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é, afinal, a dimensão da pobreza no Brasil?
Ela concentra-se nas pequenas cidades e na zona rural ou nas
regiões metropolitanas? Questões como essas
foram debatidas no II Seminário Brasileiro da Nova
Economia Institucional. A mesa-redonda de abertura, cujo tema
foi Instituições e Estratégias
de Combate à Pobreza, reuniu os economistas Joachim
Von Ansberg (Banco Mundial), José Graziano da Silva
(Unicamp), Ricardo Henriques (UFF) e o sociólogo Ricardo
Abramovay (USP).
As projeções
de Ansberg transparências inclusas acenderam
o debate. Escorado em números, planilhas e gráficos
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) e do Instituto de Economia Aplicada (IPEA), o representante
do Bird, alemão lotado há 9 anos na instituição
- quatro deles no Brasil -, afirmou que o número de
pobres no Brasil despencou nos últimos anos, mais precisamente
depois da estabilização de 1994. Pelas contas
de Ansberg, se o país tinha 52 milhões de miseráveis
em 1993, hoje o contingente que tem renda inferior a R$ 65
mensais não passa de 35 milhões.
Ansberg
saiu da renda e fincou o pé na geografia, afirmando
que a pobreza se concentra no sertão nordestino. E
justificou a queda repentina no número de excluídos:
os avanços do país, no que diz respeito aos
indicadores sociais, entre os quais a redução
das taxas de evasão escolar e de mortalidade infantil.
No campo do consumo, o economista do Banco Mundial constata
que as classes mais baixas hoje têm mais acesso às
linhas de crédito.
Os cenários
desenhados por Ansberg não foram menos otimistas. Pelos
seus cálculos, o número de pobres pode cair
pela metade, nos próximos 15 anos, caso a economia
cresça 6% ao ano, projeção considerada
extremamente otimista em razão das turbulências
do mercado e das oscilações dos índices.
Em sua mensagem final, entretanto, o representante do Bird
alerta que apenas o crescimento não será suficiente
para atenuar os efeitos da miséria. Ele teria que estar
acompanhado por uma reforma mais profunda do gasto social,
com alocação eficiente de recursos entre os
programas.
Os números e as projeções de Ansberg
foram contestados pelo economista José Graziano da
Silva, professor do Instituto de Economia da Unicamp, um dos
debatedores da mesa-redonda. As diferenças começam
na tábua das estatísticas. Graziano fala em
54 milhões de pobres, boa parte deles, segundo o economista,
radicados nas periferias das regiões metropolitanas,
uma legião de excluídos que só teria
feito crescer entre 1995 e 1999. Concentração
de renda e de propriedade, salários baixos e o modelo
tributário seriam, de acordo com Graziano, os fatores
geradores da miséria.
Ansberg
não questiona os números do professor da Unicamp,
mas lembra que o conceito de pobreza exposto por Graziano
é diferente do utilizado pelo Banco Mundial, que trata
o problema mais como uma ferramenta analítica do que
normativa. O importante não é contar os
pobres, mesmo porque todos os números são muito
altos, diz o economista do Bird, para quem a vida no
campo é mais barata, fator que inviabilizaria comparações
entre a pobreza rural e a urbana.
O economista do Bird reconhece a altíssima
desigualdade de renda no Brasil, mas lembra que isso é
uma característica estrutural do país, a ser
mudada com o combate à pobreza rural e com investimentos
maciços na área de educação, ações
que levariam à distribuição mais justa
de renda. Essa receita também foi contestada por Graziano,
que acredita ser a educação um direito básico
importante, mas não um componente gerador de renda.
Para o economista da Unicamp, o aumento do salário
mínimo é fundamental para a redução
da pobreza.
Reflexão
- As críticas de Graziano são endossadas pelo
sociólogo Ricardo Abramovay, professor da Faculdade
de Economia e Administração da Universidade
de São Paulo. A começar pela dança dos
números de pobres. Uma diferença que supera
a dezena de milhões não pode ser tratada como
irrelevante, avalia o sociólogo, que centra sua crítica
em dois pontos. O primeiro por considerar que, apesar da implantação
de algumas políticas sociais, a sociedade está
longe de discutir com profundidade quais seriam os requisitos
constitucionais necessários para uma mudança
de modelo estabelecido, não por acaso o objetivo do
seminário. Existe um buraco na reflexão
sobre as mudanças institucionais que atenuariam os
efeitos da pobreza, constata.
O outro
ponto é a distribuição de renda. Na opinião
de Abramovay, o problema da concentração se
exprime em todos os setores da sociedade, sem que haja um
debate sobre os mecanismos que sustentem uma transição
para um cenário mais alentador. A propaganda
daquela camionete gigantesca da qual se aproxima um cachorro,
que recua depois que o bólido quase late, é
emblemática. E o que diz aquele carro? Eu sou todo-poderoso,
eu não tenho limite, ninguém pode mandar em
mim. Essa é a sociedade brasileira, compara.
Abramovay
acredita que a única forma de sair do limbo seja a
introdução de novas regras formais e jurídicas,
que caminhariam juntas com novas normas de comportamentos
informais, conquistados por meio de mudanças que não
seriam perceptíveis do ponto de vista da ação
política. O sociólogo reconhece que o país
transita para uma situação melhor, mas a marcha
é lentíssima. Para ilustrar o abismo entre as
classes, cita seu próprio exemplo de professor universitário,
com carro na garagem, casa própria e filho em escola
particular. Não precisa comparar com o Lalau.
Basta olhar para a pessoa que trabalha em sua casa para constatar
como é chocante o contraste.
Outro
ponto colocado por Ansbenrg que chama atenção
de Abramovay é o fato de o economista colocar a pobreza
como um fenômeno fundamentalmente nordestino e rural,
o que foi classificado pelo sociólogo de ilusão
de ótica por tomar apenas a renda como base de
cálculo. Uma conta que privilegia parâmetros
como longevidade, alfabetização e renda em detrimento
da qualidade de vida. Para o sociólogo, o garrafeiro
que tem uma renda de R$ 300 e mora sob a ponte da Cidade Universitária,
em São Paulo, não é menos pobre que o
sertanejo que recebe meio salário mínimo.
Abramovay
estranha também a omissão acerca da violência
urbana, para ele socialmente muito definida. E
vai na garupa de indicadores que não constam nos gráficos
do Bird: se no quadrilátero formado pelas ruas Oscar
Freire, Lorena, Bela Cintra e Haddock Lobo, nos Jardins, em
São Paulo, os índices de homicídios são
similares aos da Noruega, ao se afastar 30 quilômetros
desse eldorado, o cidadão
cai no Campo Limpo, onde nem situação de guerra
mata tanto. São insuficientes, para ele, os números
que não refletem a problemática da exposição
às drogas e à violência sexual sofrida
pelas crianças nos bairros mais pobres.
Joachim
Von Ansberg diz não fechar os olhos para a violência
urbana e para a incidência da pobreza metropolitana
mencionada por Abramovay e Graziano, embora, no segundo fenômeno,
tenha dúvidas sobre seu crescimento, por acreditar
que é preciso dissociar o aspecto monetário
de outras dimensões da miséria. A pobreza
pode ter aumentado nas regiões metropolitanas nos últimos
dois anos, mas esse aumento foi muito menor que a redução
da miséria registrada em todo o país desde 1994,
argumenta.
Quanto
à violência, Ansberg reconhece tratar-se de um
problema-chave nas regiões metropolitanas,
responsável pela queda da qualidade de vida da população.
Para ele, não há uma receita mágica que
coloque um fim nesse círculo vicioso. Urbanização,
projetos voltados para cidadania, educação e
acesso aos serviços de segurança pública
são algumas das iniciativas sugeridas pelo economista.
A pobreza produz violência e vice-versa. Visitei
muitas favelas onde as pessoas têm medo de sair de casa,
de mandar as crianças para a escola. Fica claro que
esse nível de intimidação reduz as oportunidades
econômicas, constata Ansberg.
Abramovay admite que o representante do Banco Mundial lamenta
essa insuficiência, mas acha que isso contribui para
minimizar o desafio que consiste em dizer o que se faz para
eliminar a pobreza metropolitana. Tudo se passa como
se esse problema estivesse mal ou bem-resolvido, porque as
pessoas estão com mais renda do que nas regiões
mais miseráveis do país. Acho que isso não
é verdade. Quem vive em São Paulo sabe que não
é verdade, diagnostica. Pior: segundo ele, a
sociedade brasileira não tem a receita para melhorar
esse quadro.
O professor
da USP tem para si algumas convicções. A primeira
seria uma ampla mobilização intelectual no interior
das elites para se discutir a questão dos limites entre
o público e o privado, iniciativa que deveria guardar
boa distância dos meios convencionais e das conferências.
Abramovay entende que as elites vão limitar a sua usurpação
do espaço público só quando existir,
no poder público, indivíduos e organizações
voltados explicitamente para a promoção dos
mais pobres. Essa receita seria uma mistura de capacidade
de colocar de maneira negociada limite para quem tem poder
demais, e capacidade de dar confiança, injetar organização,
auto-estima a quem tem poder de menos.
Esse modelo
possibilitaria, na análise de Abramovay, a formação
de uma espécie de substrato que resultaria em mudanças
formais e legislativas, envolvendo o plano político,
a começar de uma reforma tributária, como prega
também Graziano. Rico nesse país não
paga imposto, é uma coisa fantástica,
ironiza. O passo seguinte, para o sociólogo, seria
a implantação de reformas que possibilitassem
o acesso à moradia e à terra, entre outras medidas.
Mas faz uma ressalva: as mudanças têm de estar
baseadas na capacidade organizativa da sociedade, colocando
limites aos poderosos e, nesse quadro, o papel do Estado é
crucial. Não há políticas
sociais que estejam apoiadas sobre a organização
da sociedade sem que o Estado se comprometa seriamente com
essas ações.
continua
..