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eu me sentia condenado duas vezes: a primeira, por ter Aids
e a segunda, por ser obrigado a vir todo santo dia ao hospital,
pra me medicar. Era como se eu fosse um prisioneiro. Agora,
voltei a ter vida pessoal e até consigo trabalhar.
O desabafo é do garçom M.S.I.G., 26 anos, e
reflete os benefícios que já se esboçam
de uma pesquisa em desenvolvimento no Departamento de Clínica
Médica da FMC/Unicamp, pelo infectologista Luís
Fernando Waib.
Há
quase um ano e meio Waib monitora um grupo que chegou a 33 pacientes
com Aids, voluntários para seu projeto multicêntrico
de mestrado, que propõe a retirada do medicamento Ganciclovir
da chamada profilaxia secundária vitalícia,
ou seja, prevenção às doenças oportunistas.
A droga, embora indicada para combater o Citomegalovirus (um
herpes-vírus bastante perigoso para pacientes imunodepressivos,
capaz até de comprometer o sistema nervoso central),
tem efeitos colaterais extremamente agressivos, pela sua toxidade.
Até
agora, os resultados têm sido muito animadores, pois só
tivemos duas recidivas, diz o médico, referindo-se
aos poucos casos de reaparecimento dos efeitos oportunistas
algum tempo depois da convalescência (veja quadro nesta
página). Waib destaca ainda outras duas vantagens dessa
abordagem terapêutica: Além de não
ser mais acometido pelas reações adversas do medicamento,
o paciente passa a experimentar uma melhora substancial em sua
qualidade de vida, pois a administração do Ganciclovir
tem que ser intensiva, exigindo a presença quase diária
do doente à unidade de tratamento, o que o impede de
trabalhar e de exercer outras atividades. Sem contar que trata-se
de uma substância cara, que onera em muito o sistema público
de saúde.
Apesar das
vantagens, a proposta é restrita àqueles doentes
de Aids que já recuperaram um grau satisfatório
de imunidade, graças ao uso do chamado coquetel.
Tanto, que o título da tese de mestrado é Retirada
da terapia de supressão para Citomegalovirus em pacientes
com SIDA com resposta à Terapia Antirretroviral Altamente
Eficaz (HAART). Neste mês, 21 pacientes do grupo
arrolado já terão completado um ano de experiência,
período pré-fixado no protocolo do projeto,
diz Waib. O pesquisador estima concluir o trabalho até
o final do ano. Com verba já em estágio de liberação
pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo) foram requisitados R$
40 mil o projeto envolve quatro centros: Hospital das
Clínicas da Unicamp, Ambulatório Municipal de
DST/Aids de Campinas, Instituto de Infectologia Emílio
Ribas e Centro de Referência e Treinamento em Aids (CRTA)
de São Paulo. Do grupo de 33 voluntários arrolados,
13 são pacientes do Hospital das Clínicas da Unicamp.
Waib situa
sua motivação para se lançar nessa pesquisa
no início de 1999, a partir de sua experiência
médica com pacientes do Hospital-Dia do HC. Comecei
a perceber que um número cada vez maior deles apresentava
uma boa recuperação, por causa do coquetel. Mas
o que me convenceu mesmo foi a propriedade com que eles mesmos
questionavam o fato de serem submetidos a um tratamento secundário
tão tóxico, a ponto de o benefício preventivo
não suplantar o impacto físico. Por fim, era impossível
ficar impassível ante as queixas relativas aos prejuízos
na vida pessoal, principalmente no tocante à impossibilidade
de geração de renda para subsistência.
Obviamente,
não foi apenas a emotividade que guiou os passos de Waib.
O tratamento de Aids sofreu mudanças qualitativas
nos últimos 6 anos, devido à composição
de um conjunto de drogas capaz de inibir de forma eficaz o HIV.
Dessa forma, houve aumento considerável da sobrevida
dos pacientes, afirma.
Com a recuperação do sistema imunológico,
proporcionada por esse tratamento, algumas doenças
oportunistas, principalmente aquelas que acometem pacientes
com imunossupressão grave, tiveram suas incidências
bastante reduzidas, observa Waib.
Ele ressalta
que antes desse avanço do esforço mundial de combate
à Aids, pacientes que apresentavam doenças oportunistas
como as provocadas pelo Citomegalovirus mais referido
na literatura médica pela sigla CMV tinham indicação
sempre inquestionável de profilaxia secundária
vitalícia.
Vírus
híbrido O CMV se enquadra entre os oito tipos
de herpesvirus patogênicos para o homem. Na verdade, explica
Waib, trata-se de um vírus híbrido - DNA + RNA
-, como publicado recentemente. Estudos norte-americanos situam
sua prevalência entre recém-nascidos de 0,2% a
2,2%. Em se tratando de adultos, quando os infectados
são saudáveis, raramente ocorre a eliminação
de quantidades consideráveis de partículas virais,
frisa o pesquisador. No caso de pacientes com Aids, o
vírus pode afetar órgãos nobres, como o
sistema nervoso central e retina. Temos aí, portanto,
uma população para a qual a reativação
do vírus representa alto risco, desde perda de visão
a déficit neurológico.
Nessa margem
de risco, é formalmente indicado o uso de Ganciclovir
como terapia de supressão. Porém, sempre
se constatou o quanto as conseqüências dessa abordagem
eram desastrosas do ponto de vista clínico, relata
o médico. Na maioria dos casos, as doenças
oportunistas se sobrepunham e a quantidade de drogas usadas
em profilaxia secundária também.
O infectologista
destaca alguns dos efeitos colaterais aumento da
toxidade em diversos tecidos, como medula óssea e sistema
nervoso, intolerância gástrica, para apontar
um fator tão recorrente quanto preocupante dentro deste
quadro: Tudo isso contribui fortemente para a falha de
adesão ao tratamento.
Riscos
O médico reconhece ser irrefutável o potencial
do Ganciclovir de inibir a replicação do CMV.
Mas como o Ganciclovir inibe a síntese de DNA,
pode provocar também alterações medulares,
como aplasias e anemia, adverte. Waib cita ainda que a
associação do Ganciclovir com a Zidovudina, um
dos mais importantes antiretrovirais usados na terapia combinada,
pode até provocar mielotoxidade grave, com risco de vida.
Outro
aspecto a ser ponderado é o custo geral da medicação,
que inclui os gastos com a compra, sua administração,
a infra-estrutura exigida, além dos exames laboratoriais
de controle, necessários na monitorização
dos efeitos colaterais, acrescenta.
Insistindo
no impacto na qualidade de vida dos pacientes, Waib explica
que, mesmo sendo feita em leitos-dia e, na maioria das vezes,
sem demanda de internação, a administração
diária do Ganciclovir implica na necessidade de locomoção,
disponibilidade de tempo e dificuldade de compatibilização
com uma atividade remunerada por parte do paciente.
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