CARMEN
LÚCIA SOARES
á
um higienismo e porque não dizer um eugenismo contemporâneos
verdadeiramente assustadores onde impera uma compreensão
de corpo como santuário do músculo, como emblema
da cultura da aparência regulada por um ciclo de absorção
e de eliminação, tanto orgânica quanto
econômica.
[...]O
higienismo e o eugenismo hoje imprimem ao corpo uma visibilidade
nunca antes vista e compõem um amplo projeto estético
da aparência que desemboca em uma afirmação
narcísica ou é o seu nascedouro.
A
subjetividade humana que implica mergulho e reflexão,
compreensão de desejos e sonhos reduz-se à intimidade
narcísica de centímetros de bíceps, cinturas,
coxas, nádegas, de pedaços do corpo que são
transformados com astúcia e perseverança com
o auxílio não apenas dos exercícios físicos
mas, também, de todo um mercado que existe em função
da norma a ser alcançada. São aminoácidos,
vitaminas e alimentos dietéticos, cirurgias que acrescentam
e/ou retiram coisas para que o corpo atinja a forma ou, conforme
Certeau, para que ele possa se adequar à norma.
Praticar
alguma atividade física formal hoje é quase
uma religião, não isenta da culpa quando a ela
se falta ou não se é fiel. É também
um ato sacrificial disfarçado de alegria obrigatória,
conforme as análises de Vaz. Talvez seja possível
afirmar que este modelo já fora bem trabalhado pela
Ginástica no passado, ou seja, a idéia de utilidade
da ação para uso posterior. Somente o que era
útil era valorizado.
Hoje, contudo, podemos indagar para onde vão esses
seres feitos de montanhas de músculos senão
exibir-se numa sociedade que cada vez mais prescinde da força
muscular? Quando entramos nos modernos santuários do
corpo, as academias, o que vemos diante de nossos olhos? Meu
olhar identifica quase replicantes como aquelas personagens
centrais do filme Blade Runner, dirigido por Ridley
Scot, em 1981.
Quando
comparamos imagens fílmicas de skinheads, de grupos
neonazistas1 e imagens fílmicas de ginástica
aeróbica podemos identificar o mesmo rosto vazio, o
mesmo sorriso mecânico, a mesma ausência de idiossincrasia,
de individualidade. Enxergamos nessas imagens apenas o que
caracteriza a massa e que nos aproxima de concepções
de mundo fascistas. Não seria fascista esta norma do
corpo malhado que é vomitada pela mídia diuturnamente?
A fixação no corpo e pelo corpo apresenta-se
como ato quase desesperado de posse de algo em que é
possível transformar-se, não importando muito
as condições para a realização
da transformação.
Mais
alto, mais forte, mais rápido (talvez menos humano)
é a manchete de capa de um caderno especial do jornal
Folha de São Paulo que tem por título Futuro
do Esporte, da série Folha Olimpíada
2000. O primeiro parágrafo da matéria
é singular: A ciência poderá mudar
tanto os atletas até a metade do próximo século
que é arriscado demais dizer como eles se tornarão.
Não há nem mesmo o consenso de que eles serão
humanos. Ou ainda a afirmação de um pesquisador
dos EUA nesta mesma matéria, para quem no fim do século
só será possível identificar quem é
humano ou andróide com o auxílio de instrumentos.
Nesta mesma matéria pode-se ler que três ramos
da ciência e seu acelerado desenvolvimento como a robótica,
nanotecnologia e genética ameaçam, no limite,
a sobrevivência da espécie humana.
Talvez
aqui as imagens do filme Matrix traduzam com uma
intensidade maior este emaranhado de sentidos produzidos pela
humanidade em sua trajetória. No filme eram seres humanos
que geravam energia para alimentar um expressivo conjunto
de sofisticadas máquinas.
[...]Talvez
o caminho trilhado pela humanidade até aqui indique
mesmo uma alteração radical do que se pensou
como humano,pois a ciência, hoje, cada vez mais, amplia
o seu poder e sinaliza, bem perto de nossos olhos, possibilidades
outrora apenas esboçadas no cinema e na literatura
.
[...]Se
tudo no corpo e do corpo é hoje amplamente comercializado,
onde está o limite? Parece que hoje, de fato, ele é
a próxima fronteira do capital, conforme sugere o título
de um artigo de Denise SantAnna, de 1997, cujo conteúdo
denso chama a atenção para aspectos cruciais
do debate sobre o corpo, evidenciando que o interesse
econômico que o corpo desperta deveria servir para esclarecer
à sociedade quais são os grupos que ganham e
os que perdem com a transformação das diversas
partes do humano em equivalentes gerais de riqueza.
Há
momentos nos quais parece não haver mais fronteiras
e tudo se revela como já ultrapassado. Parece que o
corpo já pode ser visto também como um reservatório
de produtos caros, função que se agrega a outra
plenamente aceita que é a de exibir-se. Nesta última,
o que varia é o lugar que pode ser o imenso campo esportivo
e seu pódio, as passarelas da moda, as academias de
ginástica, as casas noturnas ou os cardápios
humanos que são oferecidos no planetário e rentável
comércio sexual.
[...]
Mas a atividade esportiva, dado o seu alto valor comercial,
talvez seja o campo de provas mais imediato e possível
de ser concretizado. Talvez a sofisticação esportiva
atinja tal nível que só o menos humano, de fato,
será o esperado para ser visto. O atleta, talvez, venha
ser o primeiro campo de provas que vai demonstrar resultados
de um planejamento total, inclusive genético.
Talvez
o esporte amplie-se como campo possível de exibição
de um corpo completamente alterado por próteses, células,
estruturas minúsculas que criam potências impensadas
e permitem o rendimento máximo e controlado. E o corpo
vencedor exibirá os slogans que o ajudaram a chegar
lá. O campo esportivo como representação
real da criação de super-homens.
Parece
que a assimilação das conquistas em relação
ao rendimento e a estética corporal por parte da população
ocorre de uma maneira ingênua e ao mesmo tempo como
promessa, sempre implícita, de conquista de uma juventude
eterna, de um corpo esbelto, belo, de uma super performance
atlética, sexual...
[...]Os
riscos das tantas intervenções, alterações,
merecem ser tratados para além da idéia asséptica
de que são apenas erros de medidas, cálculos
não exatos que serão corrigidos na próxima
operação. O imprevisível, o imponderável,
o inusitado que é parte da trajetória humana
parece algo do passado... A própria definição
de humano começa a ser alterada.
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Carmen Lúcia Soares é professora da Faculdade
de Educação (FE) da Unicamp e integra a equipe
do Laboratório de Estudos Audiovisuais (Olho). O texto
acima é um resumo do artigo Corpo, Conhecimento e Educação:
Notas Esparsas (Nota 3), incluído da coletânea
Corpo e História.