Doença
de Alzheimer (DA) do ponto de vista clínico é uma patologia
cerebral do tipo degenerativa, com aspectos neuropatológicos
e neuroquímicos característicos. Afeta os processos cognitivos,
dentre os quais a memória, a linguagem e a atenção, comprometendo
o funcionamento mental e social. Devido ao seu caráter progressivo,
pode se desenvolver lenta e continuamente durante vários
anos.
Dada a complexidade de aspectos envolvidos no entendimento
da perda da cognição humana, além dos temas predominantes
nas pesquisas biomédicas, várias formas de abordar a doença
assumem cada vez mais relevância na agenda das pesquisas,
partindo de perspectivas como as da antropologia, da psicologia
e da lingüística, que são algumas das áreas do conhecimento
envolvidas na abordagem da DA.
Foi na área de Lingüística que a doutoranda Fernanda Miranda
da Cruz desenvolveu uma tese sobre a linguagem na DA, num
convênio de co-tutela entre a Unicamp e a École Normale
Superiéure em Lettres e Sciences Humaines, de Lyon, na França.
Na Unicamp, a pesquisa foi desenvolvida no Instituto de
Estudos da Linguagem (IEL), orientada pela professora Edwiges
Maria Morato, que atua no laboratório de Fonética, Psicolingüística
e Neurolingüística (Lafape-Labone). Em Lyon, a co-orientação
foi da professora Lorenza Mondada (ENS-LSH).
A linguagem, diz Fernanda, é um dos aspectos alterados
na DA, observável através da perda das habilidades comunicativas,
de palavras e através de repetições que se tornam mais recorrentes
com o avanço da doença. Nesses casos, normalmente, a linguagem
é investigada através de testes que utilizam métodos quantitativos
e da criação de contextos artificiais para a produção verbal.
Ela explica que estava interessada em investigar o que acontece
com a linguagem nos quadros de DA quando considerados fora
de ambientes experimentais e artificiais de produção, mas
em situações reais de seu uso na vida cotidiana.
Para isso, a pesquisadora registrou em vídeo conversações
de pessoas diagnosticadas com distintos interlocutores,
tais como médicos e familiares em situações cotidianas,
tanto em ambientes institucionais – casas de repouso, hospitais,
consultas clínicas etc – como em ambientes familiares.
A metodologia utilizada consistiu, com anuência dos doentes
e circunstantes, no registro em vídeo e áudio de suas interações,
sem a intervenção mais direta da pesquisadora ou aplicação
de formulários de perguntas e testes. A filmadora normalmente
era fixada em lugar combinado e o início e o fim dos registros
foram controlados pelos participantes não-doentes – no caso,
familiares ou médicos.
Da pesquisa participaram 22 doentes em estágios leve e
moderado, junto com seus interlocutores. Os sujeitos selecionados
são pacientes regulares do Ambulatório de Neurologia da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e de outros
serviços de saúde no Brasil e na França. Do material coletado
resultou um corpus de 40 horas de linguagem natural de sujeitos
com DA, chamado corpus DALI (Doença de Alzheimer, Linguagem
e Interação). Desse corpus, constam conversas que se deram
durante refeições familiares, programas de TV, jogos de
cartas, visitas familiares a doentes que vivem em instituições,
consultas clínicas, etc.
Ela esclarece que a linguagem nos três estágios básicos
da doença – inicial, moderado e avançado – se modifica e
a descrição encontrada na literatura existente consegue
reconhecer essas modificações. No entanto, explica a pesquisadora,
ainda ficam algumas lacunas com relação à linguagem em uso
e uma descrição mais próxima do que acontece nas práticas
lingüísticas dos sujeitos. “Nesse contexto é que entra a
lingüística de forma mais efetiva. Podemos nos perguntar
se os aspectos que seriam considerados “externos” ao indivíduo
e seu cérebro estão relacionados aos contextos vividos e
atuais como, por exemplo, se a pessoa vive em instituição
ou com a família e se encontra bem inserida nela; se vive
num ambiente rico de interações; se depois do anúncio do
diagnóstico houve mudança nessas interações vivenciadas
antes da manifestação da doença; e como interpretar as influências
do grau de escolaridade nas avaliações, entre outros. Essas
são perguntas importantes para que se possa dizer se e como
essas variáveis revelam-se pertinentes para o entendimento
do declínio da linguagem e como explicam o processo de declínio
cognitivo”.
Segundo Fernanda, se essas variáveis ditas externas têm
influência na degeneração do quadro, não se pode falar em
declínio cognitivo apenas no sentido mental, mas é preciso
ampliar a sua noção e pensá-lo como sócio-cognitivo. Fernanda
ressalta que é preciso levar em consideração que influenciam
o declínio tanto as estruturas cerebrais afetadas como a
organização social em que a pessoa se insere, além do seu
histórico de vida.
Análise e resultados
Com base em distintas situações interativas envolvendo rotinas
diárias dos portadores da DA, Fernanda verificou os efeitos
dessas situações sobre a linguagem dos doentes, descrevendo-as.
As investigações mostraram que há contextos mais – ou menos
– favoráveis à comunicação desses sujeitos. Ela diz que,
com relação às características lingüísticas, o estudo mostrou
de forma mais especifica que as limitações – lingüísticas,
mnêmicas e cognitivas – manifestadas na interação social
não exibem uma forma única cuja descrição possa ser feita
com base apenas na produção lingüística do portador da DA,
provocada em situações experimentais.
A pesquisa procurou mostrar como a patologia cerebral altera
a linguagem. Mas revelou ainda que o anúncio do diagnóstico
da DA também altera as rotinas lingüísticas dos seus portadores
e de seu entorno social. Nos casos analisados, Fernanda
encontrou um número significativo de interações em que os
familiares evocam episódios passados relacionados à vida
dos pacientes, com o objetivo de verificar-lhes a acuidade
da memória. Esses episódios confrontam o doente com seus
déficits de memória e parecem indicar, segundo ela, que
há modificações nas rotinas sociolingüísticas deles e de
seus familiares. A respeito, ela afirma que “mudanças desse
tipo revelam que entender a DA não significa entender apenas
o que acontece no nível cerebral, mas também compreender
toda uma estrutura social na qual o doente se insere”.
As pessoas acometidas pela patologia experimentam mudanças
significativas na vida pública e privada, relacionadas à
administração de bens, às decisões de internação e de escolha
de tutela, ao estabelecimento de novas rotinas sociolingüísticas
e de lugares institucionais. Ademais, os familiares mais
próximos se vêem ainda muitas vezes às voltas com o diagnóstico
de uma patologia que desconhecem e com o medo de virem a
desenvolvê-la mais tarde.
As análises feitas pela pesquisadora mostraram as inter-relações
entre os níveis lingüísticos – fonéticos, fonológicos, sintáticos,
semântico, as corriqueiras e diversas práticas cotidianas
de linguagem; o papel dos interlocutores; as instâncias
interativas e as rotinas sociais – ou a ausência delas –,
cujos aspectos influenciam na descrição da linguagem nos
quadros de DA. Para ela “o reconhecimento dessas variáveis
é fundamental para um entendimento do que acontece na linguagem
na DA. A investigação da linguagem não deve, dessa forma,
se restringir às produções individuais daquele que é acometido
pela DA, mas também é preciso olhar para as práticas lingüísticas
dos portadores e daqueles que interagem com o doente”.
Outras ‘desorganizações’, da rotina
à vida social