Um breve
resumo do jogo decisivo da Copa de 1998 ajuda a situar o contexto
dos discursos de locutores e comentaristas extraídos
do estudo de Édison Gastaldo e reproduzidos a seguir,
acompanhados de observações do autor. O jogo
esteve equilibrado até os 27 minutos do primeiro tempo,
quando, em uma cobrança de escanteio, o atacante francês
Zidane fez 1 a 0 para a França. No final do primeiro
tempo, aos 46 minutos, Zidane, em outra cobrança de
escanteio, ampliou o marcador: 2 a 0. No segundo tempo, a
seleção brasileira atacou o tempo todo, mas
sem sucesso. No final do jogo, a 47 minutos, um rápido
contra-ataque resultou no terceiro gol da França, com
Petit fazendo 3 a 0, completando o escore do jogo. (PCN)
Jogo
equilibrado
Até
o primeiro gol da França, observa o professor, o discurso
dos locutores aludia a um jogo equilibrado, com uma certa
vantagem dos brasileiros, apesar da França se mostrar
mais consistente no ataque:
É natural que a França venha para cima no começo
do jogo (...) Está ainda meio assustado o time brasileiro
com o grito da torcida francesa, mas esse nervosismo no início
é absolutamente normal, o Brasil joga na casa do adversário
(...) O negócio é botar pressão pra cima
deles, fazer essa camisa amarela crescer, que aí eles
sentem!
Galvão Bueno (Globo), 5 do 1o tempo.O
Brasil tá começando a botar os nervos no lugar.
Aquela euforia do time francês parece que baixou um
pouco.
Sílvio Luis (SBT), 15 do 1o tempo.
Uma coisa a gente percebe: a seleção brasileira
tem tranqüilidade para tocar a bola.
Paulo Stein (Manchete), 16 do 1o tempo.
Vai bem a seleção, vamos tomando conta do jogo
(...) Cada vez vai se acertando mais a seleção
brasileira.
Luciano do Valle (Bandeirantes), 19 do 1o tempo.
Árbitro
sob suspeita
Ainda
no primeiro tempo, Galvão Bueno declarou a sua suspeita
sobre a escalação do árbitro marroquino
Said Belqola, devido aos fatos de ele (entre outros
idiomas) falar francês e de sua família residir
na França, insinuando que, se ele apitasse contra
a França, seus filhos sofreriam represálias
na escola. Tal temor faria com que ele fosse parcial, de modo
a prejudicar a seleção brasileira. A suspeita
do locutor da Rede Globo também recaiu sobre o auxiliar
(conhecido como bandeirinha) inglês Mark
Warren, de modo ainda mais confuso. Segundo o locutor, o simples
fato de o auxiliar ser inglês já era motivo suficiente
para a desconfiança, como manifestou no caso de uma
bola dividida em uma cabeçada entre o jogador brasileiro
Leonardo e o defensor francês. A bola saiu pela linha
de fundo e foi interpretada como tiro-de-meta (Galvão
Bueno achou que deveria ter sido escanteio):
Não
tô falando? Said Belqola, o árbitro, e esse inglês,
Mark Warner (sic). Se esse inglês tiver, por exemplo,
o mesmo sentimento que o locutor da TV inglesa que a gente
andou vendo aqui no jogo Brasil e Holanda, ele parecia holandês
desde nascença. O que gritava, o que esbravejava, o
que torcia para a Holanda, no sentimento europeu. Vamos ver
como é que as coisas acontecem daqui pra frente.
Alguns minutos depois, uma bola a meia altura foi dividida
pelo lateral francês Lizarazu, com a cabeça,
e pelo lateral brasileiro Cafu, com o pé. Mark Warren,
ao lado do lance, interpretou a jogada como uma falta chamada
de jogo perigoso por parte do brasileiro, dando
vantagem ao jogador francês. Foi o suficiente para desencadear
outra catilinária de Galvão Bueno:
Esse bandeira
inglês tá com toda pinta de estar mal-intencionado
(...) Não tô gostando desse bandeira inglês,
não. Dá toda pinta de estar mal-intencionado,
esse Mark Warner (sic), bandeira inglês. Duas intervenções
dele muito claras: um escanteio que ele deu tiro-de-meta e
essa bola agora que ele forçou a barra, deu uma jogada
perigosa que não existiu.
Alguns
minutos depois deste lance, a televisão francesa mostrou
imagens em câmera lenta, em que o técnico brasileiro
Zagallo gesticulava e gritava, mas sem áudio. Bueno
dublou a fala do técnico:
Olha o Zagallo aí, o Zagallo tá falando com
o bandeira, tá falando no bandeira, você viu
ele ali, falando com todo apetite no bandeira inglês,
Mark Warner (sic) é o nome dele!
Na verdade,
pondera Édison, nada na imagem apresentada indicava
o que quer que fosse de alusão ao bandeira
ou a qualquer outro tema, era simplesmente uma imagem em câmara
lenta do técnico gesticulando e gritando, como em outros
momentos foi mostrada a imagem do técnico francês,
Aimé Jacquet. A imagem é a mesma, mas a interpretação
dessa imagem articula a ela um sentido que define uma versão
da realidade à qual a imagem acaba se referindo. Na
sequência do jogo, os gols da França mudaram
a ênfase de Galvão sobre a conspiração
da arbitragem, e ele não falou mais no assunto, até
o fim da partida.
O
otimismo vai e volta
O primeiro
gol da França, aos 27 minutos do primeiro tempo, começa
a mudar o tom do discurso dos locutores e comentaristas com
relação ao desempenho da seleção:
A França
faz o gol, a situação fica mais difícil,
mas ainda tem um século de jogo ainda, e o Brasil quando
joga atrás, é um time que cresce muito. Quando
tá 0 a 0, fica naquele nhém-nhém-nhém.
Tomou o gol, você vai ver que o Brasil vai crescer e
vai pra cima da França (...)
Juarez
Soares, comentarista do SBT.
No último minuto do primeiro tempo, o segundo gol da
França, em circunstâncias quase idênticas
às do primeiro tempo, refreou o otimismo dos locutores:
Está irreconhecível a seleção
brasileira!
Luciano
do Valle.
No segundo tempo, o ataque constante do time brasileiro fez
com que voltasse o otimismo abalado pelo placar:
Eles tão realmente encurralados com a pressão
do Brasil no segundo tempo.
Sílvio Luis, 3 do 2o tempo.
A torcida francesa sente que a sua seleção está
em apuros.
Luciano do Valle, 25 do 2o tempo.
Resignação
e prantos
À
medida que o tempo vai passando e o tão esperado gol
da seleção brasileira não acontece, a
esperança começa a dar lugar à resignação,
comenta Édison. Locutores buscam salientar algum aspecto
positivo possível naquelas circunstâncias, ainda
que não diretamente relacionado ao jogo:
Mesmo que não consiga, o Brasil é valente, é
o único a ser tetracampeão no final deste século,
mas ainda busca o penta.
Galvão
Bueno, 35 do 2o tempo.
Pelo menos, viu, Ratinho, tem dois sorteios depois do jogo,
um caminhão e uma casa no valor de 50 mil reais.
Luiz Alfredo
(Record), aos 40 do 2o tempo, conversando com o apresentador
de programa de auditório Ratinho.
Quando o jogo terminou, alguns segundos após o terceiro
gol da França, todos os locutores e comentaristas fizeram
suas avaliações a respeito do jogo e de suas
conseqüências, procurando, de alguma maneira, consolar
o telespectador, enquanto as imagens mostravam os jogadores
brasileiros aos prantos, desolados, sentados no gramado, contrastando
fortemente com a transbordante alegria dos jogadores e da
torcida francesa:
(...)
Espero que no nosso país a gente tenha calma suficiente
para entender, pra esfriar a cabeça, que ganhar sempre
é impossível, e nessas derrotas muito honrosas,
porque afinal de contas chegamos à final da Copa, aqui
passaram 32 seleções e só duas chegaram
à final e nessas duas estava o Brasil (...)
Luciano
do Valle.
(...) É um campeonato, onde se ganha, se perde e se
empata. O Brasil nesse campeonato perdeu duas partidas, empatou
uma e ganhou as outras (...) Se nós considerarmos que
um vice-campeonato é honroso para qualquer seleção,
o segundo lugar é uma posição digna para
a seleção brasileira, por que não? (...)
Juarez
Soares.
O futebol brasileiro vai se recuperar desse vice-campeonato.
(breve pausa) É uma conquista, de uma certa forma...]
Luiz Alfredo.
A sombra da outra derrota brasileira numa final de Copa do
Mundo, em 1950, também se fez sentir, embora seja sumariamente
negada por Galvão Bueno. O autor de Os campeões
do século lembra que o fato da seleção
brasileira ser a única tetracampeã é
novamente utilizada pelo locutor da Globo para relativizar
a derrota para a França e transforma-se no derradeiro
lastro da frágil auto-estima nacional:
É
um esporte, se ganha, se perde. Tira 50, quando era um torneio,
que chegamos ali com o Uruguai em chance de decidir, depois
disso, o Brasil foi a cinco finais, ganhou quatro, conhece
a derrota pela primeira vez numa final, e a derrota às
vezes traz muito ensinamento. Façam festa, franceses,
vocês merecem. Pra seleção brasileira,
a gente teria que dizer: (pausa) Valeu, Brasil, valeu! (entra
em cena um videotape previamente editado para veiculação
em caso de derrota. As imagens mostram cenas das campanhas
vitoriosas do Brasil em Copas do Mundo, e, no final, as cenas
de um jogo de futebol de várzea).
Locução:
Valeu, Brasil! A imagem que fica do nosso futebol é
essa: afinal, somos os melhores do século. Seremos
sempre o país do futebol. Bola pra frente! A Globo
é mais Brasil!