A
música erudita e a popular dividiam espaço na TV brasileira
da década de 1950. Enquanto a TV Tupi, de propriedade de
Assis Chateaubriand, investia numa programação marcada
por árias de óperas, operetas e balé, a TV Record apostava
num repertório nacional e popular, com participação de
músicos como Ary Barroso, Inezita Barroso, Dorival Caymmi,
Elizeth Cardoso, Ataulfo Alves, Jacob do Bandolim, Aracy
de Almeida, Mestre Durva e suas Pastoras, entre outros.
Essas informações constam do trabalho intitulado “Música
na Televisão de São Paulo: distinção, identidade e performance
na década de 1950”, apresentado pela professora Rita
de Cássia Lahoz Morelli, do Departamento de Antropologia
Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH),
na 33ª Reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), realizada na semana
passada na cidade mineira de Caxambu. O trabalho é parte
da pesquisa “Músicas e músicos na TV de São Paulo:
trabalho, distinção e identidade”, financiada pela Fapesp,
que terá continuidade com a análise da década de 1960
e das emissoras Bandeirantes e Cultura, segundo Rita.
A pesquisa, amparada em
textos de conteúdo jornalístico disponíveis no Arquivo do
Estado de São Paulo, na capital paulista, e no Arquivo Edgard
Leuenroth da Unicamp (AEL), publicados nos jornais O Dia,
de São Paulo, e nas revistas O Cruzeiro e Revista do Rádio,
revela que, apesar da adesão à chamada linha verde-amarela,
implantada já na Rádio Record antes do advento da TV, a
música popular “selecionada” para a programação da TV Record,
com exceção dos programas de música dita “folclórica”, recebia
tratamento orquestral que, desde os anos anteriores, indicava
a aplicação de critérios eruditos de julgamento da qualidade
da música popular. “As grandes orquestras das tevês Tupi,
Record e, no caso da Paulista, a da Rádio Nacional de São
Paulo, acompanhavam os artistas mais populares mesmo na
época em que os programas eram ao vivo”, afirma a professora.
Em meio a um vasto material
composto de mais de mil recortes de textos, fotos de programas
da época e uma infinidade de fichas de pesquisa, manuscritas
minuciosamente, a pesquisadora desvenda aspectos de uma
década preterida pelos estudiosos de antropologia musical.
Um período em que a TV Tupi surgia, anunciando suas operetas
diretamente pelo nome. Entre maio e julho de 1954, foram
mencionadas no jornal O Dia as peças “Alvorada de Amor”,
de Victor Schertzinger, “Scunizza”, “Amores de Príncipe”,
“A Jurity”, de Viriatto Correia, e “Última Valsa”.
De acordo com textos da
coluna do compositor Denis Brean, no jornal O Dia, a emissora
tinha um “cast especializado”, liderado por Pedro Celestino,
irmão de Vicente Celestino, do qual ele cita Tânia Amaral,
Tercina Sarraceni, João Monteiro, Arnaldo Pescuma, Romeu
Feres, Nancy Louzã Miranda, Vera Helena, Amadeu Celestino,
Aida Mar e Maria da Glória.
Da estreia, em junho de 1954, até novembro do mesmo ano,
a TV Tupi anunciou, para o programa “Grandes Momentos Líricos”,
as árias mais famosas de grandes óperas como “Madame Buterfly”,
“La Traviata”, “Cavaleria Rusticana”, “La Bohéme” e “Lúcia
de Lammermoor”. Do elenco, são citados Nancy Louzã Miranda,
Nino Valsanni, Geraldo Castelar e José Parisi, além das
cantoras Egle Bittencout, em “Cavaleria Rusticana”, e Clélia
Simone e Tereza Vieira, em “La Bohéme”.
As transcrições de Rita
mencionam também o programa “Música e Fantasia”, da Tupi,
exibido quinzenalmente, com um repertório de música clássica
e balé, ora regido pelo maestro Rafael Pugliesi, ora por
Souza Lima. Entre os programas populares da emissora, estavam
“Clube dos Artistas”, “Palhinha na TV” e “Feira de Amostras”.
No primeiro, apresentavam-se os “cantores do Sumaré”, ou
os “intérpretes populares” da TV Tupi.
A pesquisadora explica que,
no final da década de 1950, a música perde seu protagonismo
na tela da Tupi, enquanto a TV Record, que continua investindo
muito em conteúdo musical, passa a apresentar uma característica
que será notável na década seguinte: a diversidade de expressões
musicais, tanto nacionais como estrangeiras, dada a guinada
internacionalista iniciada em 1957 com os primeiros programas
de rock e com o patrocínio para a vinda de grandes astros
da música norte-americana ao país.
No horário nobre
As programações diárias completas das TVs Tupi, Record e
Paulista publicadas nas edições do Diário Popular de setembro
a outubro de 1954, transcritas pela professora, revelam-se
uniformes por apostar em programas voltados para o público
feminino ou infantil nas primeiras horas, esporte logo em
seguida, telejornalismo e humorismo na sequência, cabendo
aos programas teatrais e aos musicais os horários nobres
da grade. A maior parte dos programas musicais, segundo
Rita, já tinha nome, como “Astros e ritmos” e “Astros e
estrelas”, que as TVs Paulista e Record exibiam, respectivamente,
no mesmo horário das 21 horas. Outras atrações eram divulgadas
apenas pelo conteúdo como “Recitais”, “Solistas” e “Coral
e quarteto”, exibidos pela TV Paulista. Alguns programas
recebiam o nome do próprio artista, entre os quais “Conjunto
Hawai” e “André Penazzi”, na Paulista, “Luis Vieira”, “Inezita
Barroso” e “Tia Amélia”, na Record.
Também em 1954, segundo Rita, a TV Record
divulgava comercialmente uma programação especial no jornal
O Estado de S.Paulo, na qual dava destaque a algumas atrações.
A impressão de que a música tinha importância, tanto qualitativa
quanto quantitativa, foi reforçada ao longo da leitura da
coluna “Vendo e Ouvindo”, do jornal O Dia, que, segundo
Rita, se transformou em pura transcrição de informativos
enviados pelas emissoras, em 1959. “Os programas musicais
eram divulgados com mais frequência que os outros”, acrescenta.
No
interregno
O fato de a década de 1950 ter transcorrido inteiramente
no chamado interregno (intervalo entre dois governos) democrático,
ocorrido entre o fim do Estado Novo e o golpe militar, estimulou
o interesse de Rita por possíveis investimentos identitários
na música divulgada nesse período. “Quando o Estado reflui
em termos de investimentos identitários nacionais em música
é que podem surgir outros investimentos. Procuro esses ‘outros’
investimentos”, diz.
Ela afirma que alguns indícios de investimento
estatutário (por status) na Tupi, considerada elitista,
são encontrados em reportagens nas quais Chico Vizzoni comenta
para O Cruzeiro os programas “Música e Fantasia” e “Antarctica
no mundo dos sons”. “Mas não é possível afirmar”, reforça.
Já no caso da Record, esse investimento parece ter ocorrido
do lado de fora da emissora, já que Rádio e TV Record foram
palco para a atuação de músicos da chamada Velha Guarda
que, liderados por Almirante, iniciavam, naquele momento,
a atuação que redundaria, em longo prazo, no que o historiador
Marcos Napolitano chamou de a “institucionalização da MPB”.
Naquele período, anunciantes e produtores
pareciam não fazer distinção entre os cantores, pois era
permitido aos anunciantes incluir suas marcas nos próprios
nomes dos programas que patrocinavam, por mais valorizados
que fossem os artistas que neles se apresentassem. Ângela
Maria, em 1956, na TV Paulista, e Maysa, em 1959, na TV
Record, por exemplo, tiveram seus respectivos programas
exclusivos intitulados simplesmente de “Espetáculos Piraquê”.
Pelo material analisado, Rita observa a
operação de alguns mecanismos sutis de hierarquização dos
artistas, no modo como o colunista Newton Mendonça, de O
Dia, se referia a eles. Já a TV Record, na opinião da pesquisadora,
procurava valorizar seu “cast” como um todo, em vez de insinuar
que uns eram melhores que os outros.
A autora propõe uma investigação mais aprofundada da opção
anterior da Rádio Record na linha verde-amarela, mas afirma
que também não há, no material coletado, discursos que permitam
fazer conjecturas sobre investimentos identitários nacionais
em música por parte das emissoras.
‘Teenagers’ e ‘coloureds’
Das operetas napolitanas ao rock, passando pelas guarânias
de origem paraguaia, pelo fado, pelo samba, pelo tango argentino
e pelo carnaval, as emissoras de TV performatizavam uma
nação realisticamente heterogênea, que apresentava uma diversidade
musical enorme, revela a pesquisa.
Essa performatização também foi investigada
nos documentos sob o ponto de vista dos investimentos de
identidade étnica, etária e também de gênero. Uma das coisas
que chamaram a atenção de Rita para isso foi o adjetivo
“coloured”, utilizado em apenas três momentos sugestivos,
dois deles para agregar valor a artistas norte-americanos
em temporada na TV Record e, num terceiro momento, como
se o colunista tivesse emprestado a expressão dos releases
norte-americanos para valorizar uma artista carioca negra
numa temporada carnavalesca na TV Record.
Outra expressão – “teenagers” – chamou
a atenção da pesquisadora ao ver a possibilidade do investimento
na programação diferenciada por idade. A expressão teria
sido utilizada para agregar valor ao rock, um tipo de música
então recém-chegado dos Estados Unidos. “Essas referências
por idade e gênero parecem ter sido importantes na construção
das grades de programação das emissoras desde o início,
por causa do número de programas infantis e femininos”,
pontua Rita.
Estudo
contempla década preterida por estudiosos
A importância de estudar
a programação da década de 1950, segundo Rita, está
no fato de ela ter sido preterida em pesquisas de
estudiosos da música popular brasileira e também da
televisão no Brasil. “A música dessa década tem sido
preterida em favor de outros objetos de interesse.”
Ela observa que, se de um lado, os interesses dos
pesquisadores de música na TV estão em sua utilização
como palco dos festivais de Música Popular Brasileira
que, em meados da década de 1960, representaram um
marco na consolidação da chamada MPB, por outro, os
estudiosos de TV estão focados na programação dramatúrgica,
sobretudo nas telenovelas, tanto nos estudos de conteúdo
quanto nos estudos de recepção.
Rita apresenta como
exceção única o trabalho de José Ramos Tinhorão, intitulado
Do gramofone ao rádio e TV, pelo interesse desse pesquisador
em mídias como veículos de circulação de música. Mas,
segundo ela, mesmo Tinhorão parece ter-se atido apenas
à programação musical da televisão carioca, e não
realizou, de fato, um levantamento minucioso como
o dela, e sim uma análise geral de suas implicações
sociológicas. “De qualquer maneira, as questões que
formulo em meu projeto tornam-se relevantes justamente
porque dão prosseguimento a reflexões iniciadas por
outros, tanto no campo dos estudos da música popular
brasileira quanto no campo dos estudos de televisão
no Brasil.”
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