita.

 

Estudo contempla década preterida por estudiosos

A importância de estudar a programação da década de 1950, segundo Rita, está no fato de ela ter sido preterida em pesquisas de estudiosos da música popular brasileira e também da televisão no Brasil. “A música dessa década tem sido preterida em favor de outros objetos de interesse.” Ela observa que, se de um lado, os interesses dos pesquisadores de música na TV estão em sua utilização como palco dos festivais de Música Popular Brasileira que, em meados da década de 1960, representaram um marco na consolidação da chamada MPB, por outro, os estudiosos de TV estão focados na programação dramatúrgica, sobretudo nas telenovelas, tanto nos estudos de conteúdo quanto nos estudos de recepção.

Rita apresenta como exceção única o trabalho de José Ramos Tinhorão, intitulado Do gramofone ao rádio e TV, pelo interesse desse pesquisador em mídias como veículos de circulação de música. Mas, segundo ela, mesmo Tinhorão parece ter-se atido apenas à programação musical da televisão carioca, e não realizou, de fato, um levantamento minucioso como o dela, e sim uma análise geral de suas implicações sociológicas. “De qualquer maneira, as questões que formulo em meu projeto tornam-se relevantes justamente porque dão prosseguimento a reflexões iniciadas por outros, tanto no campo dos estudos da música popular brasileira quanto no campo dos estudos de televisão no Brasil.”

 

 

 
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